Fábio Bosco, de São Paulo (SP)

No último dia 2 de março, o grupo de especialistas apontado pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) para investigar as violações na Nicarágua denunciou o regime de Daniel Ortega e de sua esposa Rosario Murillo por crimes contra a humanidade.

Desde os protestos pacíficos contra a reforma da previdência em abril de 2018, mais de 350 manifestantes foram assassinados por forças policiais e paramilitares. Além disso, 317 dissidentes políticos tiveram sua nacionalidade cancelada, entre os quais 222 presos políticos que foram expulsos do país em 7 de fevereiro. O relatório denuncia ainda prisões arbitrárias e tortura. Entre os dissidentes expulsos está a lendária comandante sandinista Dora María Téllez, imortalizada na crônica de Gabriel Garcia Marques – “Assalto ao Palácio” – escrita em 1978.

No dia seguinte, 54 países integrantes do Conselho de Direitos Humanos da ONU endossaram as denúncias, mas o Brasil se manteve ao lado da ditadura nicaraguense e se limitou a anunciar que pode receber os dissidentes nicaraguenses que tiveram sua nacionalidade retirada.

Um longo histórico de repressão

A repressão contra dissidentes faz parte da tradição sandinista. Após tomar o poder em 19 de julho de 1979, a Frente Sandinista de Libertação Nacional tratou de montar juntas de reconstrução nacional com setores burgueses, desarmar a população e formar um exército e polícia regulares.

Em meio a esse processo, em 14 de agosto de 1979, o governo sandinista prendeu e deportou 70 integrantes da Brigada Simón Bolívar que combateram a ditadura de Anastasio Somoza e se dedicavam a organizar sindicatos independentes.

Mas os traços de repressão mais visíveis vieram a partir do retorno de Daniel Ortega ao poder em 2006. Antes de ser eleito, Ortega apoiou a proibição total do aborto no país. Em 2008 fraudou as eleições municipais e reprimiu duramente os protestos em Manágua e León. Em 2013, reformou a lei eleitoral que permite a reeleição ilimitada e estabelece seu controle sobre o Conselho Supremo Eleitoral.

Em 2014, esmagou os protestos camponeses contra a expropriação de suas terras para a construção de um canal interoceânico. Em 2018 suprimiu os protestos contra a reforma da previdência. Em 2020, impôs leis de exceção que permitem prender por “traição à pátria” qualquer cidadão que critique publicamente seu governo. Em 2021 prendeu sete candidatos opositores frente à iminente derrota eleitoral de seu governo impopular.


Capitalismo e pobreza

Enquanto país afunda na miséria, sandinistas ficam ricos

A Nicarágua possui 6 milhões de habitantes, 40% camponeses. A maioria vive em situação de pobreza. Mas o país possui mais milionários que a Costa Rica. Essa situação se aprofundou nos 16 anos de governo Ortega-Murillo.

Em 2006, entrou em vigor o Acordo de Livre Comércio com os Estados Unidos (Cafta), e com ele se ampliaram os investimentos estrangeiros que vão controlar as riquezas do país.

Além disso, o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez estabeleceu investimentos anuais de US$ 600 milhões. Estes investimentos garantem um crescimento anual médio de 4% do PIB até 2018, quando a economia entrou em recessão.

O crescimento econômico possibilita alguns programas assistenciais, que garantiram a popularidade do governo até 2018, mas principalmente fortalece a nova burguesia sandinista, formada por dirigentes sandinistas que se apropriam de bens e concessões públicas, entre os quais se destaca a família Ortega – dona de 22 empresas capitalistas particularmente redes de televisão. Essa nova classe capitalista está aliada à velha classe capitalista, corrupta e direitista, para governar o país.

Retórica

Ortega e a farsa do anti-imperialismo

As relações com os Estados Unidos são marcadas por farpas verbais e muita colaboração econômica e política.

O governo Ortega-Murillo mantém a Cafta, que beneficia principalmente os capitalistas norte-americanos. Cerca de 60% das exportações nicaraguenses vão para os Estados Unidos.

Além disso, o exército nicaraguense mantém excelente relação com o Comando Sul das Forças Armadas norte-americanas. Há também acordos com a DEA (agência norte-americana de combate ao narcotráfico) em torno da “guerra contra as drogas”.

Por fim, o governo Ortega-Murillo se dedica a transformar a Nicarágua em um muro de contenção à migração terrestre para os Estados Unidos.

Na relação com os Estados Unidos, essas ações falam mais alto que o repertório anti-imperialista.

Ditaduras

O apoio de Lula à ditadura nicaraguense vai na contramão da luta do povo brasileiro

A posição do governo Lula de ficar ao lado da ditadura nicaraguense abandona a defesa das liberdades democráticas que foram importantes na história recente do Brasil.

O Brasil viveu sob uma ditadura cívico-militar entre 1964 e 1984. Nesse período, a ditadura assassinou ao redor de 10 mil pessoas entre ativistas de esquerda nas cidades, camponeses, trabalhadores rurais e povos indígenas. No período mais duro, os países vizinhos e os Estados Unidos apoiavam a ditadura e silenciavam sobre os crimes contra a humanidade praticados no Brasil. Mas havia governos europeus ou de esquerda que se posicionaram contra as atrocidades, e dessa forma foram um importante ponto de apoio para a classe trabalhadora e a esquerda brasileira.

Infelizmente, Lula, ele próprio vítima da famigerada Lei de Segurança Nacional (LSN), esquece dessa experiência e dá as costas ao povo nicaraguense para apoiar uma ditadura que é sua aliada.

Se essa estratégia prevalecer, todos os explorados e oprimidos por regimes aliados a Lula, como os de Cuba (onde há mais de 700 presos políticos), Venezuela, Rússia (que já matou 100 mil ucranianos no último ano), China (que suprimiu os protestos em Hong Kong e prende o povo Uighur em campos de concentração em Xinjiang), Coreia do Norte, não contarão com o apoio do governo brasileiro, mas poderão contar com a solidariedade de todos e todas que não abandonamos a luta por liberdades democráticas, nem abrimos mão da luta pelo socialismo e pela revolução mundial.

Nicarágua e a LIT

A Brigada Simón Bolívar na revolução

A revolução nicaraguense cumpriu um papel muito importante na fundação da Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI), à qual integra o PSTU.

Em 1979, os trotskistas liderados por Nahuel Moreno formaram a Brigada Simón Bolívar para lutar na Nicarágua contra a ditadura de Somoza. A brigada saiu da Colômbia e passou a combater na Frente Sul, a partir da Costa Rica.

Seu principal feito foi a tomada da cidade portuária de Bluefields, a principal da costa Atlântica. Três combatentes foram mortos e vários ficaram feridos.

Após a queda de Somoza, os integrantes da brigada formaram em Bluefields um governo sem capitalistas, contrariando a orientação dos sandinistas, e organizaram na capital 90 sindicatos representando cerca de 20 mil trabalhadores e trabalhadoras.

Por esse motivo, 70 estrangeiros integrantes da brigada foram presos, deportados para o Panamá, torturados pelo governo local e expulsos para seus países.

Os dirigentes da Quarta Internacional (Secretariado Unificado), baseada em Paris e liderada por Ernest Mandel, apoiaram a repressão sandinista. Dois anos depois, Mandel declarou que os sandinistas eram mais democráticos que os bolcheviques.

Esse apoio à repressão levou os trotskistas liderados por Nahuel Moreno, então a principal corrente na América Latina, a romperem com os mandelistas e fundarem, em 1982, a Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI).