Cesar Neto

Há diversas explicações da crise sudanesa, mas seus autores pouco ou quase nada nos mostram sobre o papel das potencias capitalistas no jogo de interesses que incidem sobre o país. A tragédia sudanesa ocorre por fatores externos ao país e está intimamente conectada à decadência do sistema capitalista imperialista. Acompanhar e estudar a crise no Sudão nos ajuda a entender os quinze conflitos armados que vivenciamos na África nesta época de decadência imperialista.

Localizar o país no espaço geográfico e de conflitos

Ao olhar no mapa acima, à direita vemos o Golfo de Adén por onde passam 20.000 barcos ao ano, que navegam em direção ao Mar Vermelho até Suez. Para essa viagem tem que passar pelo estreito Bab-El Mandeb (Porta das Lamentações) o qual possui menos de 30 quilômetros de largura. É uma zona vital para o transporte de petróleo e mercadorias. Além disso, na região está o arquipélago de Socotra, a uns 80 quilómetros da costa da Somália, o qual possui uma localização privilegiada para o controle de trafico marítimo. Pelo Golfo de Adén passam os navios petroleiros que saem do Golfo Pérsico e vão passar pelo Estreito de Ormuz. Nesse trecho transita quarenta por cento do petróleo mundial.

A outra região de grande importância pela presença de recursos minerais é a extensa faixa do Sahel. É uma faixa de transição dos climas áridos do deserto para as florestas húmidas, com 500 a 700 quilômetros de largura, atravessa do Mar Vermelho até o Atlântico. É uma zona rica em ouro, diamante, petróleo e acima de tudo urânio, que é a base das armas nucleares, entre outros fins.

Bases militares na região do Golfo de Adén-Mar Vermelho e no Sahel

A presença de quatorze bases militares na região do Golfo de Adén-Mar Vermelho e quinze bases na região do Sahel indicam o grau de submissão dos países da região aos EUA, França, Japão e China. Os EUA têm onze bases na região do Golfo de Adén-Mar Vermelho, e a França, Japão e China uma cada país. No Sahel os EUA têm 10 bases militares e a França outras cinco. Poderíamos utilizar outros indicadores para demonstrar a presença militar na região, mas para não cansar o leitor vamos ficar por aqui.

Bases militares na região do Golfo de Adén-Mar Vermelho: EUA tem as seguintes bases militares: Chebelley e Camp Lemonnier (Djibouti); Entebbe (Uganda); Mombasa e Manda Bay (Quênia) e mais cinco bases não permanente na Somalia (Baledogle, Bosaso, Galkayo, Kismayo e Mogadishu) e outra no Quênia (Wajir). Em Djibouti também tem bases militares da França, Japão e da China

Bases militares no Sahel: EUA têm as seguintes bases militares: quatro bases no Niger (Arlit, Dirkou, Diffa, Ouallam), duas bases em Camarões (Garoua e Maroua), Gana (Kotoka), Bamako (Mali) Librebille (Gabão) e Santa Helena, nas Ilhas de Ascensão. A França por sua parte tem bases em N’Djamena (Chad); Niamey (Niger); Gao (Mali); Ouagadougou (Burkina Faso) e Dakar (Senegal).

Controle de conflitos regionais, minerais e ascenso revolucionário

Para poder entender os interesses de cada um dos países envolvidos no conflito precisamos entender os interesses em relação ao controle de conflitos regionais, a extração de minerais e os ascenso revolucionário no Sudão.

Há uma grande preocupação das potências capitalistas de que não haja grandes conflitos na região do Golfo do Adén, já ameaçado pelo guerra civil no Yemen e também pela instabilidade na Somalia, e com a possibilidade da balcanização do país e a criação de outros dois países: Somalilandia e Puntlandia

No Sahel há décadas os EUA têm grande preocupação com o Niger que é quinto maior produtor mundial de urânio, sendo em 2021 o responsável por 25% do urânio fornecido para a União Europeia. Esse urânio é explorado pela empresa Orano (ex Areva) de capital francês. As quatro bases militares do EUA no país se explicam pela exploração e comercialização de urânio. Por outro lado, no Sahel há um claro enfraquecimento do imperialismo francês e a entrada em cena dos russos através do Grupo Wagner. Os EUA e a União Europeia sabem que o Grupo Wagner oferece proteção aos ditadores da região que em troca recebem autorização para explorar ouro e diamante, configurando uma das formas de burlar os embargos comerciais e financeiros à Rússia por conta da invasão da Ucrania. Tudo começou com a proteção ao questionado ditador Faustin Archange Touadera, da República Centro Africana. Depois se estendeu para o Mali e Burkina Fasso.

