Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

No final de agosto, foi publicado o Atlas da Violência 2020, organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a partir dos dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. E, de imediato, é preciso lembrar que os dados são relativos à década de 2008 a 2018. Ou seja, aos anos nos quais o Brasil foi governado por Lula, Dilma e, por fim, seu vice, Temer.

O levantamento traz números que “gritam” uma realidade deplorável, escancaram a verdadeira e irreversivelmente desumana face do capitalismo e a forma como violência social e opressão (racista, machista e LGBTfóbica) se combinam para ceifar precoce e brutalmente a vida de milhares. Um breve resumo dá a dimensão desta tragédia.

Detalhe de ato em São Paulo contra o racismo

Em uma década, 628 mil brasileiros(as) foram vítimas de homicídio. Somente em 2018, 57.956 pessoas foram assassinadas. A enorme maioria (43,8 mil) era negra, tinha de 15 a 29 anos (quase 31 mil) e uma mulher foi morta a cada duas horas. E mesmo que a invisibilização continue marcando a violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexos (LGBTIs), também há evidências de que ela só tem aumentado (em 19,8%, de 2017 para 2018).

Como mencionado, não estamos falando de um Brasil governado por Bolsonaro, um miliciano e reconhecido propagador do ódio contra negros, mulheres e LGBTIs, que infecta as “estruturas” do país com sua violência fundamentalista. As sucessivas edições do Atlas mostram que a realidade vai pra muito além das ilusões pregadas pelos defensores do capitalismo “civilizado”, como dizem os tucanos; de “cara humana”, como pregam os petistas, ou reformado por uma tal “revolução solidária”, como quer o PSOL.

Por trás deste verdadeiro genocídio não estão simplesmente “estruturas” ou instituições podres ou o que se chama de “racismo estrutural”; mas, sim, a própria essência do capitalismo e de sua “lógica”: elevar a exploração a níveis desumanos, ao custo de desigualdades que alimentam a violência e a criminalidade. E, para tal, tratar tudo, inclusive seres humanos, como “mercadorias descartáveis”.

Guerra suja e racista

Essas 60 mil mortes somente em 2018 correspondem a uma taxa de 27,8 mortes por 100 mil habitantes e é o menor nível de homicídios em quatro anos. Algo, é preciso dizer, questionado no próprio Atlas, já que um dos fatores que pode ter contribuído para a redução tem a ver com a piora na coleta e qualificação dos dados, evidenciada, por exemplo, pelo aumento, em 25,7% (em relação a 2017), do total de mortes violentas com causa indeterminada (MVCI), o que, certamente, mascara muitos homicídios.

Contudo, para se ter uma ideia do significado, basta saber que, segundo um levantamento anual publicado pelo The Armed Conflict: Location & Event Data Project (ACLED, “Projeto Dados sobre os Conflitos Armados: Localização e Eventos”), em 2018 foram registrados 41 mil mortos em todos os conflitos armados (situações de guerra) ao redor do mundo.

É por isso que podemos dizer que há uma guerra suja em curso em nosso país. Uma guerra alimentada por uma burguesia cuja ganância insaciável empareda a maioria do povo nas trincheiras da miséria, onde a falta de tudo aumenta a criminalidade e a violência, quando não a promove diretamente, através de agentes fardados, encapuzados, jagunços, milicianos ou matadores de aluguel.

Uma guerra que num país com uma história fortemente alicerçada em um passado escravocrata também nos obriga a falar em um processo constante de genocídio da população negra. Este é um país onde ser um homem negro equivale a ter 74% mais chances de ser assassinado do que um não-negro e a taxa de homicídios é 64% maior para mulheres negras. Um país onde 75,7% das pessoas que sofreram mortes violentas eram negras; o que significa 43,8 mil pessoas cujas vidas foram ceifadas.

Ser negro é ter, em média, 2,7 vezes mais chances de ser assassinado

É evidente que toda violência social tem um forte caráter de classe, já que a maioria das mortes ocorre nas periferias e está relacionada às miseráveis condições de vida da maioria da população pobre e periférica. Um indicador disto é que 74,3% dos homens e 66,2% das mulheres vítimas de homicídios têm apenas sete anos de escolaridade.

Contudo, só quem já tenha sido cegado pelo mito da democracia racial ou se recuse a interpretar os dados não enxerga o evidente caráter racista destas mortes. Como mencionado, a taxa de homicídios no Brasil é de 27,8 para cada 100 mil habitantes; mas, quando a população é separada em grupos étnico-raciais, o abismo é gritante. Dentre os negros (somando-se os que se autodeclaram pardos ou pretos, de acordo com os critérios do IBGE), a média sobe para 37,8 para cada 100 mil; enquanto dentre os não-negros (brancos, amarelos e indígenas) ela é de 13,9/100 mil.

