Nos últimos dias foram publicadas notícias acusando a Seleção da Croácia de ser fascista. Isso devido a que um de seus jogadores, o zagueiro Domagaj Vida, após fazer os dois gols que desclassificaram a Rússia na Copa do Mundo, ter dedicado a vitória à Ucrânia, país que sofre com a recente anexação da Crimeia pela Rússia e a luta separatista pró-russa em sua região oriental.

O jogador em questão havia jogado muito tempo no time ucraniano Dinamo de Kiev, tendo lá vários amigos e companheiros, e a eles foi direcionada sua mensagem de solidariedade. A partir daí, vários sites ditos de esquerda começaram uma campanha para acusar Vida e sua seleção de fascistas. Se apoiaram em algumas declarações também de cunho nacionalista da seleção croata em ocasiões anteriores.

Uma infeliz postagem publicada no Blog de Juca Kfouri, que se deixou levar por essas informações e não checou sua veracidade, faz essas acusações. Um outro artigo publicado no portal da Resistência/PSOL vai muito mais além e diz que a declaração de apoio aos ucranianos contra a Rússia foi um apoio “ao governo fascista em Kiev”. A tal declaração “fascista” foi feita por ambos atletas que disseram “Glória à Ucrânia” e “esta vitória é para o Dínamo e para a Ucrânia”.

O artigo é um amontoado de falsificações sobre a Croácia e a Ucrânia. Repete toda a ladainha estalinista sobre os croatas como apoiadores do fascismo, justificativa para submetê-los ao domínio sérvio.

É verdade que houve correntes nacionalistas croatas durante a 2ª Guerra Mundial que colaboraram com Hitler em nome deste declarar a independência da Croácia em relação à Iugoslávia. Hitler se apoiou para tal na justa reivindicação do povo croata em se livrar da opressão sérvia. Os militantes comunistas de então lutaram contra este Estado fantoche de Hitler e pela unificação dos povos dos Balcãs numa federação socialista, que pudesse superar os antagonismos nacionais da região, garantindo os direitos nacionais de cada etnia.

Mas o artigo se cala sobre o fato de que num passado muito mais recente, já nos anos 1990, justamente quando os atuais jogadores da seleção croata viveram suas infâncias e já bem depois da restauração do capitalismo na antiga Iugoslávia (levada a cabo, diga-se de passagem, por Tito e pelo Partido Comunista local), a Sérvia levou adiante uma sangrenta guerra contra a independência da Croácia e Bósnia, massacrando mais de 30 mil pessoas destas nacionalidades. E o atual nacionalismo croata é uma reação a este massacre. Mesmo que se expresse de forma equivocada, relembrando organizações de extrema-direita da época da 2ª Guerra, é um ódio justo contra a opressão de sua nação.

O problema central do artigo publicado é não compreender que os nacionalismos croata e ucraniano são nacionalismos de nações oprimidas, enquanto que os nacionalismos sérvio e russo são nacionalismos de nações opressoras. Pior que isso, denunciam violentamente os nacionalismos croata e ucraniano e se calam olimpicamente em relação aos ultrarreacionários nacionalismos sérvio e russo.

E para justificar, vale qualquer coisa. Para o autor do artigo, o justo grito de “Glória à Ucrânia” é um grito fascista porque seria usado pelos fascistas na Ucrânia. O ex-candidato a ditador da Ucrânia, Viktor Yanukovich, é elevado quase ao status de herói, por “se recusar a assinar um tratado de aproximação com a União Européia, e se aproximar política, econômica e militarmente da Rússia”. E começa a lenda de que organizações de direita e extrema-direita organizaram manifestações que puseram fim ao governo de Yanukovich. Como resultado, “milícias fascistas estão no poder na Ucrânia”. A prova é que teriam espancado ativistas e membros do Partido Comunista e que, no poder, tenham assinado o tratado com a União Europeia, criminalizado a língua russa e os partidos de esquerda e o passado soviético do país.

Como “reação” então, Putin teria anexado a Crimeia, território “de imensa maioria de forças e militantes pró-rússia”. E contra o novo governo da Ucrânia, “surgiram” no leste do país “manifestações pró-Rússia, que terminaram por criar Repúblicas autônomas”. Então as “milícias de extrema-direita ucranianas enfrentaram os separatistas com saldo de mais de 10 mil mortos”.

Só faltou repetir a acusação da rede de TV estatal russa de que em Kiev os fascistas estavam crucificando crianças ortodoxas em praça pública, para completar o quadro das calúnias contra a revolução ucraniana.

Vamos à verdade

Yanukovich nunca resistiu à União Europeia. Como toda a burguesia ucraniana, sempre jogou com as contradições entre a Rússia e a União Europeia, vendendo seu país ora por rublos, ora por euros. O tal tratado de aproximação com a UE foi elaborado e negociado por ele mesmo. Depois de negociado, voltou atrás por pressão russa, e como manobra para arrancar algo mais da UE.

Não houve grandes manifestações em defesa das relações com a UE. Houve uma minúscula manifestação de 7 mil estudantes em favor da assinatura do acordo. Mas como regime autoritário que era, Yanukovich reprimiu duramente estes estudantes. E a repressão foi o estopim para a manifestação de 500 mil pessoas no dia seguinte, indignadas com o regime repressor. Os 500 mil saíram as ruas contra um governo repressor e autoritário, que vendia seu país à UE e à Rússia, e não em defesa da UE.

