“A gente vive sobressaltado a todo momento. Tá trabalhando, fazendo alguma atividade política e tem o receio de sofrer um atentado. Infelizmente, no Brasil os territórios indígenas carregam essa triste marca de ter sangue derramado. Eu não quero ser mais uma, não quero que minha família seja vítima. Eu tô falando aqui, mas tô sendo vigiada.” Assim explica Raquel Küna Yporã Tremembé após a reportagem sofrer uma ação intimidatória por um invasor do território Tremembé do Engenho, localizado no município de São José do Ribamar (MA), bem próximo à capital São Luís (MA).
Acompanhada por um grupo de indígenas liderados por Raquel, a reportagem percorreu o território na manhã do dia 29 de julho. Enquanto discorríamos sobre a devastação da mata e a poluição dos rios, resultante do despejo de esgoto doméstico, fomos surpreendidos por um indivíduo nos filmando com o seu celular. Logo em seguida ele iniciou a declamação de versículos religiosos, convocando um imaginário “exército divino”, afirmando que era seu soldado. Ficou evidente para todos que se tratava de uma ação com o intuito de causar intimidação.
A ação deixou todos tensos. “A gente não consegue viver tranquila. Tá aqui olhando de um lado para o outro, observando e sempre atenta. Uma vez a gente tava aqui numa atividade e jagunços armados, fortemente armados, ficaram escondidos dentro do mato. Estamos sendo vigiados em nossa própria casa”, explicou Raquel, enquanto seguíamos rapidamente para uma área mais segura.
Raquel foi candidata à vice-presidência da República na chapa do PSTU encabeçada por Vera. Uma chapa 100% feminina, que se enfrentou com o projeto de ditadura de Bolsonaro e com o projeto de conciliação de classe representado na chapa Lula-Alckmin. A campanha ajudou a projetar a luta do povo Tremembé pelo país.
Grilagem de terra e reintegrações de posse
A tensão no território Tremembé começou em 2008, quando Carlos Alberto Franco de Almeida, ex-deputado estadual e ex-secretário de Estado de Assuntos Estratégicos, criou um esquema de grilagem e tentou de forma fraudulenta se apossar do território. Na época, Alberto Franco era interventor de um cartório na cidade e começou a falsificar a documentação de imóveis em São José do Ribamar.
A partir daí, o território Tremembé começou a sofrer investidas do grileiro. Até hoje o território sofreu nove reintegrações de posse, e todas elas deixaram suas marcas no espaço e na consciência dos indígenas.
Pode-se dividir o território Tremembé do Engenho em duas paisagens. A primeira traz as marcas e as cicatrizes das reintegrações de posse, onde a mata nativa e os roçados foram destruídos por tratores e máquinas. Hoje está havendo uma regeneração. A área está coberta com plantações de macaxeiras e hortaliças, que são vendidas na região e no Quilombo da Liberdade em São Luís, ou serão destinadas ao reflorestamento. Mas a falta de água no período de estiagem atrapalha o crescimento das plantas. “Se a gente tivesse um poço, isso aqui tava tudo maior”, explica o indígena Braz Tremembé, apontando para o plantio.
A falta de água tem a ver com as sucessivas investidas do grileiro, que levaram à contaminação dos rios e córregos do território. “A gente pegava peixe aqui, hoje a gente não come nada. A juçara se acabou tudo, o buritizeiro se acabou tudo”, explica Braz, na beira das águas poluídas de um pequeno córrego.
A outra paisagem do território Tremembé mantém intacta a mata original. As casas ainda são cercadas por preguiçosas mangueiras e é fácil avistar os pés de babaçu, palmeira robusta que marca indistintamente a paisagem dessa parte do país. “[Lá em cima] não só as mangueiras foram destruídas, os juçarais também. Árvores centenárias foram destruídas. Lá em cima você vê o resultado das reintegrações. Aqui em baixo ainda está tudo intacto”, explica Raquel.
De todas as reintegrações de posse, uma vem à mente dos Tremembé com mais força: a reintegração do dia 19 de dezembro de 2018, que expulsou muitas das famílias indígenas. A comunidade não demorou para reagir. Em 10 de janeiro, reuniu-se e organizou uma retomada do seu território. “Aqui tava cheio de jagunço, inclusive a milícia atuando, policiais fazendo a segurança”, conta Raquel.
“De lá para cá, conseguimos suspender várias tentativas de reintegração e avançar em medidas para a demarcação junto com o Ministério Público Federal”, informa Waldemir Soares Jr., advogado da CSP-Conlutas que defende os Tremembé. Segundo ele, os pedidos eram feitos pelos ex-deputado Alberto Franco em conjunto com uma pseudo-associação de agricultores que tem como presidente o grileiro chamado Domingos.