De forma sintética e direta, estes números significam que na média nacional, em 2018, pra cada não-negro que foi assassinado, 2,7 negros(as) foram mortos. E este número pode piorar ainda mais, a depender do estado. Nas Alagoas, a desproporção é de 17 mortos negros(as) para cada não-negro assassinado; na Paraíba, 8,9 negros para cada não-negro; no Sergipe, 5,1 e no Ceará, 4,7.

Mas isto, ainda, não é tudo. Repetindo a mesma tendência dos anos anteriores, o Atlas constatou tendências opostas em termos raciais: o número de negros assassinados não para de crescer, enquanto o de brancos continua caindo.

Entre 2008 e 2018, o número de homicídios de pessoas negras cresceu 11,5% (indo de 32,7 mil para 43,8 mil; ou seja, de 34 para 37,8/100mil), já o de pessoas não-negras diminuiu em 12,9% (de 15 mil para 12,7 mil; ou de 15,9 para 13,9/100 mil).

E considerando-se a taxa nacional de 37,8 mortos negros para cada 100 mil, também se pode verificar a gravidade da situação em alguns estados. A pior delas é em Roraima (com 87,5 por 100 mil habitantes), seguida pelo Rio Grande do Norte (71,6), Ceará (69,5), Pará (60,0), Sergipe (59,4) e Amapá (58,3). E a maior variação na década aconteceu no Acre, onde os assassinatos de negros(as) cresceram 300%, seguido por Roraima (264,1%) e Ceará (187,5%).

Rio de Janeiro – Em ato Contra o Genocídio da Juventude Negra, manifestantes protestam contra a morte de cinco jovens negros por PMs no último sábado (28), em Costa Barros, na zona norte (Tomaz Silva/Agência Brasil)

Mulheres: uma morte a cada 2 horas, 68% são negras

Mesmo considerando-se que 91,8% das vítimas eram homens, o aumento da violência contra as mulheres também é evidenciado pelo Atlas. Em 2018, foram assassinadas 4.519 mulheres; o que significou uma morte a cada duas horas, uma taxa de 4,3 mortes para cada 100 mil mulheres e um aumento, entre 2008 e 2018, de 4,2% nos assassinatos de mulheres.

Assim como acontece no caso dos homens, o perfil racial das mortes violentas segue em sentidos opostos. Enquanto a taxa de homicídios contra mulheres não-negras caiu de 3,2 por 100 mil habitantes, em 2008, para 2,8, em 2018 (ou seja, uma queda de 11,7%); entre as mulheres negras, a taxa aumentou de 4,6/100 mil, em 2008, para 5,2/100 mil, dez anos depois (uma alta de 12,4%).

E também no que se refere ao feminicídio, há estados em que os números dispararam de forma absurda. Em 2018, a taxa mais do que dobrou no Ceará (278,6%), Roraima (186,8%) e Acre (126,6%). Mas, é a combinação entre machismo e racismo que, novamente, chama a atenção. Do total de mulheres assassinadas no país, 68% eram negras.

Algo que também se refletiu em alguns estados de forma dramática, pra não dizer trágica. No Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba as taxas de homicídios de mulheres negras foram quase quatro vezes maiores do que aquelas de mulheres não-negras. E, mais uma vez, Alagoas assume um lamentável primeiro lugar: os homicídios foram quase sete vezes maiores entre as mulheres negras, quando comparadas às não-negras.

Quase metade destas mulheres assassinadas era jovem: 16,2% tinham entre 15 e 19 anos; 14% estavam entre 20 a 24 anos, e 11,7% na faixa de 25 a 29 anos.  Um perfil que piora ainda mais quando também é considerada a população masculina.

Vidas de jovens negros não importam, principalmente pra polícia

Nada menos que 53,3% das quase 60 mil pessoas assassinadas em 2018 (em números concretos, 30.873 pessoas) eram jovens entre 15 e 29 anos. Um índice que cresceu sem parar na última década, aumentando em 13,3%, entre 2008 e 2018. E lembrando que o índice nacional é de 27,8 assassinatos para cada 100 mil habitantes, quando se faz um recorde considerando apenas os mais jovens, esta taxa dispara para 60,4/100 mil.

Um genocídio cuja real dimensão vai pra muito além do número já absurdo, pois o dado mais aterrador é que, em 2018, o homicídio foi a principal causa das mortes de 55,6% dos homens entre 15 e 19 anos; de 52,2%, dos que tinham entre 20 e 24 anos e 43,7% dos que estavam entre 25 e 29 anos.

E, aqui, cabe um parêntese, recorrendo a outra fonte, uma pesquisa publicada pelo portal “Poder 360”, em 04/06/2020, para apontar para um dos principais responsáveis por estas mortes. Seja pela omissão cúmplice, seja pela ação direta: as chamadas forças de segurança pública.

