José Welmowicki
Os Estados Unidos, país mais poderoso do capitalismo, é incapaz de evitar a situação que se abate sobre sua população. Os 100 mil mortos da pandemia já são um número maior que o das guerras do Vietnã, da Coreia e do Afeganistão. O cenário é devastador: os dados são piores que a crise de 1929. Naquela época, houve 9% de desemprego. Hoje já são 25%, 38 milhões de desempregados e 27 milhões de indocumentados que não possuem seguro-desemprego, pois não têm direitos de nenhuma espécie.
O problema, contudo, atinge todo o globo. Os países imperialistas e não imperialistas e o capitalismo só apresentam saídas que atacam os trabalhadores. Os planos dos governos capitalistas falam em salvar a economia, mas são para salvar os setores monopolistas da burguesia, bancos e grandes empresas.
Nesse momento, uma questão chave volta à ordem do dia: é possível que se possa garantir a todos ao menos a vida sob o capitalismo? É possível o acesso a conquistas básicas da civilização, como a eliminação da fome, acesso à água, saneamento, saúde para toda a humanidade? O capitalismo tem possibilidade de, por meio de uma evolução gradual, chegar a uma sociedade socialista? É possível, assim, reformar o capitalismo?
Essa disjuntiva, “reforma ou revolução”, ou como traduziu Rosa Luxemburgo, “socialismo ou barbárie”, é um tema presente. Neste artigo, vamos examinar a origem dessa discussão entre os socialistas. Em textos futuros, analisaremos como ela continuou até os dias de hoje.
A discussão entre os primeiros socialistas
No Manifesto Comunista, Marx e Engels dedicam um capítulo à “Literatura socialista e comunista” e definem cinco correntes que elaboraram teses e influenciavam as visões naquela época: 1) os socialistas feudais, que idealizavam a sociedade feudal e se reduziam à medida que o capitalismo avançava; 2) o socialismo pequeno-burguês, que expressava a reação da pequena burguesia e de camadas médias arruinadas pela burguesia e propunham voltar no tempo, o que era utópico e reacionário nas palavras de Marx e Engels; 3) o socialismo burguês ou conservador, que desejava “a sociedade atual sem os elementos que a revolucionam e a dissolvem”; para Marx, essa corrente não conseguia superar a visão do “pequeno-burguês oscilando constantemente entre o capital e o trabalho, entre a economia política e o comunismo”, e era contra os movimentos políticos da classe operária; 4) o socialismo alemão ou “verdadeiro socialismo” um pensamento típico da pequena burguesia alemã que refletia a realidade econômica da sociedade alemã daquele momento, ainda desenvolvida de forma insuficiente em termos capitalistas; opunha-se à burguesia, mas de modo semelhante ao socialismo, colocava-se contra a irrupção política dos operários; 5) os “socialistas utópicos” – como Fourier e Owen –, cujas teorias eram antecipações geniais, mas ao aparecer antes das condições econômicas e sociais estarem desenvolvidas, não viam um papel revolucionário para o proletariado, mas apenas como classe oprimida e pobre; por isso buscavam convencer a todas as classes, inclusive a burguesia, de suas teses; opunham-se, assim, a todo movimento político próprio dos operários naquele momento.
Ao lado dessas doutrinas, havia uma questão central para o programa que se expressaria já a partir do século 19: os operários devem buscar tomar o poder como classe ou podem e devem governar junto com a burguesia ou setores progressistas dela? Louis Blanc, um socialista francês, aceitou entrar no governo burguês saído da revolução de 1848 como ministro do Trabalho. Foi o primeiro exemplo histórico de participação de dirigentes socialistas em governos da burguesia e Marx dedicou a ele duras críticas em seu As lutas de classes na França.
Em 1899, a polêmica em torno à participação de ministros socialistas em governos burgueses, o ministerialismo, dividiu a II Internacional socialista quando o partido francês, por meio da ala de Jaurés, aceitou indicar Millerand.
Rosa Luxemburgo escreveu um texto teórico condenando essa posição e explicando como a participação num governo burguês significava o abandono da visão marxista do Estado e da revolução socialista.
