PSTU-Campinas

Zuleide trabalha no Hospital Mario Gatti em Campinas (SP) e faz parte do Conselho Municipal de Saúde. No dia 28 de junho organizaram o primeiro protesto exigindo políticas públicas efetivas de combate à COVID-19 e condições seguras de trabalho aos profissionais da saúde. Defenderam o “Tranca Tudo” para reduzir o aumento do contágio na cidade e o “Fora Bolsonaro, Fora Doria e Jonas Donizete”.

Ela conta quais são os maiores desafios dos que profissionais que estão na linha de frente do combate à pandemia dentro dos hospitais. Descreve a situação preocupante que atravessaram no início da pandemia, quando não haviam EPIs adequados. E reclama que mesmo os trabalhadores que lidam com os doentes não tem acesso ao teste. “Não está sendo feito teste em todos os trabalhadores da linha de frente! Essa é a nossa maior queixa! Só realizam teste se o trabalhador apresentar sintomas de COVID-19”.

Segundo Zuleide “os hospitais municipais públicos já não têm mais vagas de leitos de UTI. Foi construído um hospital de campanha com 30 leitos para pacientes menos graves (…]. Mas, mesmo assim, o colapso do sistema de saúde é iminente”.

Por isso, alerta que “nós, trabalhadores da saúde, não vemos com bons olhos a tal ‘volta responsável’ do governo estadual. Segundo o próprio governo estadual, só pode voltar se tiver ocupação dos leitos de UTI abaixo de 80%. Estamos acima dessa lotação”. E denuncia a postura do prefeito Jonas Donizette (PSB) que “permitiu abertura de alguns comércios, por duas semanas. Depois disso, os casos aumentaram muito. E nós, estamos sentindo reflexo disso agora dentro do hospital”.

Ela reclama que as informações são restritas e falta uma ampla divulgação sobre o estágio de contágio na cidade. “Há uma grande subnotificação. Segundo as informações oficiais estaríamos com mais de oito mil contaminados, mas as pesquisas realizadas, e o que estamos vendo no dia a dia, mostram que nós devemos ter mais de 30 mil pessoas contaminadas na cidade”.

O movimento dos trabalhadores da saúde de Campinas terá continuidade e ela chama a população a se somar, dar caldo ao movimento, retomar as ruas, com os devidos cuidados de segurança, reivindicando medidas efetivas dos governos no combate a pandemia e defendendo o SUS.

Ela diz que “se não fosse o SUS nós estaríamos numa situação muito pior. Houve um processo de destruição da saúde pública e dos servidores públicos (…) um imenso processo de terceirização e privatização (…) mesmo com todas essas mazelas, o SUS está conseguindo cumprir um papel fundamental. O SUS atende todo mundo, do pobre que não pode ter convênio particular até o rico. Se o SUS colapsar, infelizmente nós vamos ter muitas mortes, principalmente do setor mais pauperizado da população.”

Confira a entrevista completa

  1. Como é trabalhar na linha de frente de combate à pandemia? Quais os maiores desafios no cotidiano de trabalho?

O primeiro caso apareceu no Hospital Mário Gatti no dia 22 de março. Era uma senhora que apresentava quadro de gripe, passou no pronto-socorro e fez uma tomografia, quando foi diagnosticado Covid-19. Não tínhamos os EPIs corretos, e nem preparo para lidar com a doença. Eu, como conselheira da Saúde, e alguns poucos profissionais, participamos de uma ‘vídeo aula’ que orientava como proceder e como reconhecer uma pessoa que estivesse com Covid-19. Mas foram pouquíssimas pessoas que tiveram esse treinamento.

Depois desse caso, chegaram EPIs adequados (máscara N95, visores, touca, avental de TNT, sapato). Mas apenas aos médicos que estavam diretamente com os pacientes da Covid, que trabalhavam numa sala improvisada, separada, onde atendiam os suspeitos. Mas a maioria dos profissionais, os outros médicos que atendiam em consultório, enfermeiros e outros profissionais do hospital não tinham todos EPIs necessários, apenas máscara, óculos e avental. Essa situação foi assustadora para a grande maioria dos profissionais de Saúde, porque não havia uma orientação normativa, um protocolo sobre como proceder e lidar com os casos suspeitos.

O maior desafio era como se proteger na linha de frente e como tratar esses pacientes. Como distinguir um paciente com gripe normal, já que estávamos na sazonalidade das doenças respiratórias.

Depois dos primeiros pacientes chegarem, o hospital resolveu fechar parte do ambulatório, separar os pacientes com sintomas dos demais. Criaram uma área especifica que chamamos de “covidário”. Mas conforme foi aumentando muito o número de pacientes, foram implantados outros quartos para receber os pacientes, e as outras especialidades foram sendo transferidas para os andares superiores.