Nas manifestações participaram sim correntes de direita nacionalistas. Seu peso era ínfimo. Nas primeiras eleições pós-derrubada de Yanukovich, a extrema-direita mal chegou a 1% na votação, menos do que havia recebido ainda sob o governo de Yanukovich (3%).

Mas o principal é que as correntes nacionalistas de direita puderam jogar seu papel nas manifestações devido à traição de praticamente toda a esquerda, que ficou em casa olhando pela janela a revolução com 500 mil pessoas marchando pelas ruas de Kiev.

O Partido Comunista Ucraniano foi talvez a única corrente política do país que teve a cara de pau de sair às ruas para defender o governo ditatorial de Yanukovich. É por isso que foram rechaçados pelas ruas Não por serem “de esquerda”, mas por defenderem o governo autoritário, repressor e vende-pátria de Yanukovich! Não houve tampouco nenhuma “criminalização” da língua russa na Ucrânia. O que houve foi a definição do ucraniano como língua oficial nacional do país, enquanto o russo foi definido como uma língua regional, de uma parte do país. Não há nada de absurdo nesta lei, ainda mais se se leva em consideração os séculos de opressão russa sobre a Ucrânia. Qualquer nação oprimida tem o total direito de defender seu idioma e cultura, resguardando os direitos das minorias nacionais. Não há nenhum “governo fascista” na Ucrânia. Há um governo burguês “normal”, que como qualquer governo burguês de país semicolonial, explora “seus” trabalhadores e garante os lucros de “sua” burguesia e dos investidores estrangeiros.

Importante ainda lembrar que antes de se concretizar a queda de Yanukovich, houve uma tentativa de acordo político para mantê-lo no poder até a realização de novas eleições. Este acordo foi fechado entre o governo Yanukovich, as correntes de oposição pró-UE, a UE, os EUA e… Putin! Todos juntos tentaram manter Yanukovihc no poder e organizar uma saída negociada. Quando os “líderes” da oposição levaram estas propostas à Praça Maidan, o centro das manifestações, as massas rejeitaram o acordão, dando de quebra ainda uma surra nos tais “líderes”. Foi assim que caiu Yanukovich, como resultado de uma revolução, e não de uma conspiração. Como dizia o velho Trotsky, o traço mais característico de uma revolução é quando as massas tomam para si as decisões políticas, que em condições normais deixam nas mãos dos políticos.

A derrubada do ditador amigo do Kremlin, ao contrário das lendas, gerou grande simpatia inicial na Rússia, com as pessoas comentando que havia que ter a coragem dos ucranianos em se livrar do canalha de plantão no governo. Foi por essa razão que Putin respondeu com tanta dureza: sentiu que a revolução ucraniana o ameaçava diretamente. Daí veio a anexação da Crimeia e o envio de mercenários ao leste ucraniano e a euforia chauvinista grã-russa que se seguiu, com uma grande campanha de mentiras e calúnias contra a Ucrânia.

A anexação da Crimeia e a provocação da divisão da Ucrânia entre leste e oeste com mercenários foi a resposta contrarrevolucionária de Putin para acabar com a revolução ucraniana. Para afogá-la no sangue dos 10 mil mortos no conflito. A tal “imensa maioria pró-Rússia” na Crimeia foi determinada num plebiscito fraudulento realizado sob ocupação militar russa, sem tampouco levar em conta que a maioria russa na península foi criada artificialmente por décadas de deportações dos tártaros da Crimeia, primeiro pelo Império russo, depois por Stalin. Estes tártaros lutam até hoje pelo seu direito de retornar à Crimeia e foram contra a anexação pela Rússia do território, defendendo que a Crimeia seguisse como parte do estado ucraniano, com autonomia.

Da mesma maneira, Putin enviou mercenários ao Leste ucraniano para dividir o país. Os próprios relatos públicos destes mercenários mostram como a população local não os apoiava. A população do leste ucraniano, culturalmente muito próxima à Rússia, se manteve distante, alheia do conjunto do processo político. Essa é a razão de fundo de porquê Putin conseguiu dividir o país, a revolução ucraniana não chegou ao leste do país. É nesta divisão que se apoia também o atual presidente da Ucrânia, Poroshenko, que segue vendendo o país como seu antecessor.

A única coisa que se pode perdoar ao autor do artigo, é que ele é coerente com toda a “elaboração” da direção de sua corrente, de que há uma onda reacionária e crescimento do fascismo por todos os lados e por isso há que se juntar toda a esquerda, mesmo que seja com canalhas como o Partido Comunista Ucraniano ou Zé Dirceu e sua turma. O autor simplesmente levou às últimas consequências esta elaboração. Seria simplesmente uma imensa bobagem a questão em relação à Seleção Croata de Futebol, se não envolvesse a vida de centenas de milhares de pessoas. O que converte a bobagem em uma bobagem criminosa.

Importante que se diga ainda que a manifestação de apoio à Ucrânia pelo jogador croata foi uma mensagem contra a política do governo russo em relação à Ucrânia, e não contra os russos em geral. Isso foi demonstrado pela torcida da Croácia no jogo seguinte, quando sua seleção derrotou a Inglaterra, ao abrir uma grande faixa no estádio escrita “Obrigado Rússia”, desvinculando a política do governo russo do povo russo em si.

Pois assim, que nesta final da Copa do Mundo, sem o peso de mentiras e calúnias, quem queira torcer pelo lindo futebol mostrado pela Croácia o possa fazer em paz. Do mesmo modo, quem queira torcer pela seleção talentosa francesa o possa também fazer em paz , independentemente do justo repúdio que se possa ter ao governo Macron.