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Hertz Dias

Membro da Secretaria de Negros do PSTU e vocalista do grupo de rap Gíria Vermelha

Hertz Dias, professor da rede pública e dirigente do PSTU-Maranhão

O livro “Fascismo da cor”, do jornalista e sociólogo Muniz Sodré, e a entrevista que ele deu ao jornal Folha de S. Paulo, questionando a ausência de base científica no conceito de racismo estrutural, popularizado pelo professor e atual ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Sílvio de Almeida, teve o mérito de quebrar um certo consenso existente em torno ao conceito e abrir um debate sobre a natureza do racismo brasileiro. Logo em seguida, no dia 02/04, os professores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Lia Vainer Schucman e Rafael Mantovani, publicaram um artigo, também na Folha de S. Paulo, defendendo a “cientificidade” do conceito.

Para Muniz Sodré, as estruturas brasileiras foram criadas para não funcionar. E, se o racismo funciona, é porque ele não é estrutural. Diferente dos Estados Unidos ou da África do Sul, onde havia ordenamentos jurídicos explicitamente racistas, o racismo brasileiro seria produto do que ele chama de relações sociais escravistas e não das estruturas.

Schucman e Mantovani defendem Sílvio de Almeida, afirmando que ele “(…)usa a versão althusseriana do materialismo histórico, que compreende a estrutura como resultado de processos socio-históricos que constroem a forma da sociedade, bem como instituições, grupos sociais e sujeitos – como, no Brasil, a escravidão.”

Observe-se que, para Perry Anderson (2004), o estruturalismo althusseriano é “o rompimento radical (…) com as concepções tradicionais do materialismo histórico [que] encontrava-se em sua firme convicção de que ‘ideologia não tem história, porque é – como o inconsciente – ‘imutável’ em sua estrutura e em sua operação no interior das sociedades humanas”. Ou seja, o estruturalismo é o oposto do materialismo histórico, e não uma versão, pois abandona a luta de classes como centro de suas explicações. No lugar dos sujeitos históricos aparecem sujeitos imaginários, construídos por ideologias e adaptados a ordem social. Sai Marx, entra Freud. Sai Lênin, entra Stálin.

No livro “O que é racismo estrutural?”, Almeida chega a afirmar que “se o racismo é inerente a ordem social, a única forma de uma instituição combater o racismo é por meio de implementação de práticas antirracistas efetivas” (p.37). Não há perspectiva de eliminar o racismo através da mudança desta “ordem social” (p.36). Ao contrário disso, “(…) para as visões que consideram o racismo institucional e/ou estrutural, mais do que a consciência, o racismo molda o inconsciente” (p.50), conclui Almeida.

Para esses estudiosos, influenciados por Althusser e Foucault, as ideologias são reflexos das estruturas ou são elas mesmas estruturas imutáveis, sem história, tal como o inconsciente de Freud, e as estruturas sem sujeitos ou com sujeitos impotentes.  O mundo aparece pulverizado em micropoderes, biopoderes, bem como o racismo aparece das mais variadas formas: individual, institucional, estrutural, sistêmico, cultural e, assim, por diante.

Na esteira dessa compreensão, Schucman e Mantovani, afirmam, no artigo supracitado, que a estrutura econômica dá origem à cultura, religiões etc. E aí, como por um passe de mágica, tudo vira estrutura, exceto as leis. Sendo assim, “o que um dia foi estruturado pela economia escravagista se tornou estruturante da cultura e dos costumes e estrutural pelo conjunto de fenômenos que o mantém”.

Atente-se para o fato de a diferença de fundo entre Sodré, Almeida e os professores da UFSC é mais conceitual e terminológica, que de conteúdo, tal como aparece no sugestivo título do artigo dos professores Burgos e Vieira – “Sem perceber, Muniz Sodré endossa racismo estrutural que tenta negar” – publicado também na Folha de S. Paulo, no dia 8 de abril.

A natureza do racismo que enfrentamos

Muniz Sodré erra por não compreender o projeto do Estado brasileiro no pós-abolição para a população negra. De fato, não era segregação legal, mas bem pior: era a eliminação biológica do negro, considerado como responsável pelo atraso do país. Se foi maquiado com a ideologia do mito da democracia racial, a partir da década de 1930, não quer dizer que ele não exista. Os Estados – português e brasileiro – nunca declararam que exterminariam os povos indígenas, simplesmente os exterminaram. E quem cumpriu esta tarefa se não as instituições burguesas? Discursos, conceitos e terminologia não substituem os fatos.

