Publicado originalmente no site da LIT-QI

Temos contestado a mentira do “fim da pandemia”[1] e agora existe a forte onda que  vivem vários países europeus[2]. Desde seu início, afirmamos que o capitalismo é responsável por seu surgimento, sua rápida disseminação e a persistência da pandemia do coronavírus.

É responsável porque criou condições cada vez mais propícias ao surgimento de zoonoses (doenças que são transmitidas de animais para humanos) que se propagam rapidamente devido à grande dinâmica atual de circulação de pessoas e mercadorias[3]. Porque os governos burgueses enfrentaram o combate com os sistemas públicos de saúde fragilizados por anos de ataques, com o critério de incentivar os negócios privados nesta área, e sem fazer os investimentos públicos necessários para reverter essa deterioração. Porque, em face da recessão do primeiro semestre de 2020, sem ter vencido a pandemia, iniciou-se a política criminosa do “novo normal” que multiplicou as possibilidades de contágio[4].

Em 2021, foi anunciado o “ano da vacinação” e, com ele, do triunfo sobre a pandemia. Mas o grande avanço que as vacinas representavam também foi tratado com os métodos do capitalismo imperialista. A “corrida pela vacina” foi realizada sem um plano de desenvolvimento cooperativo e centralizado internacionalmente, mas sim com uma acirrada competição entre os grandes conglomerados farmacêuticos privados e salvaguardando seus lucros através da “lei de patentes”[5]. As vacinas vieram com um preço alto e os países imperialistas compravam e acumulavam quantidades gigantescas de doses de vacinas para sua população enquanto, no outro extremo, os países mais pobres não tinham possibilidade de comprá-las e, ainda hoje, mantêm taxas de vacinação muito baixas.

Essa contradição se expressou de forma aguda na Índia, que, por um lado, é o principal fabricante mundial de vacinas (em laboratórios pertencentes aos conglomerados imperialistas) e, por outro, não tinha condições de comprá-las em massa para sua população.  Neste país, se desenvolveu uma segunda onda muito forte da pandemia que originou a perigosa variante Delta[6]. Na África do Sul, um dos países não imperialistas com capacidade para fabricar vacinas, surgiu a cepa Omicron[7]. A desigualdade nos níveis de vacinação no mundo (aliada à política criminosa do “novo normal”) se volta como um bumerangue sobre os próprios países imperialistas, com ondas oriundas das novas cepas, como aconteceu há poucos meses nos Estados Unidos e agora acontece na Europa.

Diante desse panorama, reivindicamos como corretas as consignas, assumidas pela LIT-QI, de vacinas para todos, ruptura do direito de patente dos laboratórios que as fabricam e a necessidade de um plano internacional de vacinação massiva e gratuita, estendido a todos os países do mundo, bem como a reconstrução e fortalecimento dos sistemas públicos de saúde. É o único caminho verdadeiro (neste sentido, o único caminho realista) para avançar no combate à pandemia do coronavírus[8]. Mesmo que a atual pandemia seja derrotada, o capitalismo imperialista nos apresenta um futuro sombrio: o surgimento quase inevitável de novas pandemias. Essa é a perspectiva que colocam os cientistas mais especializados: Sarah Gilbert, uma das criadoras da vacina AstraZeneca, alertou em uma recente conferência que “A próxima pandemia pode ser mais contagiosa ou mortal do que a do COVID-19”[9].

O capitalismo-imperialismo não consegue reverter as respostas negativas da natureza ao seu caráter cada vez mais destrutivo, como também tem acontecido com o objetivo de mudar a matriz energética para reduzir o uso de combustíveis fósseis poluentes. Isso é demonstrado pelo fracasso retumbante da recente Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (chamada COP 26)[10].

Uma recuperação de voo muito baixa

As novas ondas da pandemia têm impactado a dinâmica da economia internacional e os organismos financeiros internacionais reduzem suas estimativas de crescimento do PIB mundial. O relatório do FMI de outubro de 2021 “revela uma ligeira diminuição nas estimativas de crescimento em relação ao documento emitido em julho de 2021[11], devido ao impacto das novas ondas da pandemia.

Uma explicação apenas parcialmente correta: 2020 viu uma “recessão global”. No entanto, o que a pandemia e as restrições contra ela fizeram foi aumentar a dinâmica recessiva que a economia mundial já trazia do ano anterior. A partir da política do “novo normal” iniciou-se uma recuperação da economia capitalista, que se manteve durante o resto do ano e prolongou-se até 2021[12]. Mas essa recuperação já apresentava profundos problemas e obstáculos.

