O candidato assassinado à Presidência no Equador, Fernando Villavicencio
César Neto

A imagem do assassinato de Fernando Villavicencio, candidato à presidência do Equador, correu o mundo, e esteve entre as notícias de destaque da semana, do mês e talvez estará entre os destaques do ano.

Muito se tem escrito sobre Villavicencio. Diversos jornais escrevem a sua trajetória, ignorando sua origem no trotsquismo, seu papel na insurreição de 2000, se apegando aos aspectos dos seus últimos anos. Nós consideremos que os últimos anos foram marcados por grandes erros políticos, e que esses erros precisam ser conhecidos pelos lutadores como uma forma de apredizado coletivo.

Com Fernando compartilhei uma amizade de longos anos. As nossas opiniões políticas durante um tempo foram próximas, depois foram se distanciando, mas a amizade perdurou. A última vez que nos falamos foi em abril deste ano.

O jovem rebelde e o jovem revolucionário

Nascido em um pequeno povoado na região andina, Fernando foi cedo para a capital Quito. Lá estudou jornalismo na Universidad Cooperativa de Colômbia.

Começou sua militância no trotsquismo, em um pequeno grupo equatoriano vinculado à corrente denominada Comitê Internacional da Quarta Internacional, dirigida entre outros por Gerry Healy.

Nos anos 80 e 90, o stalinismo dominava de cima abaixo o movimento sindical, juvenil e popular no Equador. Eram dois grupos stalinistas, o PCE e o PCMLE. Um de linha soviética e outro chinês.

Ser trotsquista naquele país e naqueles anos era um ato de rebeldia e bravura. Não se sabe até hoje quem mais perseguia os trotsquista, se era o Estado burguês ou os estalinistas.

“Ecuador: tierra de vulcanes y revoluciones”

Fernando gostava de dizer que o Equador era terra de vulcões e revoluções. E não era exagero. Nos anos 80 o país viveu 10 greves gerais. Nos anos 90, o eixo era a luta contra as privatizações, sendo a luta conhecida como “Acorrentados ao Oleoduto” uma das mais belas manifestações. O oleoduto passa pelas comunidades e os moradores simbolicamente se acorrentavam à tubulação em protesto contra as tentativas de privatização.

Assim, enquanto a onda privatizadora avançava pela América Latina, no Equador as lutas impediram a privatização do setor elétrico e petroleiro.

Nesses anos de intensa luta de classes, o movimento de massas derrubou um vice presidente, Alberto Dahik e um presidente Abdalá Bucaran, em 1995 e 1997, respectivamente.

Em 1995, Villavicencio participou da fundação do partido Pachakutik que procurava dar representação política aos indígenas que viviam no campo e na cidade. Uma  ideia que naufragou no eleitoralismo. Em poucos anos, Fernando se distanciou do Pachakutik e optou pela construção do Parlamento dos Povos, uma frente urbana de trabalhadores, desempregados, estudantes e organizações de bairro.

A queda de Jamil Mahuad e a tomada do poder

Os primeiros dias de janeiro de 2000 começaram fervendo. O governo tinha dolarizado a economia, aumentado a gasolina e congelado os salários. O Parlamento dos Povos, junto com a Conaie (Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador), FETRAPEC (Federação dos Trabalhadores Petroleiros do Equador), os eletricitários, organizaram uma manifestação no dia 21 de janeiro, a qual se somaram os militares de mando médio.

A manifestação era muito forte e, com ajuda dos militares, ocuparam o Palácio de Carandolet (palácio presidencial) e coube ao presidente Jamil Mahuad fugir pela porta dos fundos.

Fugitivo Mahuad, a presidência ficou vaga e foi assumida por um triunvirato eleito pela mobilização e composto pelo Coronel Lúcio Gutiérrez, Carlos Solórzano (ex-presidente da Superma Corte) e Antonio Vargas, da Conaie.

O governo provisório, o Parlamento dos Povos e a falta da direção revolucionária

Durante oito horas, na contramão da história logo após a Queda do Muro de Berlim,  um triunvirato saído de uma mobilização governou o país. Nessas oito horas, o Parlamento dos Povos determinou algumas medidas a serem seguidas, entre elas a suspensão da dívida externa e a afirmação de que a mesma já havia sido paga.