Sodré, assim como muitos historiadores brasileiros, a exemplo de Gorender, que ele cita como referência na entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, acreditava que o escravismo colonial era um modo de produção autônomo. Daí vem a confusão sobre a natureza do racismo brasileiro. Se a escravidão acabou, e se a superestrutura política e ideológica é reflexo das estruturas, por que diabos o racismo não foi enterrado junto com a escravidão? A saída, então, era apresentar o racismo como resquício da escravidão, que desapareceria com o pleno desenvolvimento do capitalismo.

Em nossa opinião, Sodré retoma essa formulação para defender que o racismo é produto das relações sociais escravistas. Na entrevista à Folha de S. Paulo, Sodré afirma que “acabou a escravidão, mas nasceu a forma social escravista. Ela mantém a escravidão como ideia e como discriminação institucional”.

Almeida, por sua vez, em entrevista ao programa “Roda Viva” (TV Cultura), que foi ao ar no dia 26/06/2020, afirmou que “o racismo é um entrave para a construção de um ambiente saudável para o desenvolvimento do capitalismo”.

Ou seja, nenhum deles coloca o racismo como um fenômeno tipicamente capitalista.

Assista

O racismo é um produto direto da época imperialista

O racismo contemporâneo surge nos laboratórios da Europa no século 19. É um produto direto da época imperialista e, não por acaso, os seus dois principais teóricos – Gobeneau e Knox – eram das duas principais potências da época, França e Inglaterra. Esses teóricos defendiam a dominação das potências mais fortes sobre as mais fracas, apoiados em justificativas de ordem raciais, religiosas, culturais e nacionais. Isso mesmo, europeus dominando europeus. O caso da dominação da Inglaterra sobre a Irlanda é emblemático, na qual Marx interveio brilhantemente, entendendo o peso da opressão na divisão do proletariado de ambos os países e mudou a sua posição a respeito da revolução, mais propensa a iniciar na nação oprimida.

Mas, com o avanço do imperialismo para o continente africano essas teorias criaram uma unidade racial artificial entre todos os povos europeus, considerando-os como sinônimo de branco, branco como sinônimo de superior, e todos os povos não-brancos como inferiores. Daí a tal “missão civilizatória” do homem branco, que não foi o motivo da espoliação e do genocídio dos povos africanos, senão sua cortina de fumaça, não tendo isso nada a ver com a escravidão colonial, mas com a expansão imperialista.

Ao analisar o escravismo colonial pelos seus objetivos e não pela forma como aparece aos nossos olhos, o revolucionário argentino Nahuel Moreno cravou: “a verdade é que não pode haver outra definição marxista para as colônias hispano-portuguesas e o sul dos EUA que não seja a produção capitalista especialmente organizada para o mercado mundial com relações de produção pré-capitalistas”.

Por isso que o fim da escravidão não significou o fim do racismo, porque não significou o fim do capitalismo. A escravidão colonial não era um modo de produção autônomo, mas uma relação de produção a serviço do capitalismo. O modo de produção (capitalismo) manteve-se, não só como produtor de mercadorias, mas também das opressões, sem as quais morreria de inanição.

Quem controla as instituições que reproduzem o racismo?

Para Sílvio de Almeida, só existe racismo estrutural porque existem instituições racistas. Se é assim, cabe então a negros e brancos antirracistas ocuparem tais instituições. Consequente com a sua tese, Almeida aceitou compor o Comitê Antirracista do Carrefour e o Ministério dos Direitos Humanos do governo Lula/Alckmin.

Ao contrário do que dizem, o conceito de racismo estrutural tem gerado uma certa banalização da luta antirracista. Logo após o assassinato de George Floyd nos EUA, e diante da rebelião antirracista que se espalhou pelo mundo, o prefeito de Mineápolis, Jacob Frey, o ex-presidente, Barack Obama, e o então presidente do país, Donald Trump, afirmaram, um seguido do outro, que aquele assassinato foi produto do racismo estrutural, visto como algo que persiste como produto da escravidão.

Após a morte de João Alberto, no estacionamento do Carrefour, a direção da empresa afirmou a mesma coisa. É como se a luta contra o racismo fosse contra o passado, contra fantasmas, contra instituições falidas que parecem ter vida própria, restando a nós ocupá-las para que deem alguns passos em nossa direção.

É obvio que os 350 anos de escravidão exercem influência nas desigualdades raciais no presente, mas tal influência é relativa. Se o governo Lula, da qual Silvo de Almeida faz parte, revogasse a Lei Antidroga, sancionada pelo próprio Lula em 2008, centenas de milhares de negros seriam, automaticamente, libertados.