Em setembro passado[13], analisamos os principais obstáculos a essa recuperação e seu caráter limitado. O primeiro foi o que se chamou de seu caráter “fragmentado” ou “fraturado”: ​​as profundas desigualdades entre países, ramos econômicos e empresas. Um analista definiu esta situação assim: “depois da crise, se veem vencedores e perdedores …”[14]. As economias dos Estados Unidos e da China são as que apresentam melhores perspectivas de recuperação em 2021, pelo menos em termos nominais. As grandes empresas vencedoras são aquelas que produzem ou estão vinculadas a novas tecnologias. Outros setores, como turismo e comércio tinham sido duramente atingidos, enquanto os ramos industriais tradicionais (as automotivas) tiveram de enfrentar planos de redução e reestruturação.

A estagflação está chegando?

O segundo obstáculo é o caráter inflacionário da recuperação, com taxas que, nos Estados Unidos[15] e na Europa[16], são as mais altas em várias décadas. Outros países e regiões apresentam níveis iguais ou superiores. Esta realidade leva a considerar a “verdadeira dimensão [de] a recuperação que a economia vive” porque “o crescimento real da produção de materiais será de apenas 2%”[17]. Por esta razão, economistas como Nouriel Roubini consideram que “a ameaça de estagflação [combinação de estagnação econômica e inflação, NdA] está se tornando cada está vez mais possível[18]”.

Isso significaria que, após uma recuperação curta e fraca, a dinâmica da economia mundial tenderia a desacelerar e caminhar para uma nova recessão. Alguns países já entraram em recessão, como o Brasil[19]. Em outros, a moeda nacional entra em colapso, como a lira turca[20] ou o peso argentino[21]. Há quem preveja um cenário ainda mais negativo porque consideram que existem várias “bolhas em vias de rebentar” nos sectores da “habitação, dívida e criptomoedas“, e que esta perspectiva é pior do que a crise iniciada em 2007 / 2008[22].

A economia chinesa também está passando por dificuldades

A China foi a única das grandes economias que terminou com crescimento de seu PIB nominal em 2020 e manteve uma das melhores dinâmicas em 2021: teve grande crescimento em seu comércio exterior, um bom nível de atração de investimentos estrangeiros e a realização de seus investimentos em outros países (a chamada “Rota da Seda”). A mídia celebrou essa dinâmica com títulos como “A China continuará a ser um estabilizador da recuperação econômica global[23]. Porém, por trás desse “panorama dourado” apareceram espessas nuvens de tempestade.

Especialmente no setor imobiliário e da construção civil, um dos motores do crescimento econômico e da geração de empregos[24]. O setor, na realidade, foi artificialmente “inflado” por meio de créditos e empréstimos estatais e privados, algo que já havia se manifestado em 2015[25]. A primeira manifestação óbvia de problemas foi a crise do Grupo Evergrande, que não consegue pagar as suas dívidas[26]. O problema é muito maior, pois parece começar a produzir “um ‘efeito cascata’ sobre todo o setor imobiliário e de construção civil“. Em outubro passado, a empresa Fantasía Holding não pagou um empréstimo de mais de US $ 200 milhões e corre o risco de ir à falência[27]. Um artigo já citado considera que a crise do setor imobiliário e da construção civil “de fato, já explodiu na China[28].

Qual será o impacto desse processo na dinâmica da economia chinesa e, a partir dela, na economia mundial como um todo? Alguns acreditam que isso poderia ter o mesmo efeito amplificador que o colapso do banco Lehman Brothers nos Estados Unidos em 2008[29]. O FMI, em novembro passado, observou: “Embora a economia chinesa continue a se recuperar após o impacto da pandemia COVID-19, a inércia está desacelerando.”[30]

Faremos uma breve referência à questão do confronto que os Estados Unidos têm com a China e que foi colocado como objetivo estratégico de sua política externa pelo governo de Joe Biden. Isso foi expresso na “guerra comercial-tecnológica” iniciada por Donald Trump[31] e que agora começa a ter outras expressões diplomáticas[32]. Independentemente das possíveis caracterizações do significado desse confronto, é evidente que ele atravessa toda a conjuntura mundial e coloca instabilidade à dinâmica da economia mundial e sua recuperação.

O movimento de massas

A pandemia atingiu duramente os trabalhadores e as massas em todo o mundo: pelo impacto direto das infecções e das mortes, e porque as burguesias descarregaram sobre seus ombros o peso da crise econômica do ano passado, exacerbando ao extremo os ataques permanentes contra os condições de trabalho e nível de vida que, com alguns altos e baixos, já se arrasta há décadas.

