Marcha da Periferia na Cidade Tiradentes, Zona Leste de SP
Secretaria Nacional de Negras e Negros do PSTU

Wagner Miquéias F. Damasceno, da Secretaria Nacional de Negras e Negros do PSTU
Rosenverck Estrela Santos, da Direção do Quilombo Raça e Classe e do PSTU-Maranhão
Hertz Dias – rapper do Gíria Vermelha e membro da Direção Nacional do PSTU

Obs: Cumpre registrar que o referido texto foi enviado à Folha de S. Paulo como oposição ao vil artigo publicado por Antonio Risério, no último domingo. Contudo, sua publicação foi recusada, demonstrando mais uma vez o caráter antidemocrático da grande imprensa.

Ao final de um dos seus espetáculos de stand-up comedy, o árabe Aamer Ramahn revela ao público que muita gente branca não gosta do seu humor. Se queixam que ele fala muito dos brancos e que costumam lhe perguntar: “e se eu fizer algo assim? Se eu subir no palco e disser, ‘negros isso, muçulmanos aquilo…’ Você me chamaria de racista, não é?” E Ramahn calmamente responde que “sim”, que os chamaria de racistas.

Mas seus críticos brancos insistem: “mas quando você faz isso, você sobe no palco, faz piada com os brancos […] você não acha que isso é racismo reverso?”.

Então Ramahn responde que “não”, que isso não é racismo reverso. Porém, diferente da maioria dos negros, o humorista disse que acredita que seria possível cometer racismo reverso contra brancos e que, ele mesmo, poderia cometer racismo reverso contra brancos. Mas para isso ele precisaria de… uma máquina do tempo.

Através dela, ele recuaria até os primórdios do capitalismo e de sua expansão colonial para convencer líderes da África, da Ásia e das Américas a invadirem a Europa, colonizá-la, pilhá-la e escravizar sua população em enormes plantações de arroz na China. Os negros criariam sistemas que favoreceriam a sua raça em todas as oportunidades políticas, sociais e econômicas possíveis; inventariam também, de tempos em tempos, guerras sob argumentos fakes para destruir e roubar ainda mais os europeus. E, só por lazer, Rahman diz que os negros submeteriam os brancos aos seus padrões de beleza, para que odiassem desde pequenos a cor da sua pele, dos seus olhos e a textura do seu cabelo.

Então ele diz que, se após séculos de todo esse inferno sobre os europeus, ele – um negro árabe – subisse ao palco e fizesse piada dos brancos, aí sim estaria cometendo racismo reverso.

Sob fortes aplausos, Rahman havia explicado de forma bem-humorada e historicamente correta porque o racismo reverso não existe.

Mas o humor para por aqui, pois o texto escrito por Antonio Risério, publicado no último domingo, dia 16, na Folha de S. Paulo, cai como uma luva nas mãos de quem quer desconstruir as políticas de ações afirmativas no país. 2022, é bom lembrar, é o ano de revisão da Política de Cotas no país, sob o governo de Jair racista Bolsonaro. Portanto não esperem de nós tolerância com este tipo de provocação, pois há muita coisa em jogo.

Pinçar coisas aqui e acolá: um método reprovável

Para tentar provar a existência de um terrível racismo reverso de negros contra brancos, o antropólogo desfia uma série de casos – sem se preocupar em fundamentá-los e contextualizá-los – que vão de ataques “racistas” de negros contra brancos no metrô em Washington, passando por adolescentes negros atacando adolescentes brancos até o boicote de negros ao comércio de coreanos nos EUA.

Aliás, Risério faz questão de destacar ações racistas de negros contra asiáticos nos EUA – todas elas reprováveis – mas omite uma longa história de solidariedade política entre ativistas asiáticos e negros na luta contra o racismo e contra o capitalismo nos EUA.

À la Sérgio Camargo, Risério denuncia um “racismo antijudaico de pretos pobres dos guetos” que pedem o fim do Estado genocida de Israel, fazendo parecer que exigir o fim do sionismo e do Estado de Israel – um enclave militar dos EUA no Oriente Médio – em nome de um Estado Palestino laico seria o mesmo que exigir o extermínio dos judeus!

Risério diz ainda que quem reafirma sua identidade é divisionista e fundamentalista, e que esse “racismo negro” é fruto do identitarismo que a esquerda vem abraçando.

Aliás, identitarismo vem servindo como rótulo para qualquer crítica às opressões. Uma expressão que caiu nas graças do bolsonarismo, mas também do PT, partido ao qual Risério prestou longos serviços: sempre que ativistas do movimento negro criticam os ataques dos governos petistas aos negros e negras – como a Lei Antidrogas de 2006, como as quatorze ocupações militares no Rio de Janeiro sob os governos petistas, ou ainda a vergonhosa ocupação militar no Haiti – ouvem em resposta que estão sendo identitaristas.

O identitarismo também está na boca do stalinismo, espécie de negacionismo dentro da esquerda. Para os discípulos de Stálin – responsável por, dentre tantas coisas vis, reabilitar a criminalização do aborto na Rússia e por virar as costas aos negros estadunidenses para não comprometer sua política de alianças com a burguesia, em particular com Roosevelt – a luta permanente e consequente contra as opressões é identitarismo e divide a classe. Como se os trabalhadores já não estivessem divididos pelo machismo, pelo racismo, pela xenofobia e pela LGBTIfobia.

O essencialismo racial não representa a luta negra

Por se tratar de um ataque aos negros, o artigo de Risério pode provocar em alguns de nós o ímpeto de abraçar todas as figuras e organizações negras mencionadas ali, como por exemplo, Marcus Garvey. Mas isso seria um erro.

Foram as nações imperialistas europeias que primeiro patrocinaram a formulação e  disseminação do essencialismo racial, pregando uma superioridade e unidade genética dos brancos. Faziam isso, por um lado, para justificar sua dominação na África, na Ásia e nas Américas e, por outro lado, para conter o avanço na luta dos trabalhadores dentro da própria Europa. Envenenados pelo racismo, os operários brancos acreditavam que eram superiores aos seus irmãos de classe africanos, indianos, chineses etc., e terminavam divididos em campos hostis.

Mas o líder jamaicano Marcus Garvey, fundador da Associação Universal para o Progresso do Negro e da Liga das Comunidades Africanas (Universal Negro Improvement Association and African Communities League – UNIA) também foi um partidário do essencialismo racial, uma concepção que absolutiza as características físicas das raças – voltando a encará-la como uma categoria biológica, e não apenas sociológica – e que tenta elaborar respostas ao essencialismo branco, buscando uma essência na raça negra.

Alguns dos objetivos da UNIA era estabelecer uma Confraternidade Universal da raça negra e ajudar a “civilizar as tribos atrasadas da África” e, para realizá-los, Garvey buscava apoio de países europeus. É o que atesta a sua carta ao Secretário de Estado Britânico para as Colônias, de 16 de setembro de 1914, onde rogava a vitória do exército britânico na África e na Europa “contra os inimigos da paz e da futura civilização”, e finalizava desejando vida longa ao rei e ao império.

No livro Libertação Negra e o Socialismo, Ahmed Shawki conta que Garvey viu nos  supremacistas brancos “os únicos amigos verdadeiros dos Negros, porque eles entendiam a necessidade da pureza racial”. Em 1937, Garvey deu uma entrevista dizendo que Mussolini e Hitler haviam copiado o programa político da UNIA, de um nacionalismo agressivo para o homem negro na África.

Para Garvey, “o capitalismo [era] necessário para o progresso do mundo, e aqueles que sem razão ou desenfreadamente se opõem a ele ou lutam contra ele são inimigos do avanço humano”. Assim, o jamaicano tornava-se o primeiro grande defensor, no movimento negro, do capitalismo, o mesmo sistema que sequestrou, traficou e escravizou nossos antepassados vindos da África para a acumulação primitiva de capitais.

Quando setores do movimento negro caem na armadilha do essencialismo racial, passam a encarar todos os brancos como necessariamente racistas e irrecuperáveis; passam a ver o racismo não mais como um fenômeno histórico e ideológico, mas como uma força genética e a-histórica que necessariamente coloca brancos e negros em trincheiras separadas, independente da classe social a qual pertençam. O capitalismo agradece.

A solução política termina descambando para um separatismo sui generis, dentro da estrutura capitalista: forjar uma burguesia negra ou fortalecer a existente. Um dos lemas desse tipo de política é “negros no topo”. Mas como a geometria explica, enquanto existir um topo vai existir uma base que, aliás, será ocupada majoritariamente por negros e negras. Aliás, vale lembrar as palavras do sociólogo piauiense Clóvis Moura: “um negro diretor de uma multinacional é sociologicamente um branco”.

Sim, queremos o poder!

Risério acusa os negros de quererem o poder. Sim, queremos o poder! Mas, não para manter este sistema econômico erguido sob o sangue e o suor dos nossos antepassados. Queremos o poder advindo de uma revolução violenta que varra de uma vez por todas o racismo e todas as formas de opressão e exploração da face da Terra. E nessa tarefa, provavelmente a mais importante da humanidade, será preciso travar uma luta permanente e combinada contra o racismo e contra o capitalismo.

E acreditamos que todos os negros e negras conscientes sabem que algo desta envergadura só poderá ser alcançado em aliança com brancos, indígenas, amarelos, mulheres e LGBTIs da classe trabalhadora na construção de uma sociedade Socialista. Este é o maior temor dos senhores do capital e de pessoas como Antonio Risério, que vem trabalhando com afinco na produção de falsificações históricas e políticas.