  1. Os profissionais de saúde do Mario Gatti estão tendo acesso aos EPIs necessários e condições seguras de trabalho?

Nós, conselheiros municipais de saúde, recebemos muitas denúncias sobre falta de EPIs e falta de informações aos profissionais. Denunciamos essa situação, pois sequer as máscaras adequadas todos os profissionais haviam recebido. E as poucas máscaras disponíveis precisava decidir para quem distribuir. O surto foi muito rápido. Mesmo sabendo que existia uma pandemia, o sistema de saúde não se organizou para tratar os doentes e nem orientar os profissionais de saúde.

O primeiro mês foi o mais complicado, porque em dado momento faltou EPIs até para o pessoal do “Covidário”. Então, fizemos uma denúncia através do Conselho Local e do Conselho Municipal de Saúde, e tivemos que fazer muita pressão para que o Secretário Municipal de Saúde atendesse as reivindicações. Juntamos documentos e relatos para denúncia no Ministério Público também.

  1. São feitos testes periódicos nos profissionais de saúde para saber se estão contaminados?

Não está sendo feito teste em todos os trabalhadores da linha de frente! Essa é a nossa maior queixa! Só realizam teste se o trabalhador apresentar sintomas de Covid-19. Mas o risco é iminente a todos os profissionais. Por exemplo, na clínica cirúrgica especialidade e clínica médica recebemos todo tipo de pacientes, e eles podem estar com Covid. Só quando o paciente é diagnosticado, ele desce para o outro andar separado para tratamento de Covid. Mas mesmo quando isso acontece, não testam os trabalhadores. O correto seria testar todos os trabalhadores que tiveram contato com o doente. Todos estão em risco numa situação dessas, mesmo que estejam de luva, mascara e demais EPIs.

Em muitos países foram feitos testes rápidos em toda população para saber avaliar o grau de contaminação da população, se as pessoas já desenvolveram anticorpos, e aqui em Campinas os testes são muito escassos até para os trabalhadores da saúde.

  1. A rede de saúde estava com mais de 90% de ocupação dos leitos e um aumento do número de casos cidade. Você acredita que há risco de colapso do sistema de saúde?

A rede de saúde está com 96% de ocupação, segundo informações da imprensa. Os hospitais públicos já não tem mais vaga de leito de UTI. Foi construído um hospital de campanha com 30 leitos para pacientes menos graves, e transformaram o primeiro andar inteiro do hospital Mario Gatti em UTI com respiradores e profissionais especializados. Mas, mesmo assim, o colapso é iminente.

O pior é que numa curva ascendente do contágio, com o número de casos crescendo, mesmo assim, o prefeito permitiu abertura de alguns comércios, por duas semanas. Depois disso, os casos aumentaram muito mais. Estávamos numa linha menos crescente de casos, e de repente, depois dessa abertura do comércio, começou a aumentar muito. E nós, estamos sentindo reflexo disso agora dentro do hospital. Mais de 50% dos trabalhadores, principalmente do pronto-socorro, foram contaminados!

Mas não temos sequer dados exatos. A atual gestão do hospital, presidido por Marcos Pimenta, não nos coloca a par da situação, não divulga as informações. Nós do Conselho Municipal de Saúde temos acesso às informações através dos próprios trabalhadores.

Por causa da falta de vagas, os pacientes contaminados ficam espalhados nos vários andares, mesmo os que não são reservados para Covid, o que faz com que os trabalhadores se contaminem cada vez mais. Se não tomarem nenhuma atitude o sistema de saúde estará em colapso em breve. Segundo a prefeitura, Campinas está no estágio laranja no plano de “Volta Responsável”, mas o protocolo diz que essa fase de abertura só ocorre quando menos de 80% das UTIs estão ocupadas. E o que temos visto hoje é mais de 80% de ocupação, por isso, não poderia flexibilizar. O correto seria voltar para a fase vermelha. Isso com certeza pode colapsar o sistema de saúde, que aliás, já está colapsado no sistema público. Existem ainda algumas UTI particulares livres, mas são poucas. Mesmo assim, o prefeito quer reabrir o comércio.

  1. Vocês fizeram um protesto na semana passada. Quais foram as principais reivindicações e como você avalia o movimento?

O protesto foi organizado pelo Conselho Municipal, Local e MOPS e mais algumas entidades. Fomos às ruas para, em primeiro lugar, homenagear as pessoas que morreram na linha de frente e em segundo lugar, pedir para que Jonas Donizette tranque tudo, feche as ruas ao passeio de pessoas, como se fosse um lockdown.