Uma de suas expressões mais graves é o aumento da “extrema pobreza” (miséria) e da “insegurança alimentar” (fome)[33]. Sem ir a tal extremo, em todo o mundo aumentaram a pobreza, o desemprego, a perda do poder aquisitivo dos salários, a deterioração das condições de trabalho e a precarização. Uma realidade que dificilmente será revertida pela recuperação em curso: as burguesias não têm a intenção de “devolver o que foi roubado”, pelo contrário, procuram consolidar definitivamente esta deterioração. Esta realidade provoca sentimentos de “intolerabilidade” nos trabalhadores e nas massas que, em vários países e regiões, têm gerado fortes respostas no campo da luta de classes.

Em 2020, a pandemia e seu impacto causaram um relativo impasse na ação do movimento de massas, que esteve muito mais na defensiva. Foi “relativo” porque, logo após o início da pandemia, aconteceram nos Estados Unidos rebeliões antirracistas contra a repressão e os assassinatos policiais, que colocaram o governo de Donald Trump contra a parede e geraram uma crise no regime político como um todo[34]. Um pouco encoberto pelo impacto dessas rebeliões, ocorreu um importante processo de greve, principalmente nos setores de educação, serviços e comércio[35].

Este último ano foi, em grande medida, de recuperação de uma maior dinâmica de luta de massas em vários países e regiões. Vamos nos concentrar em alguns, por sua importância objetiva ou por seu significado político.

Cuba

Em julho passado, houve mobilizações de vários milhares de pessoas em várias cidades cubanas, protestando contra a crise de saúde gerada pela pandemia, o racionamento de medicamentos e alimentos e a falta de liberdade democrática imposta pelo regime castrista. As mobilizações foram duramente reprimidas e centenas de ativistas e participantes foram processados ​​e presos[36]. Esses fatos reacenderam a intensa polêmica que se arrasta há mais de duas décadas na esquerda mundial.

A corrente castro-chavista considera que Cuba é “o último bastião do socialismo” e que o elemento determinante dos problemas que atravessa o país é o boicote que desenvolve há décadas o imperialismo ianque. Por isso, caracteriza que essas mobilizações são contrarrevolucionárias porque são impulsionadas e acabam servindo aos interesses deste imperialismo e da burguesia cubana exilada em Miami (os gusanos). Portanto, apoiam a repressão do regime castrista contra elas[37].

Por sua vez, várias organizações que se consideram trotskistas (como a FT, dirigido pelo PTS argentino) consideram que Cuba continua a ser um “Estado operário burocratizado” em que o castrismo promove uma política de restauração do capitalismo e, como um risco equivalente, há a “pressão restauracionista” do imperialismo ianque e da burguesia gusana de Miami[38]. Por isso, caracteriza que essas mobilizações tiveram um “caráter contraditório”: por um lado, foram devidas a causas justas (a deterioração das condições sociais das massas), mas, por outro, são reacionárias: “Não há dúvida de que foram utilizados por meios e redes sociais financiados pelos Estados Unidos”. Diante dessa “contradição”, a FT adotou uma posição abstencionista por não propor nenhuma orientação concreta. Uma política que, face às reais mobilizações ocorridas, acaba por favorecer o regime castrista. Há algo pior, que se situa no campo de princípios de uma organização que se diz trotskista: a FT não só não apoia as mobilizações, mas quase não denuncia a atual repressão presente do regime castrista. Em particular, não está impulsionando (ou se somando) a uma campanha internacional pela liberdade de muitos prisioneiros que foram detidos pela repressão do regime. Campanha que poderia desenvolver com muita força na Argentina, onde o PTS conta com vários legisladores e muito espaço na mídia. É necessário que mudem essa atitude.

A LIT-QI, por sua vez, caracteriza que, há décadas, o próprio regime castrista restaurou o capitalismo em Cuba[39]; que este espaço tem sido utilizado pelos imperialismos europeus e canadense, (que têm feito grandes investimentos no setor turístico internacional, em um processo acelerado de recolonização), e que a cúpula castrista foi se transformando em uma burguesia subordinada (a partir do controle do conglomerado estatal GAESA). Se somarmos a falta de liberdades democráticas para os trabalhadores e as massas, definimos que o regime castrista se transformou em uma ditadura capitalista.

O bloqueio ianque efetivamente existe, visa estrangular a economia cubana e gerar inquietação econômica e política na população contra o regime castrista. É por isso que o combatemos e denunciamos. No entanto, é necessário especificar que se trata de um bloqueio parcial, já que vários países imperialistas investem e comercializam com Cuba. O mesmo é feito por muitos outros países do mundo, como o Brasil, que participou da construção das instalações da Zona Especial de Desenvolvimento do Porto de Mariel com financiamento do Estado Brasileiro por meio do BNDES[40].