Loteamento, ameaças e invasão
O grileiro Alberto Franco loteou uma parte do território onde hoje foi construído um condomínio com 21 casas. Nenhuma delas está ocupada. Preocupada em não ser avistada pelos seguranças do condomínio, Raquel conta que as casas foram construídas em uma área em que havia mata. Em áreas contíguas ao território também ocorrem loteamentos.
Recentemente, Alberto Franco foi condenado pela justiça pelas fraudes nas matrículas de imóveis. Mas isso não intimidou o grileiro, que coloca pessoas em situação de vulnerabilidade social ou mesmo seus capangas para invadirem o território com a promessa de dar-lhes um título da terra. “Ele fomenta o conflito interno para criar o caos e a violência e para não aparecer diretamente nesse processo”, explica Waldemir Soares Jr.
Esse tipo de ação do grileiro se intensificou após os indígenas obterem uma grande vitória. No dia 15 de agosto de 2022, a Fundação Nacional do Índio (Funai) instituiu o Grupo de Trabalho (GT) para as ações referentes à demarcação do território da comunidade. O GT visa realizar os estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais – elementos que fundamentam a identificação e a delimitação da área indígena –, que é a primeira fase do procedimento demarcatório. Após a fase de estudo, seguem as etapas de delimitação, declaração, homologação e, por fim, a regularização da Terra Indígena demarcada. Ao todo, o território Tremembé possui 76 hectares.
A criação do GT é uma vitória do povo Tremembé, depois de várias ações, inclusive ocupando a sede da Funai. “Foi a única etnia que ocupou a Funai durante o governo Bolsonaro”, destaca Waldemir. Mas adverte: “A cada passo que a etnia dá ao processo de demarcação, a violência tende a aumentar.” Ele atesta que a estratégia do grileiro é estimular a invasão das terras para criar o caos e violência. “Segundo os relatos da comunidade, ele costuma andar com capangas e fazer ameaças à etnia e à população no entorno. Também é responsável por loteamentos clandestinos. É uma pessoa com histórico violento”, diz o advogado sobre o grileiro que não desistiu de roubar as terras dos Tremembé do Engenho. Waldemir também afirma que nos últimos dias foram feitas reuniões com a Secretaria de Segurança Pública do Maranhão e que a Polícia Federal também está investigando algumas ações cometidas no território.
Por questões de segurança, a própria Raquel precisou arrumar outra casa na cidade. Mesmo assim, ela não considera que está plenamente segura. “Em São José do Ribamar eu me sinto num ovo. Não consigo me mover, porque a todo momento tenho a impressão de ter alguém me vigiando. Não é impressão, é verdade. Lá eu não consigo fazer um Boletim de Ocorrência porque a própria delegacia se nega”, relata. “É todo um preparo pra vir pra cá. Um preparo espiritual, inclusive. Eu nunca ando só. Quando não me sinto preparada, eu não venho”, explica Raquel, ao evocar a organização que garante a autodefesa da comunidade, mas também os espíritos encantados presentes no território. “Se a gente não tivesse a nossa organização interna e os nossos apoiadores, o território Tremembé não existiria mais. Quem conhece a luta indígena sabe que tudo é muito difícil, muito demorado. Às vezes só falta uma assinatura [para homologar]. Mas pelo fato de a gente estar neste patamar, penso que isso é uma vitória. O sangue que a gente carrega em nossas veias se chamada resistência”, conclui.
Combatendo o racismo e resgatando a identidade
A luta pelo território também é luta contra o racismo e pelo resgate e afirmação da cultura e identidade indígenas. Com as investidas do grileiro, os Tremembé são obrigados a reafirmar sua própria história e a provar que sempre estiveram em seu território ancestral. “Os povos indígenas são diversos. Não somos um único grupo, somos diversos. Somos mais de 300 nações que têm diversidades em seu modo de vida, cultura e na forma como se organizam”, diz.
Sobre as promessas do governo Lula em demarcar terras indígenas, Raquel responde: “Os discursos não garantem direitos nem impedem a morte à bala. Essa contínua sendo a realidade dos povos indígenas.” As lideranças sabem que suas conquistas são resultado da sua ação direta e independente de governos e instituições. Esse é o único caminho para fazer com que os povos indígenas possam conquistar o acesso ao seu território. “Já chega! São séculos de violência e de usurpações. As pessoas negam a nossa existência. É contra esse racismo e preconceito que a gente vem lutando. Aí eu penso: por que não unificar as lutas? Porque a nossa dor é a mesma que um quilombola sente, é a dor de um negro que tá num grande centro urbano. Essas dores são as mesmas, e a gente tem que acabar com isso”, finaliza.