Dr. Ary Blinder, médico do SUS em São Paulo (SP)

O “setembro amarelo” é uma campanha mundial pela conscientização de que evitar suicídio é uma tarefa social de primeira grandeza.

O último relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde) sobre o tema suicídio é de 2019 (“Suicide worldwide in 2019”), antes da pandemia de Covid, e trouxe dados importantes e preocupantes, particularmente para os países da América Latina. Embora tenha havido uma queda mundial na taxa de suicídio por mil habitantes, no caso de nosso continente esta taxa vem subindo (assim como no Leste Asiático).

Uma em cada cem mortes no mundo se dão por suicídio. Estamos falando de um montante acima de 700 mil mortes por suicídio por ano, no mundo. Anualmente, mais pessoas morrem como resultado de suicídio do que devido a HIV, malária, câncer de mama, ou, até guerras e homicídios. Estes números mostram a magnitude do problema e que a luta por evitar suicídios é uma tarefa cotidiana, não apenas do mês de setembro.

No Brasil, ocorrem 38 suicídios por dia. Boa parte deles poderia ser evitada, seja com medidas sociais, seja com melhoria da rede de atendimento em saúde mental.

As causas mais comuns são quadros de depressão, ansiedade e psicose. Há grupos populacionais mais vulneráveis, destacando-se os adolescentes de 15 a 19 anos, idosos com mais de 80 anos, profissionais com fácil acesso a medicações controladas, trabalhadores rurais que trabalham com pesticidas altamente tóxicos.

Existe um lugar comum popular de que quem tenta muitas vezes quer chamar a atenção e nunca se mata, mas, na realidade, tentativas prévias de suicídio são um dos marcadores que trabalhadores de saúde mental tem de levar em conta para definir o risco de uma pessoa vir a fazer uma tentativa.

A preocupação com franjas especificas da população (adolescentes, idosos) é muito pertinente porque são grupos com problemas e pressões especificas. No caso dos adolescentes, a vulnerabilidade se dá por elementos como ser um período de consolidação da identidade e personalidade, bullying escolar, incertezas sobre o futuro. Isto tudo está sendo ainda mais potencializado por fatores novos relacionados à crise do capitalismo (nova geração que vai viver pior do que seus pais devido à fragilização do mercado de trabalho, desregulamentação dos direitos trabalhistas e deterioração dos serviços estatais de bem-estar social como educação, saúde).

Agregue-se a isto a onipresença das redes sociais da Internet, que cria um comportamento de “ansiedade digital”, que se traduz numa relação compulsiva com celulares, tablets e computadores, uma preocupação excessiva com “curtidas” e uma comparação inevitável com a (suposta) vida de celebridades e influencers que causa uma sensação de fracasso nos jovens. Evidentemente, a Internet tem muitos aspectos positivos do ponto de vista econômico, político, educacional e científico. Mas tem este efeito ansiogênico e, inclusive, pode levar a um maior isolamento social, com menos encontros presenciais nesta fase da vida em que a sociabilidade é vital para a formação de identidade, caráter e relações sociais.

No caso dos idosos acima dos 80 anos pesa a solidão, a deterioração das aposentadorias e demais direitos sociais. A solidão está relacionada à fragmentação cada vez maior dos vínculos familiares e comunitários. Os direitos sociais, por conta da voracidade capitalista e da necessidade de cortar gastos sociais estatais, leva a que o poder de compra das aposentadorias seja cada vez menor, que o dinheiro dos idosos seja usado para sustentar o resto da família, que os serviços de assistência social aos idosos sejam muito frágeis. Por exemplo, com o envelhecimento da população deveríamos estar discutindo que já está havendo uma grande demanda por profissionais cuidadores de idosos e que deveriam ser financiados pelo Estado.

O que fazer?

Devem ser tomadas medidas relacionadas aos principais fatores causais. Algumas são relativamente simples, como campanhas permanentes contra o bullying nas escolas e ambientes juvenis. No entanto, a coisa não é tão fácil. Em geral, o bullying é feito usando temas relacionados a questões identitárias (racial, de gênero ou orientação sexual) e encontra abrigo e respaldo social justamente nos setores da população mais conservadores e ligados a fundamentalismo religioso, então embora nenhuma autoridade se declare a favor do bullying, na prática vai “deixar rolar”.

Outra medida simples e efetiva é proibir o uso de pesticidas altamente tóxicos. Há estudos que demonstram que esta medida é viável do ponto de vista econômico, ao contrário do que afirmam setores do agronegócio. Mundialmente, o estudo da OMS estima que cerca de 20% dos suicídios estão relacionados ao envenenamento por pesticidas, por isso devemos exigir já do governo Lula que reverta a legalização desenfreadas dos “defensivos agrícolas”, que é o nome fantasia para estas substâncias tão perigosas. Os defensores do uso argumentam que quem quer se matar vai tentar de outro jeito. Este é um argumento capcioso, pois o fato é que a taxa de sucesso no suicídio é muito maior com estes venenos do que com outros modos de atentar contra a vida.

Um terceiro campo de atuação é o combate à ansiedade digital. É preciso um grande esforço educacional para explicar aos adolescentes como funcionam as redes sociais e seus algoritmos, quais os interesses econômicos que os patrocinadores têm para direcionar os usuários para determinado site e que o conteúdo de celebridades e influencers, na maioria das vezes, tem a ver que a internet é sua fonte de renda e estão dispostos a mentir e manipular para propagandear o produto A ou B.