Quanto à omissão, basta uma palavra: impunidade. Colocada a serviço da “defesa” e “segurança” das elites e sua sagrada propriedade privada, as polícias, particularmente a militar, pouco se importam com os corpos caídos nas ruas e vielas da periferia. Contudo, a pior é que são eles próprios que banalizam a violência ou são agentes diretos da violência.

Através de um estudo comparado sobre a letalidade policial no Brasil (com 211 milhões de habitantes) e nos Estados Unidos (333,9 milhões), o “Poder 360” destacou que, em 2019, a polícia norte-americana matou 1.099. Dessas, 259 eram negras (24%). No Brasil, a polícia fez quase seis vezes mais vítimas: 5.804. Do total, 75% (ou 4.533) eram negros.

Considerando-se as respectivas populações, a primeira coisa a se constatar é que racismo é racismo em qualquer canto. Nos EUA (onde a população negra gira em torno de 11% ou 12%) ou aqui, no Brasil (onde somos 56%), a chance, totalmente desproporcional, de um negro ser morto pela polícia em relação a um branco é praticamente a mesma: três vezes maior nos EUA; 2,7 maior, no Brasil.

Contudo, mesmo se comparado a um dos Estados mais policialescos do mundo (os EUA), o fato de termos uma polícia que é herdeira dos métodos dos jagunços, capitães-do-mato, coronéis e, acima de tudo, da Ditadura Militar, faz uma diferença brutal na quantidade de assassinatos racistas, o que explica porque nossa polícia matou 17 vezes mais negros aqui.

Violência LGBTfóbica: ainda invisível, mas crescente

O Atlas traz, pela primeira vez, dados em relação à violência contra LGBTs. Dados que, segundo os pesquisadores responsáveis pelo Atlas, ainda são muito parciais devido a invisibilização que é uma característica central da própria opressão LGBTfóbica.

Recorrendo às denúncias registradas pelo Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), e aos registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, o Atlas constata que de 2017 para 2018, houve aumento de 19,8% em casos (de 7.701 para 9.223) de violência LGBTfóbica.

De acordo com dados do Sinan, a violência psicológica aumentou 7,4%, passando de 1.693 casos para 1.819; os casos de violência física aumentaram 10,9% (de 4.566 para 5.065) e já em relação a outros tipos de violência, o aumento é gritante: 76,8% (de 1.192 para 2.108 casos).

Além disso, apesar de uma queda, entre 2017 e 2018, de 28% nos registros de homicídios contra a população LGBTI, o Atlas aponta um aumento de 88% nas tentativas de homicídios entre essa parcela da população, segundo os dados do Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Com Bolsonaro pode ser pior, mas no capitalismo é sempre igual

Não há dúvidas de que, se não derrotarmos Bolsonaro e seu projeto miliciano e de ultradireita, essa situação só tende a piorar, alimentada pelo discurso de ódio de gentalha como Ricardo Salles e Damares ou pregado pelos militares que infestam o Planalto. Contudo, isso não pode servir como justificativa para se fechar os olhos diante de outro fato inquestionável: o Atlas traz dados que correspondem aos governos petistas de Lula (até 2010), Dilma e de seu vice, Temer (até 2018).

E mais: como discutimos num artigo em que analisamos o Atlas da Violência 2017 (Golpes fatais: o genocídio negro sob os governos petistas), o aumento da violência, bem como o perfil racial deste verdadeiro genocídio, se mantiveram constantes desde o início dos anos 2000.

Mesmo assim, há quem insista que os governos petistas não têm responsabilidade alguma sobre isto. E é óbvio que nós não colocamos as armas que cometeram estes crimes nas mãos de Lula ou Dilma. Mas, o problema é que foram eles que não só não as tiraram das mãos dos “suspeitos de sempre”, como também permitiram que atuassem livremente.

Mais precisamente, foram eles que os levaram para dentro de seus governos ou os transformaram em aliados, através de alguns de seus representantes mais nefastos, como Collor, Sarney, Jader Barbalho, Renan Calheiros, Paulo Maluf, Kátia Abreu ou Gilberto Kassab. Foram eles que entregaram as chaves dos cofres públicos para banqueiros e agentes do imperialismo como Guido Mantega e Henrique Meirelles e, anunciaram, orgulhosamente, que “se tem uma coisa que nenhum empresário brasileiro pode se queixar nos meus seis anos de mandato é que nunca se ganhou tanto dinheiro como no meu governo”, como Lula declarou ao jornal Folha de S. Paulo, em 22 de maio de 2009.

O resultado não poderia ser outro: maior exploração, mais violência social. E o fato de que essa violência se abata principalmente sobre os setores historicamente marginalizados, como negros e negras, como também tenha aumentado exatamente dentre eles, enquanto diminuiu dentre outros setores étnicos, também é evidência de outra coisa: as pífias políticas compensatórias do PT (que, hoje, todo mundo, de Bolsonaro ao PSOL, tenta requentar) nunca foram suficientes para levar paz ou justiça para os mais explorados e oprimidos.