O regime cubano tem promovido ajustes que eliminam as conquistas remanescentes da revolução. O mais recente deles é o chamado Plano do Dia Zero, lançado no início de 2021[41]. Essa deterioração é tão grande que até reverteu os bons resultados iniciais que o país havia obtido no combate à pandemia[42]. A pandemia gerou uma grande diminuição no fluxo do turismo internacional (sua principal fonte de divisas) e, com ela, um estrangulamento econômico. A situação das massas tornou-se insuportável, enquanto os integrantes da cúpula do regime e os turistas estrangeiros compravam nas lojas especiais, com dólares.

Essa realidade, e a absoluta falta de liberdades democráticas, geraram as mobilizações de julho.

Por isso, os definimos como uma expressão justa e progressista de uma luta contra uma ditadura capitalista, que deve ser apoiada para além das inevitáveis ​​contradições que podem apresentar[43]. Por isso, agora estamos desenvolvendo, como uma de nossas atividades centrais, uma campanha internacional pela liberdade dos presos políticos cubanos[44].

Afeganistão

Outro acontecimento muito importante foi a derrota das forças imperialistas encabeçadas pelos EUA na guerra do Afeganistão, iniciada há 20 anos pelo então presidente George W. Bush, e que, em 2003, continuaria com a invasão do Iraque[45]. Com a retirada das tropas houve “a consumação da derrota”, já que o curso de ambas as guerras foi claramente desfavorável por vários anos[46]. O governo Obama já havia iniciado uma virada tática com a estratégia de retirada gradativa das tropas: promoveu a construção de um “exército nacional afegão” que armou, treinou e financiou para que fosse capaz de sustentar e conter o Taleban. Mas, desde então, mostrou-se um “castelo de areia” ineficiente e corrupto e acabou desmoronando quando o imperialismo anunciou sua retirada definitiva.

O governo Trump já havia tomado esta decisão: “Depois de todos esses anos, é hora de trazer nosso povo de volta para casa.” Mas foi Joe Biden quem concretizou a retirada definitiva. Foi uma nova derrota para o imperialismo ianque e seus sócios europeus em sua política de invasão de países e imposição militar de sua vontade. Celebramos essa derrota porque é uma demonstração de que o imperialismo não é uma força invencível, mas apresenta fraquezas profundas. Essa definição é central no balanço do que aconteceu nos últimos 20 anos e um componente importante da situação atual. Para nós, este resultado fortalece as lutas dos trabalhadores e das massas no mundo contra o imperialismo, e chamamos a redobrá-las.

Com base neste critério (apoiamos as lutas das massas contra o imperialismo independentemente da sua direção), ao longo da guerra, colocamo-nos claramente no campo militar da resistência nacional afegã. Por isso, promovemos a unidade de ação militar com o Talibã contra o imperialismo. Uma posição que já gerava polêmica, logo no início da guerra[47].

Que agora reabriu porque o ocorrido apresenta uma contradição profunda: quem tomou o poder no país foi o Talibã, uma organização com uma ideologia profundamente reacionária e de caráter semifascista, que instalou uma ditadura teocrática, que aplica uma legislação muito opressora e repressiva contra as mulheres e as minorias étnicas, religiosas e linguísticas que vivem no Afeganistão. Isso faz com que alguns setores da esquerda considerem que “não há o que comemorar” porque o resultado geral da guerra é um “saldo zero”, sem benefícios para as massas. Outros vão ainda mais longe e sugerem que esses setores atacados pelo Talibã estavam melhor antes e, portanto, o resultado da guerra seria negativo. Acreditamos que este critério de análise e suas conclusões estão errados[48].

Porém, da mesma forma que celebramos a derrota do imperialismo, consideramos que, desde que o Talibã assumiu o poder, a realidade mudou no país e, portanto, nossa política deve mudar. Acreditamos que a principal tarefa que se apresenta para as massas afegãs (especialmente as mulheres e as minorias oprimidas) é a luta contra esta ditadura. Por isso, apoiamos as manifestações incipientes desse processo que começaram a ocorrer[49].

Por trás de sua ideologia teocrática reacionária, o Talibã é uma organização cuja cúpula aspira se transformar em um setor burguês que se enriqueça como intermediário para a extração de imensos recursos naturais inexplorados (como o lítio). Esta política enfrenta uma realidade: o nível de industrialização afegã é quase inexistente e não há pessoal treinado para o gerenciamento e manutenção da tecnologia e maquinários necessários (muito menos sua fabricação). Por isso, o regime talibã precisa se associar a países que detenham essas tecnologias e fazer os investimentos necessários, em troca, é claro, de se apropriar de parte substancial dessa riqueza.