O ascenso revolucionário vivido no Sudão coloca em polvorosa a burguesia local e imperialista na medida que sabem da existência de inúmeros vasos comunicantes entre as populações dos países vizinhos e da possibilidade que os ares de rebeldia e ingovernabilidade tome conta de seus países. Por esse motivo, desde o início da crise com al Bashir muitos governos de países vizinhos simpatizavam com a oposição.

As partes em conflito e os interesses externos

Para poder explicar e localizar as partes em conflitos vamos tomar a conformação do Conselho Soberano de Transição, que assumiu em agosto de 2019 e que após algumas alterações seguiu governando até a explosão do conflito militar no dia 15 de abril. O Conselho Soberano de Transição era conformado por cinco militares, entre eles el Burhan e Hemedti; cinco civis das Forças de Liberdade e Mudança (FFC) e um outro membro escolhido em comum acordo entre os militares e os civis. Esse décimo primeiro nome era: Abdalla Hamdok, que foi escolhido como primeiro ministro. Esses três personagens de fato, encarnam três diferentes projetos e através desses personagens vamos buscar entender o tabuleiro de xadrez da guerra atual

General Abdel Fattah al-Burhan

El Burhan herdou todo o aparato militar de al Bashir. É defensor incondicional da participação dos militares nas mais de 200 empresas nas quais os membros das Forças Armadas do Sudão têm controle total ou parcial. Dessa forma, até agora tem tido o apoio incondicional das FAS.

O Sudão e o Egito são aliados históricos e atualmente lutam contra a construção da Represa de Renascimento Etíope, construída com financiamento do Exim Bank of China, a parte civil pela WEBUILD (Salini Impregilo) italiana e as turbinsa fornecidas pela francesa Alston. O Egito e o Sudão são contra a construção da barragem, pois milhões de agricultores em ambos os países dependem do rio Nilo para sua subsistência. Afirmam que a construção dos reservatórios da represa levará ao aumento da evaporação, reduzindo a quantidade de água disponível para agricultura. Além disso, o Egito considera que os fluxos de água serão reduzidos na hidrelétrica de Aswan.

Desde antes da queda de al Bashir a relação prioritária do Sudão já era com a China. Primeiro por que os EUA havia decretado vários embargos contra o Sudão e o acusava de ser patrocinador do terrorismo internacional Em segundo lugar a China tem importantes interesses materiais no país, em especial na área de petróleo. A Khartoum Refinary Company é uma empresa de alta tecnologia e produtividade, na qual 50% das ações pertence a CNPC (China National Petroleun Corporation) e os outros 50% estão controlados pelo Estado sudanês através dos militares. A China também controla 95% da importante indústria petroquímica, Khartoum Petrochemical. O outro grande negócio chines é CNODC Petrochemical Trading Co. Essa empresa é de propriedade da CNPC. A outra atividade importante da China no país está relacionada à construção de oleodutos e gasodutos a partir do o Sudão Sul para que sejam exportados via Port Sudan através do Mar Vermelho.

El Burhan também tem o apoio da Arabia Saudita pois um dos grandes investimentos desse país é a cidade futurística de Neon, localizada no Mar Vermelho, no Golfo de Aqaba, e para que o empreendimento tenha sucesso se faz necessário que não haja conflitos na região. Ainda durante o governo al Bashir, do qual el Burham é seguidor e herdeiro de ideias, o parlamento sudanês aprovou uma lei que permite a Arabia Saudita arrendar por 99 anos um milhão de acres das férteis terra de Setit e Upper Atbara. É um acordo colonial, denunciou a Associação Nubia de Luta Contra Barragens.

General Mohamed “Hemedti” Hamdan Dagalo

Na condição de vice-presidente Hemedti esteve em quatro países e concidentemente são os que agora o apoiam. São eles: Rússia, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Sudão Sul.

O grande aliado de Hemedti, sem dúvida, é a Rússia. A relação do Estado Russo com o Estado Sudanês se dá através das ações conjuntas do Grupo Wagner e as milícias das ações das Forças de Apoio Rápido (RSF). Como são grupos de milicianos, obviamente, não são relações transparentes, são relações para delinquir, explorar, traficar e comercializar ilegalmente o ouro. Essa relação ganhou maior força após o Grupo Wagner iniciar suas operações na Republica Centro Africana e estender seus tentáculos no Sahel, em especial no Mali e Burkina Faso.

Os Emirados Árabes Unidos (EAU) têm longa história de colaboração com Hemedti. Foram os EAU que criaram e capitalizaram um banco de desenvolvimento em Darfur após o genocídio praticado na região pela então milícia Janjaweed e que permitiu a Hemedti comprar apoios regionais. Em troca os EAU se associaram na exploração do ouro na região.

A Etiópia é outro aliado de Hemedti na medida que al Burham e os militares das Forças Armadas do Sudão junto com o Egito estão contra a construção da Represa de Renascimento Etíope, Hemedti se coloca ao lado da Etiópia para enfraquecer el Burham.

A região de Darfur onde Hemedti ganhou projeção e onde ele possui vários centros de exploração de ouro, faz fronteira com a Republica Centro Africana e o Chad.

Faustin Archange Touadera, da Republica Centro Africana, foi eleito em 2016. Desde então o país esteve convulsionado por uma guerra civil. Touadera controlava apenas um quinto do país e a outra parte estava dividida em uma dúzia de milicias financiadas por empresas de exploração de madeira e de minérios. Diante da ingovernabilidade, Touadera negociou diretamente com Putin o envio do Grupo Wagner, em troca os russos receberam várias concessões para minerar diamante e ouro. As negociações impostas às milícias locais pelos mercenários russos permitiram que empresas de diamante como De Beers e Signet voltassem a comprar diamante de pequenos produtores locais. Hemedti era um velho colaborador do Grupo Wagner e nessa conjuntura foi possível construir um triângulo Tuodera-Hemedti-Grupo Wagner para exploração e contrabando de ouro pelas fronteiras de Darfur e de aí embarcar para fora do continente africano.

Em abril de 2021 o Chad elegeu Idriss Deby Itno pela sexta vez. Antes de tomar o poder morreu, ou foi assassinado, durante uma viagem. Com a crise aberta, devido à morte inesperada, o imperialismo francês impôs o filho de Idriss, Mahamat “Kaka” Déby. A rejeição no meio militar e civil foi tão grande que o Presidente Emmanuel Macron foi obrigado a deixar o Palais de l’Élysée às pressas e dirigir-se a N’Djamena, capital do Chade, para negociar a posse de Mahamat. Os grupos armados de oposição que já atuavam no país ganharam força e apoio de Hemedti para atuarem a partir de Darfur.

Abdalla Hamdok Al-Kinani

Os EUA secundarizaram seus investimentos na África subsaariana. A China ocupou esse vácuo e hoje produz 70% da produção mundial de cobalto que são extraídos fundamentalmente da RD Congo. Em 2020, das 19 minas produtoras de cobalto naquele país, 15 foram criadas pelos chineses ou compradas dos EUA.

No caso especifico do Sudão, os EUA os acusavam de patrocinador do terrorismo internacional e como consequência decretou diversas formas de embargo ao Sudão. Assim, os investimentos norte-americanos em solo sudanês não são relevantes. Em 2022, depois de 25 anos os EUA designaram um Embaixador no Sudão, o que também demonstra o isolamento entre ambas as nações.

Os atuais interesses dos EUA no Sudão são fundamentalmente dois: a) tentar retomar sua presença econômica no país através da aquisição das 200 empresas controladas direta ou indiretamente pelos militares; b) frente a situação revolucionária vivida no Sudão, os EUA temem pela possibilidade de contaminação dessa onda revolucionária nos países vizinhos e dessa forma aumentar a instabilidade no Golfo de Adén. A política dos EUA está baseada no tripé: desmobilização das Forças de Apoio Rápido, o fim do ciclo de governos militares e democratização do país. Com essas três medidas acreditam que podem cooptar e controlar o ascenso via democracia burguesa.

Dentro do Conselho de Transição Soberano, Hamdok, sempre, foi a voz dos interesses norte-americanos. Segundo Hamdok: “Todos os exércitos do mundo investem em empresas de defesa, mas é inaceitável que os militares e os serviços de segurança o façam em setores produtivos e, assim, concorram com o setor privado”. Uma clara declaração de apoio a política dos EUA em relação a venda da participação militar nas empresas.

O imperial Congresso dos EUA, com os votos de democratas e republicanos, aprovou a “Lei de Transição Democrática, Responsabilidade e Transparência Fiscal do Sudão de 2020”. O projeto de lei autorizava que o Departamento de Estado dos EUA, entre outras coisas, apontasse a necessidade “uma avaliação das reformas do setor de segurança pelo governo sudanês, como a desmobilização de milícias e a promoção do controle civil sobre as forças armadas” Controle civil das forças armadas, portanto, significava discutir o papel do exército nos assuntos econômicos e políticos do país.