A crise da social-democracia: Bernstein e Rosa Luxemburgo
O primeiro grande esforço teórico para apresentar uma elaboração em defesa das reformas como caminho para o socialismo foi de Eduard Bernstein no SPD (Partido Social-Democrata) alemão em 1899. Sua visão também defendia a cidadania como substituta da luta pela emancipação do proletariado. “A social-democracia não deseja romper a sociedade civil e fazer de todos seus membros proletários; na verdade, ela trabalha incessantemente para elevar o trabalhador da posição social de proletário para a de cidadão e, portanto, para tornar a cidadania universal”, dizia.
Essa concepção, como lhe respondia Rosa Luxemburgo, significava aceitar a sociedade burguesa como horizonte: “quando [Bernstein] utiliza a palavra cidadão referindo-se tanto ao burguês como ao proletário, querendo com isso, referir-se ao homem em geral, identifica o homem em geral com o burguês e a sociedade humana com a sociedade burguesa.” Por isso, recusava a revolução socialista como um caminho blanquista ou, ainda, “terrorista”.
Bernstein considerava a democracia como “ausência de um governo de classe. Isso indica um estado em que nenhuma classe tem o privilégio político”. Assim, cada governo eleito seria o responsável por implementar o seu programa de acordo com a classe que representasse. Para ele o caminho para o socialismo passava pela democracia e pela implementação gradual de reformas. Bastaria ao partido operário triunfar nas eleições.
Como Rosa Luxemburgo afirmava em Reforma e revolução, essa posição contrariava toda a concepção marxista do Estado e se identificava com os socialismos utópicos e reformistas que Marx e Engels combateram. Afinal, Bernstein se colocava de forma explícita contra o programa marxista de revolução socialista e de tomada do poder, acusado por ele de terrorista.
A Primeira Guerra Mundial transformou essa questão teórica em questão política: a social-democracia alemã e a maioria esmagadora da II Internacional votaram o apoio a seus governos burgueses para entrar em guerra (os créditos de guerra), colocando os operários de seu país para combater e matar seus irmãos de outros países. Foi o abandono de um princípio básico do movimento operário desde a I Internacional, expresso na frase: “Proletários do mundo inteiro, uni-vos.” Uma traição que custou a vida a milhões. Bernstein ficou associado a essas traições e derrotas históricas e, por essa razão, os novos setores que assumiram a mesma posição dele, em geral, não o reivindicam.
Kautsky e o reformismo “de centro”
Frente à Primeira Guerra Mundial, não foram somente os seguidores de Bernstein que apoiaram suas burguesias para que entrassem em guerra. Em nome da “defesa da pátria”, os principais dirigentes abandonaram os princípios e inclusive o compromisso político do Manifesto de Basileia, de lutar contra a guerra e seus governos, votado pela II Internacional dois anos antes.
O teórico mais destacado da II Internacional, Karl Kautsky, participou dessa virada e do abandono da posição marxista. Uma ala bem minoritária havia resistido a essa traição. Nela estavam Lenin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, entre outros, que mantiveram a posição revolucionária contra a guerra. Quando as trágicas consequências da guerra em vidas e miséria abriu uma crescente indignação, levando à eclosão da Revolução Russa em fevereiro de 1917, os bolcheviques, liderados por Lenin, chamaram a preparar a revolução socialista que se efetivou em outubro.
Em outubro, os sovietes tomaram o poder sob a direção dos bolcheviques. Kautsky encabeçou o combate contra os bolcheviques, alegando que os sovietes não deveriam tomar o poder e sim, entregá-lo à Assembleia Constituinte. A natureza pró-burguesa da posição reformista consistia, então, em ficar contra a revolução proletária na Rússia. Essa mesma posição de Kautsky se materializou na revolução alemã que eclodiu no fim da guerra, na qual se formaram os conselhos operários, semelhantes aos sovietes, influenciados pela revolução Russa. Ele defendeu que os conselhos operários não tomassem o poder e se subordinassem à Assembleia Constituinte. Essa posição, vitoriosa no congresso dos conselhos, levou à derrota a revolução alemã.
Lenin fez uma dura polêmica com ele nos livros O Estado e a revolução e A revolução proletária e o Renegado Kautsky e afirmava que, por utilizar uma terminologia marxista para defender posições reformistas, “Kautsky era pior que Bernstein”.
Lenin considerou morta a II Internacional e chamou a formar a III Internacional Comunista para agrupar os revolucionários. A social-democracia se transformou numa federação de partidos reformistas que participam de governos burgueses como regra geral, cumprem um papel de aparatos contrarrevolucionários, defensores do Estado burguês e administradores do capitalismo.