A Conaie desmobilizou os indígenas, dizia que já estavam no poder e que todos podiam voltar às suas comunidades distantes. O Comandante do Exercito Gal. Carlos Mendoza, reivindicando a hierarquia militar, ordenou ao Cel. Lucio Gutiérrez que renunciasse para que ele assumisse o posto no triunvirato. As horas foram se passando na fria madrugada quiteña, os indígenas voltando para as comunidades, os ativistas se desmobilizando e, então, o Gal. Mendoza deu ordem de prisão a todos e entregou o poder ao vice de Jamil Mahuad, Gustavo Noboa.

O desastre que é a  ausência de uma organização revolucionária ficou evidente nesse processo.

A insurreição de 2000 animou os trabalhadores latino-americanos

Em 1989 havia caído o Muro de Berlim e começou uma campanha mundial da burguesia e seus propagandistas na qual  afirmavam que era o fim da história. Para eles o capitalismo tinha vencido e  restava aos trabalhadores e a juventude aceitarem as regras do jogo. Foram dez anos de propaganda e desmoralização contra o socialismo e a ditadura do proletariado. Ter o poder ao alcance das mãos, ainda que tenha sido apenas por oito horas, trouxe novos ares e mostrou a força do movimento. A luta pelo socialismo recebia ares frescos.

Assim, muito corretamente, Fernando foi convidado a vir ao Brasil contar as experiências de vinte anos de lutas ininterruptas até a derrubada de Mahuad. Em São Paulo, Rio, Minas, São José dos Campos, suas palavras eram músicas para nossas lutas.

A CMS e a candidatura Lúcio Gutierrez

Em abril de 2001, os equatorianos se lançaram a construir o congresso de uma organização de maior abrangência social, e partiram para organizar de fato a Coordenadora dos Movimentos Sociais. O programa, ainda que limitado ,tinha um viés de defesa da soberania nacional, contra o FMI e a dívida, mas pecava em tentar construir “um novo país baseado em uma nova ética, promovendo os valores da solidariedade, tolerância, honestidade, equidade, diversidade, não discriminação, diálogo, resgate da alegria e esperança do Equador”. Na verdade, o programa se mostrava insuficiente para sobreviver ao tsunami da crise capitalista que se estava desenhando .

Com esse programa bastante limitado, a CMS e com ela Fernando, embarcaram na candidatura à presidencia do Cel. Lucio Gutiérrez.

O governo de Lúcio: colaboração de classes e repressão

Boa parte da esquerda equatoriana se jogou na campanha eleitoral de Lucio Gutiérrez e depois fizeram parte do seu governo. Os petroleiros foram chamados a ocupar importantes cargo na Petroecuador e suas subsidiárias. Lá estava Fernando como assessor especial da nova direção da empresa. Foi aí que nós nos separamos politicamente.

Lúcio precisava de maioria no Congresso. Assim, optou por romper com a esquerda e se apoiar na direita guayaquileña. Ao mesmo tempo, os trabalhadores petroleiros viam no novo governo má vontade em resolver suas demandas. Lúcio, em seu giro à direita, demitiu os dirigentes petroleiros com cargos na estatal e perseguiu os trabalhadores petroleiros que já estavam em greve.

Os ex-aliados passaram a ser procurados e presos. Formou-se um comando clandestino de resistência que se reunia com todos os cuidados de segurança. Nessas reuniões clandestinas, sentíamos uma satisfação imensa en encontrar os perseguidos, abraçar-se e tentar armar a contraofensiva dentro da derrota.

Na terra dos vulcões e revoluções, o governo do Cel. Lúcio Gutiérrez foi curto. Dois anos e dois meses e o movimento de massas o derrubou. Era o segundo presidente a cair em menos de dez anos.

As denúncias de corrupção contra o Governo Correa

Rafael Correa era um professor de economia, interessado pelo tema da dívida externa e dava aulas na Universidad San Francisco frequentada pelos filhos da burguesia. Programaticamente se adaptava ao programa que a CMS aprovou em seu congresso de 2001.

Toda a esquerda correu para a sua candidatura, para o apoio à Assembleia Constituinte que  ele convocou e, obviamente, para o governo da Alianza País. A experiência foi rápida como sempre mas a cooptação, desmobilização e desmoralização que vinha desde o governo de Lúcio, cobrou o seu preço na incapacidade de reação do movimento. Parece que os vulcões tinham silenciado. Assim o governo de Correa perseguiu e demitiu funcionários públicos…. para pagar a dívida e perseguiu, processou e prendeu os ativistas que se opuseram

O deputado Clever Jimenez, seu principal assessor Villavicencio, e o presidente do sindicato do Médicos descobriram falcatruas envolvendo Correa e passaram a denunciar. Clever, um deputado em um pais unicameral, foi perseguido, condenado e teve que se refugiar.