O golpe de outubro de 2021 foi para controlar a qualquer preço o movimento de massas e afastar o incomodo representante dos EUA. Hamdok caiu e por pressão americana voltou, mas acabou renunciando algumas semanas depois. O golpe de outubro transformou o governo tripartite (militares, milicianos e civis) em um governo bipartite com a exclusão do representante civil. Assim foi aberta as condições para um enfrentamento final que começou em 15 de abril. Vide artigo “Sudão: sério risco de guerra civil e envolvimento dos países vizinhos”[1]

China, Rússia e EUA e a guerra

A China tem importantes investimento na região denominada Chifre da África. Entre esses investimentos podemos citar: a) Sudão Sul: exploração petroleira através das empresas Greater Pioneer Operating Company (GPOC) e Dar Petroleum Operating Company (DPOC) nessas empresas a China tem o controle de 40 e 41% das ações respectivamente; b) Etiópia: Represa de Renascimento Etíope financiada pelo Exim Bank of China e o Complexo Ferroviário, com 756 Km, ligando Addis Abeba ao litoral de Djibouti; c) Quênia: complexo ferroviário de Nairobi a Mombasa com 472 km); Sudão: investimentos em refinaria, oleodutos e gasodutos, etc; Egito, além do empréstimos chineses para pagar o FMI há diversos investimentos na construção da Nova Capital Administrativa (NAC)

A extensão do conflito Sudão, objetivamente irá contra os interesses chineses na região. Aparentemente a política da China tem sido mais pragmática ou pelo menos não ostensiva na medida que até o momento não identificamos a presença do People’s Liberation Army – Exército Popular de Libertação) (PLA) no conflito. Dos poucos registros disponíveis de envio de armas, temos como exemplo na guerra da Etiópia contra Tigray quando que enviaram três Wing Loong I[2]

A Rússia apesar do apoio a Hemedit parece ter outra política. Aposta na continuidade da guerra pois a mesma debilita o funcionamento do Estado sudanês, seus mecanismos de controle e isso favorece o tráfico e o contrabando de ouro. Isso explica a posição de Anna Evstigneeva, representante da Rússia na reunião da ONU no dia 25.04. Ela afirmou: “poderes externos tentaram impor a transferência de autoridade para poderes civis artificialmente” e conclui que as tentativas de transição do Sudão agiram como um catalisador para o conflito de Burhan-Hemedti. E mais uma vez afirmou: “a frágil estabilidade no país foi vítima dessas tentativas de estabelecer uma suposta democracia.”

Ao mesmo tempo a mina de ouro de propriedade russa, localizada em al-Ibediyya, 320 quilômetros ao norte de Cartum, segue produzindo, fortemente protegida pelos homens armados de Hemedti.

Os EUA seguem com a linha de impedir a proliferação do conflito para outras áreas. O ex-primeiro-ministro do Sudão, Abdallah Hamdok, sempre muito atento aos interesses dos EUA alertou que os confrontos em andamento das Forças Armadas Sudanesas (SAF) e das Forças de Apoio Rápido (RSF) podem se tornar um “pesadelo para o mundo” se não forem interrompidos o mais rápido possível.

Para o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, com a guerra o cenário mudou mas a política segue com a mesma matriz pois segundo ele: “Os civis devem definir o caminho do Sudão” Em um vídeo gravado e que está circulando no Sudão, Blinken, dirigindo-se diretamente ao público sudanês enfatiza: “Quero deixar claro que os civis do Sudão devem ser os únicos a definir o caminho do Sudão daqui para frente. Vocês devem liderar um processo político para restaurar a transição democrática do Sudão e formar um governo civil”.

Os trabalhadores, camponeses e a juventude frente a guerra

Hemedti e el Burhan têm as mãos sujas de sangue no genocídio de Darfur, na guerra contra o Sudão Sul e no envio de soldados para matar o povo do Yemen a serviço da Republica Árabe Unida. Nenhuma confiança e nenhum acordo no presente ou no futuro com nesses genocidas. Dizer nenhuma confiança ou acordo pode parecer o óbvio, mas não é, pois, o Conselho Soberano de Transição do qual el Burhan e Hemedti eram as pessoas chaves, também contou com a participação da Associação dos Profissionais do Sudão e o do Partido Comunista.

Frente aos ataques aos hospitais; destruição de escolas, sistema de água e de luz; escassez de alimentos; a violência contra a população em geral e em especial às mulheres, é preciso organizar comitês de autodefesa que defendam as instalações públicas, organize a expropriação de alimentos escondidos pela grande burguesia e, acima de tudo, proteja a população contra a violência praticada pelas Forças Armadas do Sudão e as Forças de Apoio Rápido.

Frente aos inúmeros jogos de interesses das potencias capitalistas no Sudão, é preciso em primeiro lugar, lutar pela II Independência rumo a construção de uma sociedade sem classes, uma sociedade socialista. Mas, isso só será possível se desde já se inicie a construção de uma organização política revolucionária.

[1] https://litci.org/pt/2023/04/24/sudao-serio-risco-de-guerra-civil-e-envolvimento-dos-paises-vizinhos/

[2] Wing Loong 1 , é um veículo aéreo não tripulado (UAV) de média altitude e longa duração (MALE ), desenvolvido pelo Chengdu Aircraft Industry Group na República Popular da China . Destinado ao uso como plataforma de vigilância e reconhecimento aéreo