Além disso, exigimos políticas públicas voltadas aos trabalhadores que estão na linha de frente, pois mesmo fornecendo os EPIs e seguindo protocolos de segurança baseados na OMS, ainda falta muita coisa. Principalmente no que diz respeito à informação e transparência na avaliação do grau de contaminação na cidade. Há uma grande subnotificação. Segundo as informações oficiais estaríamos com mais de oito mil contaminados, mas pesquisas realizadas, e o que estamos vendo no dia a dia, mostram que nós devemos ter mais de 30 mil pessoas contaminadas na cidade.

A subnotificação e a avaliação do grau de contágio na cidade é um dos piores problemas, pois a Prefeitura e o Secretário Municipal de Saúde tem controle direto sobre a administração de toda a rede de saúde da cidade. Marcos Pimenta, funcionário comissionado da Prefeitura, comanda o Hospital Mário Gatti, Hospital Ouro Verde, o SAMU e todas as 5 UPAs. Todos os trabalhadores do município estão subordinados às políticas de Marcos Pimenta e de Jonas Donizette.

No hospital onde trabalho, no Mario Gatti, não há transparência na divulgação de informações, nem somos consultados sobre melhorias nos protocolos. Não é divulgado o número de trabalhadores que ficaram doentes, o número de pacientes que foram internados no dia, os que tiveram alta, ou que mesmo quantos morreram. Essas informações estão restritas à administração. Nos transmitem informações muito rasas. E seria obrigação deles divulgar. Já a Secretaria Municipal passa semanalmente ao Conselho, e nós divulgamos a todos, mas temos apenas os dados dos centros de saúde.

  1. O Prefeito Jonas Donizette aderiu ao Programa Volta Responsável do governo do Estado. Colocando Campinas na fase de abertura laranja. Como profissional da Saúde, avalia que essa decisão foi correta?

Nós trabalhadores da saúde não vemos com bons olhos a tal “volta responsável” do governo estadual. Segundo o próprio governo estadual, só pode voltar se tiver ocupação dos leitos de UTI abaixo de 80%. Estamos acima dessa lotação. O que pode acontecer é colapsar mais ainda o sistema de saúde. Nós, trabalhadores da saúde, que vivemos o dia a dia da área, ficamos muito preocupados, sabemos que se abrir o comércio, não vai ter lugar para todo mundo em hospitais. Podemos chegar numa situação semelhante a outras cidades em que as pessoas morrem por falta de atendimento ou voltam para casa sem atendimento. Convencer os governantes, pelo que estamos vendo será muito difícil, por isso estamos mobilizando, pois será preciso muita pressão.

  1. Quais as perspectivas do movimento daqui pra frente?

Nossa perspectiva é que o movimento aumente, queremos envolver outros movimentos, sindicatos, partidos e pessoas engajadas que querem superar essa pandemia. Queremos mostrar à população que é necessário sair às ruas para lutar por políticas públicas adequadas no combate a pandemia! Claro que com distanciamento e orientações de segurança contra o contágio.

Muitos movimentos pararam durante a pandemia, mas agora está na hora de retomar as ruas, engrossar o caldo das lutas. Outra coisa é que precisamos reivindicar o Fora Bolsonaro, como estamos levantando no nosso movimento, porque esse governo não combate a pandemia. E se o governo federal não conseguir se alinhar, com estados e municípios, numa política efetiva, continuaremos a viver as mazelas desta pandemia.

Queremos nos aliar com os outros movimentos e centrais sindicais que nos apoiam como a CSP-Conlutas e a CUT, para melhorar nossas reivindicações e ampliar o movimento, porque o fortalecimento dessa luta vai de encontro aos anseios da sociedade toda e as necessidades dos trabalhadores como um todo. E se depender Secretário de Saúde, do Prefeito e de outras entidades governistas, ficaremos na mesma situação.

  1. O que mais você, como profissional da saúde, teria a dizer para todos os trabalhadores?

Tudo isso nos mostrou a necessidade e importância do SUS. O Brasil é o único país que tem um sistema único de saúde, e ele tem que ser fortalecido pelos governos federal, estadual e municipal. Porque se não fosse o SUS nós estaríamos numa situação muito pior. Houve um processo de destruição da saúde pública e dos servidores públicos, com a falta de contratação de pessoas especializadas, como médicos, técnicos de enfermagem e auxiliares de enfermagem. Nós estamos vivendo um imenso processo de terceirização e privatização em todo o país, e principalmente na rede instalada em Campinas. É necessário fazer essa denúncia, pois todas as políticas dos governos anteriores e a falta de investimento na saúde fez com que a gente entrasse nesse caos da saúde pública, e nesse momento, mesmo com todas essas mazelas, o SUS está conseguindo cumprir um papel fundamental.

O SUS atende todo mundo, do pobre que não pode ter convênio particular até o rico. Se o SUS colapsar, infelizmente nós vamos ter muitas mortes, principalmente do setor mais pauperizados da população.