Mesmo perseguido, Villavicencio  investigou e documentou os negócios ilícitos da família de Correa envolvendo os contratos petroleiros com a China, Petrobrás e as obras da Odebrecht.

Eram os tempos do governo Lula e o auge dos governos mal-chamados de Socialismo do Século XXI do qual faziam parte Chavez, Ortega, Correa, entre outros.

O silêncio cúmplice do petismo e o apoio dado pelos chamados socialistas do século XXI foram duramente denunciados por Fernando, assim como mais tarde ele viria a denunciar os efeitos da pandemia no Brasil e acusar Bolsonaro de ser cúmplice do genocídio.

A pior escolha: aninhar-se com a burguesia para defender-se

Perseguido pelo correísmo e condenado pelos seguidores do Socialismo do Século XXI, fêz a pior escolha para defender-se. Buscou apoio num setor da burguesia que sempre viveu de negócios como o próprio Correa e sua gangue.

Fernando começou a frequentar a grande imprensa – burguesa é claro – e ganhou notoriedade pelas corretas denúncias de corrupção. Essa notoriedade lhe deu visibilidade suficiente para se eleger deputado.

Sua campanha baseou-se na soberania nacional sobre o petróleo, a denúncia dos contratos petroleiros e a influência do narcotráfico nas estruturas do Estado equatoriano. Tendo uma economia dolarizada desde o governo de Jamil Mahuad, o Equador se transformou no local ideal para lavagem de dinheiro fruto do tráfico de drogas.

Eleito deputado, fez parte dos deputados que davam sustentação ao governo do banqueiro Guillermo Lasso.

O assassinato de Fernando Villavicencio

Um dia antes de ser assassinado, protocolou na Fiscalia General del Estado mais uma denúncia dos negócios petroleiros na época de Correa. Segundo a denúncia, 21 poços petroleiros foram entregues a transnacionais e segundo ele: “os custos de produção destes campos que antes estavam em US 18 por barril, agora custa ao Estado equatoriano quase US 43, ou seja 70% da renda petroleira foi parar nas mãos das transnacionais”. Uma situação que nem Lula ou Bolsonaro denunciariam para não ficarem mal com seus amos imperialistas.

Além de ter Correa como inimigo, também tinha inimigos entre os narcotraficantes. Chegou a publicar uma foto do traficante Fito, preso e tendo ao lado autoridades policias, onde todos estão rindo. Em setembro de 2022, sua casa foi metralhada e as ameaças corriam soltas.

O Estado equatoriano garantiu-lhe um carro blindado, proteção armada, jaleco e capacete à prova de balas.

Na hora do assassinato ele saía de um ginásio de esportes, sem jaleco e capacete, com dois guarda-costas desarmados e um veículo não blindado. Como disse um jornalista local: até em briga nas casas noturnas as pessoas saem melhor protegidas.

Não se sabe exatamente se foi o narcotráfico que o assassinou, ou se as ameaças de Correa se concretizaram, ou foram os policiais ofendidos com a foto publicada. Ou talvez uma combinação de um ou mais fatores.

Requiém para um guerreiro que se perdeu na guerra

Poderíamos, neste final, escrever frases bonitas e de efeito. Preferimos aproveitar para fazer algumas reflexões. Primeiro, dizer que muito nos orgulha nossa origem comum no movimento trotsquista. Que suas atitudes até o governo Lúcio foram essencialmente corretas, apesar de um erro aqui e outro ali. Que a entrada no governo Lúcio foi um erro grave e, ao final, vimos os principais quadros indígenas e sindicais serem cooptados, desmobilizados e finalmente desmoralizados frente suas bases. As denúncias contra Correa foram corretas, ainda que os seguidores do chamado Socialismo do Século XXI o odiassem por isso. E o pior de todos os erros foi buscar a burguesia para proteger-se.

Não basta ser um guerreiro destemido, valente e experiente. É preciso ter a força material que sustente essas qualidades. Lá atrás, quando o grupo trotsquista se desfez, você deveria ter levantado a cabeça, dado um passo atrás, respirado fundo e começado tudo de novo.

Afinal, só a classe trabalhadora, a rebeldia da juventude e a necessidade de justiça dos indígenas, fundindo-se com o marxismo, podem construir um programa e um partido revolucionário, preparar-nos a necessária autodefesa e nos ajudar a traçar linhas políticas o mais próximo possível da realidade.

Hasta la victória, siempre.