A busca está dirigida principalmente para a China e a Rússia. Mas eles também abrem sua oferta aos vários imperialismos. Em entrevista a um jornal italiano, o porta-voz do Talibã disse que estava “convidando investidores estrangeiros a investir em um Afeganistão estável e seguro[50]. Em outras palavras, a perspectiva não é que este regime use seu triunfo para aprofundar a luta contra o imperialismo, mas, ao contrário, que tente se mostrar “estável e seguro” e conseguir “um lugar ao sol” sob o regime imperialista. Se essa perspectiva se confirmar, seria um novo motivo para lutar contra esse regime.

A classe operária volta à cena?

Em 2019, uma onda de rebeliões e revoluções varreu várias regiões do mundo. Na América Latina teve seu epicentro no processo revolucionário no Chile[51]. Foram lutas que responderam ao agravamento constante do padrão de vida das massas, às situações de opressão nacional ou contra os regimes ditatoriais. Foram processos explosivos, com mobilizações que enfrentaram duras repressões. A juventude precarizada e sem futuro se colocou na vanguarda desses enfrentamentos. No Chile, este setor adquiriu um princípio de organização e um nome: Primeira Linha[52]. Em geral, a classe operária não interveio nos processos a partir de suas estruturas e organizações, e com seus métodos, mas se dissolveu nas massas em luta.

Em 2020, a pandemia e seu impacto causaram um relativo impasse na ação do movimento de massas, que estava muito mais na defensiva, havendo até algumas derrotas, como em Hong Kong. Nos Estados Unidos, rebeliões antirracistas explodiram e se espalharam. No final do ano, uma grande luta das mulheres argentinas culminou com o triunfo da votação parlamentar da lei que legalizou o direito ao aborto.

Em 2021, os trabalhadores e as massas parecem voltar à dinâmica de 2019. Em março, aconteceu uma explosão no Paraguai contra o péssimo manejo da pandemia pelo governo do Partido Colorado[53]. Em junho, iniciou-se uma onda de mobilizações contra o governo de Iván Duque, na Colômbia, às quais o regime respondeu com forte repressão[54]. Esses processos mantiveram as características que analisamos nos de 2019 e nas rebeliões antirracistas nos Estados Unidos. Porém, em 2021 uma importante mudança parece estar ocorrendo: a presença da classe trabalhadora a partir de suas estruturas, sua organização e seus métodos.

Ao longo do ano, desenvolve-se nos Estados Unidos uma importante onda de greves que, dos setores de educação e serviços, predominantes nas lutas de 2020, se estende fortemente aos trabalhadores industriais, que por muitos anos estiveram ausentes de cena[55]. Um analista chamou a situação de “greve geral” na verdade. A onda é produzida com objetivos econômicos, mas tem um profundo significado político porque aponta contra o coração de uma política central da burguesia: descarregar o custo da recuperação econômica sobre os ombros da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, consideramos que isso significa uma mudança profunda no humor e na ação da classe trabalhadora americana.

Outro processo de grande importância foi a greve geral realizada na Índia, em dezembro de 2020, contra várias “leis agrícolas” e em oposição à nova “lei do trabalho” que ataca a organização no local de trabalho, promovida pelo governo do BJP (Partido Popular da Índia). Mais de 200 milhões de pessoas participaram (o maior da história da humanidade)[56]. Naquele momento, o governo havia retrocedido, mas  depois voltou à carga. Em outubro passado, a Frente Unida dos Agricultores e vários sindicatos convocaram uma nova greve[57]. Diante dessa ameaça, o Parlamento revogou as polêmicas leis, o que significaria um primeiro triunfo da luta[58].

Na África do Sul, os metalúrgicos (agrupados no poderoso sindicato NUMSA) fizeram uma forte greve por causa dos aumentos salariais[59]. Na Itália, os trabalhadores da metalúrgica GKN e os da Alitalia superam as divisões sindicais e aparecem como um eixo de resistência aos ataques do governo Draghi e os patrões[60]. Em outubro, a Confederação de Nacionalidades Indígenas (CONAIE) e a Frente Unitária dos Trabalhadores convocaram uma greve geral contra as políticas do governo equatoriano de Guillermo Lasso, especialmente contra o aumento dos preços dos combustíveis[61]. Na Bélgica, no início de dezembro, milhares de manifestantes se mobilizaram pelas ruas de Bruxelas, convocado por todas as centrais sindicais, contra a inflação e também contra os ataques aos dirigentes sindicais[62].

Se esta tendência se confirmasse, significaria um elemento de grande importância para as tendências da luta de classes em 2022. Nesse quadro, seria também um processo central para a LIT-QI, porque reivindicamos uma organização da classe operária e é aí onde desenvolvemos a nossa intervenção principal.

As respostas das burguesias

As burguesias imperialistas e nacionais não permanecem passivas perante esta dinâmica de lutas. Diante das explosões e mobilizações de rua, muitas vezes respondem com duras repressões institucionais que podem atingir níveis criminais (Colômbia)[63], ou centenas de presos na oposição (Cuba). Em outros casos, respondem com golpes, como os que ocorreram em Mianmar (antiga Birmânia), em fevereiro deste ano[64], e no Sudão, em outubro[65].

No entanto, vemos que a principal resposta em muitos países é tentar desviá-los por meio de eleições burguesas. Por exemplo, isso é nitidamente o que estão tentando fazer no Chile. No Chile, a vitória eleitoral do reformista Gabriel Boric é uma expressão distorcida das lutas que o movimento de massas vem enfrentando na última década, principalmente a partir de 2019. Por isso, gera muita expectativa dentro e fora do país. Mas Boric, como alertamos, não representa os interesses da revolução que estourou há pouco mais de dois anos, mas sim um projeto que defende os interesses do grande capital do país. Seu governo, embora com uma retórica “progressista”, será um governo para os capitalistas. A estratégia do Boric, da Frente Ampla e do Partido Comunista do Chile é negociar com os que estão no topo e acalmar o movimento de massas, desviar a revolução para o caminho morto das instituições democrático-burguesas. Por isso, o MIT e nossa companheira María Rivera, que utiliza a tribuna parlamentar para fortalecer o processo revolucionário e desmascarar todos os projetos burgueses e reformistas, propõem um caminho diferente: o caminho da mobilização e organização da classe trabalhadora e a juventude para a luta contra o capitalismo neoliberal chileno e o poder dos grandes empresários. Esta alternativa, operária e socialista, implica a independência do futuro governo Boric, que não resolverá os problemas fundamentais de nossa classe nem responderá às demandas da revolução chilena.

Nestes processos eleitorais estimulam a ideia de que a única forma de mudar as coisas são as eleições e, nelas, deve-se escolher sim ou sim entre as variantes burguesas de direita ou as supostamente “progressistas”, através das organizações que as representam.

Procuram manter seu domínio por meio de um movimento eleitoral pendular: se é a direita que está em crise, vamos com os “progressistas”, como aconteceu nos Estados Unidos com Biden; no Peru, com Pedro Castillo; em Honduras, com Xiomara Castro; no Chile, com Boric; ou pode acontecer no Brasil com Lula. Se são os “progressistas” que se desgastam, “vamos com a direita”, como aconteceu com Lacalle Pou no Uruguai ou pode acontecer na Argentina, pelo desgaste do governo peronista e um novo governo de Juntos pela Mudança, em 2023.

Na América Latina, na medida em que se confirme essa tendência a um novo ascenso e, na ausência de uma direção revolucionária que leve os processos de luta às últimas consequências, é bem possível que vejamos muito esse uso dos processos eleitorais e, pelo mesmo motivo, uma tendência de capitalização eleitoral por parte dos partidos ou coligações burguesas supostamente progressistas.

No contexto da crise e da erosão dos mecanismos da democracia burguesa, e com ela o crescente ceticismo das massas, abrem-se espaços para figuras com um discurso de extrema direita disfarçado de “antissistema”, no estilo do que adotou Bolsonaro no Brasil. Esta crise, por um lado, e o fato de a maioria da esquerda estar totalmente adaptada a ela e não apresentar uma alternativa revolucionária permite-lhes ganhar espaço, como aconteceu com Javier Milei, na Argentina, ou com Franco Parisi, no Chile. Para além dos discursos confusos de extrema direita, não se trata de figuras que promovem uma organização fascista com o objetivo de tomar o poder pela força, mas sim que pretendem aproveitar esse espaço existente para se constituírem como correntes eleitorais e parlamentares.

Queremos terminar com algumas breves conclusões. A primeira delas é que a principal tarefa da LIT-QI é apoiar as lutas em curso e estimular o seu desenvolvimento, especialmente as que envolvem a classe operária. Nessas lutas, participamos em unidade de ação com várias organizações. No entanto, no contexto dessa unidade de ação, devemos desenvolver uma dura luta contra a política das organizações reformistas e / ou burocráticas que, por um lado, empurram para levá-las ao beco sem saída dos processos eleitorais ou dos mecanismos parlamentares. E, neles, amarram seu carro à variante burguesa “progressista” de turno. Por exemplo, a política do PSOL no Brasil de apoio à candidatura de Lula e sua aliança com setores burgueses de direita. Ou as organizações de esquerda argentina que aderiram às listas eleitorais do kirchnerismo.