No caso dos idosos 80 +, sem dúvida o problema é essencialmente político, no sentido da necessidade de haver política pública para melhorar a aposentadoria, os serviços de saúde e a preocupação social de fornecer os cuidadores. A solidão também pode ser combatida com atividades de socialização (grupos de caminhada, exercícios físicos, dança de salão, poesia, literatura etc.). Além de exigir uma ação estatal, os sindicatos podem ter um grande papel aí, através de departamentos de aposentados dinâmicos que proponham atividades sociais que podem ser muito significativas para os idosos.

A questão do fácil acesso a medicamentos controlados deve ser uma preocupação permanente em relação a médicos, enfermeiros, farmacêuticos e atividades afins. É por isso que existe legislação específica para diversas categorias de psicofármacos, anestésicos e analgésicos potentes. Não se pode baixar a guarda em relação a isso, em nome de “desregulamentar e desburocratizar”. Aliás, aí também entram os portadores de doenças crônicas que exigem prescrição contínua de psicofármacos e analgésicos potentes. No caso dos pacientes psicóticos, ganha importância que as equipes de saúde da família visitem as casas destes pacientes, pois por vezes se descobre que o paciente está acumulando medicação para tomar tudo de uma vez.

O papel da saúde pública

Há uma discussão sobre uma afirmação frequentemente ouvida: Cada vez mais crescem os problemas de saúde mental na sociedade. Com a pandemia de Covid e o cenário social que a acompanhou, esta afirmação ficou ainda mais presente. Cada vez se fala mais em depressão, ansiedade, pânico, autismo, TOC, transtorno bipolar, borderline e esquizofrenia. Os números variam de acordo com os critérios que são usados para se definir cada patologia e cabe um alerta que se deve ter muita cautela com os números das pesquisas feitas no Brasil. Até o número de mortos por Covid, em que estamos falando de fatos objetivos causados por um vírus que pode ser testado são polêmicos, onde oficialmente tivemos 700 mil mortos, mas há muitos indícios de que este número foi maior.

A discussão que existe e tem importância é: ao transformar sentimentos como tristeza e ansiedade, muitas vezes causados por questões claramente sociais como vimos, em diagnósticos individuais, não estamos despolitizando e responsabilizando individualmente questões que necessitam medidas sociais e luta política? Este alerta sempre deve estar aceso quando se fala em saúde mental. Por outro lado, é evidente que quando a tristeza se cronifica e causa enorme sofrimento e limitações na vida da pessoa, é fundamental que seja feito um diagnóstico e oferecido o tratamento correto. É aí que entra com força o papel do sistema se saúde a que a população pode ter acesso.

O tratamento em saúde mental, em geral, é longo e relativamente caro, porque exige muitas vezes uma equipe multiprofissional para dar conta dos diferentes aspectos que o paciente apresenta. Às vezes, o quadro do paciente melhora com abordagem única, por exemplo só psicoterapia ou só uso de psicofármacos. Mas nos casos menos simples, muitas vezes tem que haver uma composição de terapia com medicação, às vezes é necessário um acompanhamento mais intensivo como Hospital Dia, chegando a casos em que é imprescindível uma internação devido ao risco de autoagressão. Muitas vezes, o paciente vive sozinho e não tem quem cuide dele. Outros vivem em situação de rua. Outros moram com a família, mas ninguém tem condições ou se propõe a cuidar dele.

Assim, é preciso um acompanhamento em saúde mental que responda a esses níveis diferenciados de cuidado. O atendimento da maioria dos planos de saúde privados não dá ou só parcialmente dá conta destas tarefas. O SUS se estrutura para dar conta de tudo isso, com o acompanhamento em saúde mental podendo ser feito nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), nos CAPSs e inclusive em internações, caso necessário. Nas UBSs há psicólogos e às vezes psiquiatras. Nos CAPS há psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais.

Nós do PSTU defendemos que este sistema público seja ampliado, que tenhamos um SUS 100% público e estatal, ou seja, que o financiamento público dê conta de um sistema público e que este sistema responda aos problemas de saúde de toda a população. Para isso, no caso da saúde mental, há que se investir muito mais do que é feito hoje, para fixar os profissionais nos seus locais de trabalho através do pagamento de um salário adequado para as diversas categorias de trabalhadores da saúde mental. Além de aumentar as verbas para a saúde, é preciso parar de gastar dinheiro do SUS com as entidades privadas. Hoje, por exemplo, boa parte da verba da saúde vai para as famosas Organizações Sociais, que na realidade são entidades privadas. Além disso, no caso da saúde mental isso se agrava, pois este financiamento está indo para as Comunidades Terapêuticas, que são serviços geridos por igrejas para tratamento dos dependentes de drogas, em que muitas vezes não tem atendimento de profissionais especializados na área.

Dobrar as verbas para a saúde pública no Brasil significa uma mudança substancial na política aplicada pelos governos, incluindo aí os que se reivindicam de esquerda. A questão do orçamento estatal é sempre o elemento final que determina o sucesso ou insucesso das políticas públicas. O governo Lula defende o “arcabouço fiscal”, que estabelece proibição rigorosa de aumento de gastos substancial. Se quisermos um SUS 100% público e estatal, com qualidade de atendimento e participação popular, será necessário derrotar as amarras do arcabouço fiscal. Não basta fazer discursos bonitos sobre o SUS. É preciso romper com a política econômica de Lula e Haddad para que o SUS possa rumar para o projeto que o povo tanto necessita e merece.

Leia também

Depressão: tristeza e preguiça ou transtorno mental mais comum no mundo?