Para a LIT-QI, as lutas dos trabalhadores e das massas nunca devem ser subordinadas aos processos eleitorais, embora sejamos a favor de participar neles e usar esse espaço. Ao mesmo tempo, acreditamos que estes combates devem ser passos que avancem no caminho da luta pelo poder da classe operária, a destruição deste sistema capitalista-imperialista cada vez mais retrógrado e desumano e sua substituição por um muito mais racional e humano, através da revolução socialista. Por isso encerramos 2021 reafirmando nosso chamado, em todos os países, à construção de partidos revolucionários, operários e socialistas, que façam parte de uma Internacional democraticamente centralizada, que vise a reconstrução da Quarta Internacional. A LIT-QI renova seu compromisso com esta estratégia.

[1]Ver por exemplo  https://litci.org/pt/a-mentira-do-fim-da-pandemia/

[2] https://litci.org/pt/a-europa-no-epicentro-da-pandemia/

[3] Ver: https://litci.org/pt/63374-2/

[4] Sobre este tema recomendamos ler: https://litci.org/pt/62684-2/

[5] Ver https://litci.org/pt/a-corrida-pela-vacina-contra-a-covid-19/

[6] Sobre este tema ver:  https://litci.org/pt/64247-2/

[7] https://www.bbc.com/mundo/noticias-59466211

[8] Ver https://litci.org/pt/63316-2/

[9] https://www.bbc.com/mundo/noticias-59546388

[10] Sobre este tema recomendamos ler: https://litci.org/pt/65301-2/ e https://litci.org/pt/fracasso-da-cop26-lutar-pelo-socialismo-para-enfrentar-a-emergencia-climatica/

[11] https://www.france24.com/es/programas/econom%C3%ADa/20211013-economia-pandemia-pib-crecimiento-covid

[12] https://litci.org/pt/62598-2/

[13] Sobre este tema ver o artigo “Economia mundial: recuperação anêmica e com muitos problemas” em https://litci.org/pt/64989-2/

[14] https://www.elblogsalmon.com/indicadores-y-estadisticas/recuperacion-forma-k-economia-rota-ganadores-perdedores

[15] https://www.eleconomista.es/economia/noticias/11322656/07/21/La-inflacion-no-da-respiro-a-la-Fed-el-IPC-general-sube-hasta-el-54-y-el-subyacente-toca-maximos-de-1991.html

[16] https://www.eleconomista.es/economia/noticias/11377830/09/21/La-inflacion-aumenta-y-la-eurozona-marca-maximos-desde-2011-al-3.html

[17] Ver artículo da referência [15].

[18] ROUBINI, Nouriel, The stagflation threal is realProject Syndicate, 30 de agosto de 2021

[19] https://economia.ig.com.br/2021-12-02/brasil-recessao-o-que-e.html

[20] https://www.bbc.com/mundo/noticias-internacional-59533515

[21] https://www.elmundo.es/economia/2020/09/17/5f6261e7fdddffbb108b45f6.html

[22] https://www.libremercado.com/2021-11-21/daniel-rodriguez-asensio-la-mayor-burbuja-de-nuestra-historia-explotara-crisis-sistema-financiero-daniel-rodriguez-asensio-6838798/

[23] https://www.brasil247.com/mundo/china-continuara-sendo-estabilizador-da-recuperacao-economica-mundial

[24] Dados retirados de https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/09/20/crise-na-evergrande-por-que-o-mercado-esta-em-alerta-e-quais-as-possiveis-consequencias-para-o-brasil-e-o-mundo.ghtml

[25] Sobre este tema recomendamos ler https://litci.org/es/certezas-e-interrogantes-que-plantea-la-crisis-economica-en-china

[26] Ver artigo do Financial Times en ft.com/content/e7dac606-1d25-4034-99af-aafab24d5a4d

[27] https://www.latercera.com/pulso/noticia/otro-evergrande-ahora-la-china-fantasia-holdings-cae-en-impago-de-una-deuda/S75ZA53HNVCGDEY3ZWWJGNZ2TU

[28] Ver artículo da referência [25]

[29] https://www.ambito.com/negocios/china/la-crisis-evergrande-el-lehman-brothers-chino-que-pone-riesgo-los-mercados-del-mundo-n5279216

[30] https://www.infobae.com/america/agencias/2021/11/19/fmi-la-economia-china-sigue-recuperandose-pero-la-inercia-se-ralentiza/

[31] Sobre este tema recomendamos ler https://litci.org/pt/armas-de-guerra/

[32] https://cnnespanol.cnn.com/2021/12/09/australia-boicot-diplomatico-estados-unidos-juegos-olimpicos-beijing-2022-trax/

[33] https://news.un.org/pt/story/2020/10/1728962

[34] https://litci.org/pt/um-processo-revolucionario-sacode-os-eua/

[35] Ver https://www.smh.com.au/world/north-america/wave-of-1000-strikes-ripples-across-the-us-as-crisis-bites-20200929-p5606t.html?fbclid=IwAR18IEkXZYTySoMSe09REwoKMrokXws-tEgqdPyF7ap4yA8sHkHLDb5GUEM

[36] Ver o artigo https://litci.org/pt/todo-apoio-a-luta-do-povo-cubano/

[37] https://litci.org/pt/65240-2/

[38] Ver https://litci.org/pt/que-politica-o-trotskismo-deve-ter-frente-ao-atual-processo-cubano/

[39] https://litci.org/pt/debate-com-os-dirigentes-cubanos-no-forum-social-mundial/

[40] http://www.zedmariel.com/es y https://diariodecuba.com/internacional/1577055460_7967.html?__cf_chl_jschl_tk__=pmd_153f8059117aac8ccff6190cce734ab9c6eedf25-1628532318-0-gqNtZGzNAfijcnBszQjO

[41] Ver o artigo https://litci.org/pt/cuba-o-significado-do-dia-zero/

[42] Ver https://litci.org/pt/por-que-cuba-consegue-frear-a-expansao-do-coronavirus/

[43] https://litci.org/pt/15n-como-seguir-a-luta-contra-a-ditadura-cubana/

[44] https://litci.org/pt/65376-2/

[45] https://litci.org/pt/afeganistao-a-consumacao-da-derrota-do-imperialismo/

[46] Sobre a situação existente já em 2009, recomendamos ler os artigos de Bernardo Cerdeira no dossiê “Oriente Médio”. Um novo e imenso Vietnã para o imperialismo”, publicado na revista Marxismo Vivo No 22 (dezembro de 2009).

[47] Ver artigo sobre a guerra no Afeganistão, publicado na revista Marxismo Vivo no 4, São Paulo, Brasil, dezembro de 2001, e “Afeganistão – Quais são os critérios para analisar a guerra?”, Em https://litci.org / en / 66729-2 / e https://litci.org/pt/afeganistao-quais-sao-os-criterios-para-analisar-a-guerra/

[48] Ver por exemplo Os “salvadores de mulheres” armaram seu cativeiro há décadas no Afeganistão em:https://litci.org/pt/64733-2/

[49] Ver https://litci.org/pt/estamos-com-as-mulheres-afegas/

[50] https://ciarglobal.com/gobierno-taliban-busca-confianza-internacional-para-atraer-inversion-extranjera/

[51] Ver a declaração da LIT https://litci.org/pt/tempos-de-rebeliao/

[52] Sobre este tema, ver entre outros artigos https://litci.org/es/carta-de-un-primera-linea-es-urgente-fortalecer-la-autodefensa-de-nuestra-revolucion/

[53] Ver https://litci.org/pt/paraguai-capitalismo-periferico-e-pandemia/ e https://litci.org/es/quema-de-la-anr-es-un-simbolo-de-la-legitima-rebelion-popular

[54] Ver entre outros artigos https://litci.org/pt/avancar-para-a-greve-geral-encontro-emergencial-e-apoio-a-primeira-linha-contra-a-guerra-que-duque-declara-a-paralisacao-nacional/

[55] Ver o artigo https://litci.org/pt/grande-onda-de-greves-nos-estados-unidos/

[56] https://desinformemonos.org/esto-es-una-revolucion-senor-huelga-general-en-la-india

[57] https://litci.org/pt/todo-apoio-a-greve-geral/

[58] https://www.efe.com/efe/espana/economia/el-parlamento-indio-deroga-las-controvertidas-leyes-de-la-reforma-agraria/10003-4686479.

[59] Ler https://litci.org/pt/65270-2/

[60] Ler https://litci.org/pt/gkn-e-alitalia-para-alem-das-barreiras-sindicais-um-exemplo-de-resistencia-contra-os-ataques-do-governo-draghi/

[61] https://www.latimes.com/espanol/internacional/articulo/2021-10-26/ecuador-paro-nacional-contra-politicas-del-presidente-lasso

[62] https://es.euronews.com/2021/12/06/todo-sube-menos-nuestros-salarios-belgica-protesta-contra-la-inflacion

[63] https://litci.org/pt/64319-2/

[64] Ver https://litci.org/es/abajo-el-golpe-en-myanmar/

[65] Ver https://litci.org/pt/65256-2/