O aprofundamento do genocídio negro no Brasil é também produto das políticas neoliberais dos últimos 30 anos. Revogue-as e verás este genocídio cair meteoricamente. Responsabilizar o passado escravista pela tragédia negra do presente é o mesmo que dizer à burguesia: fiquem à vontade, porque o nosso ajuste de contas é com vossos antepassados!

Estes autores tomam o fenômeno como causa. Para convencer a si mesmos, Schucman e Mantovani perguntam: “o racismo está na educação, no acesso à saúde, no mercado de trabalho, nos quadros de mando, nas crenças sobre potencialidades individuais, no simbólico e nas relações afetivas e cotidianas?” E respondem: “sim”!.

Mas, quem controla tais instituições? Não é a burguesia? Para os referidos professores, contudo, “o racismo organiza o poder econômico, o Poder Judiciário, o acesso à saúde, à educação e todas as condições de vida, estruturando nossa Nação”. Ora, se é o racismo que organiza a estrutura da sociedade, e não a burguesia, então, é ele que determina o conteúdo da história?

Escravista e estrutural: duas formas alienadas de enxergar a natureza do racismo brasileiro

Esse idealismo é produto da forma equivocada de olhar para a realidade em que os próprios intelectuais estão inseridos. Parte daquele conhecimento, que chama a si mesmo de científico, é também expressão da alienação imposta à maioria da sociedade. Alienação, não no sentido de desconhecimento [até porque Almeida e Muniz são eruditos para os quais devemos tirar o chapéu], mas de não entender a raiz social do problema que se pretende estudar e da realidade que se pretende transformar.

Por mais que as instituições capitalistas estejam cada vez mais ocupadas por negros e brancos antirracistas, o racismo só tem aumentado e a situação dos negros e negras piorado. Isso porque o vínculo entre o racismo e o capitalismo é muito mais profundo do que tentam descrever. E ao não ter condições de estabelecer esses vínculos, entre o pensamento e a realidade, o racismo e o capitalismo, alienam-se. Opinamos que só é possível captar esse vínculo e entender essa realidade quando se pretende transformá-la. Fora desse propósito, é difícil não ficar no meio do caminho.

Assim como os intelectuais ligados ao senhorio criavam teorias para dar racionalidade ao escravismo, muito intelectuais antirracistas fazem o mesmo em relação ao capitalismo, apresentando apenas o racismo como algo irracional. Mas, tanto o racismo quanto o capitalismo são irracionais, e não se trata apenas de uma opinião, mas de uma constatação.

Curso – Marxismo, Raça e Classe

Alienação e desalienação racial

Se o racismo é um instrumento de dominação, a luta antirracista deve ser orientada na busca por libertação. Essa palavra tão vulgarizada tem uma importância enorme no tema racial, até porque está indissoluvelmente ligada ao tema da desalienação.

Para alcançá-los, libertação e desalinenação, precisamos pensar o proletariado como sujeito e não como indivíduos amorfos presos a estruturas indestrutíveis.  O mesmo ser humano que é capaz de criar e recriar as instituições que fogem ao seu controle é também  capaz de destruí-las, criando novas em seus lugares.

Por essa razão, Marx chegou a afirmar que as ideologias se transformam em força material, sobretudo, quando se apropriam de multidões. É assim na reprodução do racismo, mas pode ser também na propagação de ideologias e programas antirracistas e revolucionários.

Não esqueçamos: nesta época imperialista a luta contra as opressões tende a ser mais explosiva. Foi assim no “Nenhuma a Menos” na Argentina; na rebelião contra o uso do véu após a morte de uma mulher no Irã; na rebelião indígena no Equador; e na antirracista no coração do imperialismo mundial. Todas elas encurralaram seus governos e suas burguesias, bem como todos os conceitos, teses e teorias que invisibilizam o movimento de massas como sujeitos históricos, tal como ocorreu com o estruturalismo althusseriano quando estourou o “Maio Francês” de 1968.

Os tais “grupos dominantes”, que para nós são burgueses, usam o racismo não apenas para manter seus privilégios de raça, mas para manter todos os seus privilégios de classe, que não se limitam à representatividade institucional, mas, sobretudo, avançam para a apropriação indevida da riqueza alheia.

Ora, se o racismo humilha, objetifica, extermina, superexplora negros e negras e ajuda a dividir a classe trabalhadora, cabe-nos perguntar: quem se beneficia de tudo isso?

Desalienar não é só se entender enquanto membro de uma raça ou de uma classe. Desalienar significa responder a essas questões e mudar a realidade, ou seja, arrancar as instituições das mãos da burguesia, recriá-las nos interesses da classe trabalhadora e colocar a produção sob o controle coletivo e racional de quem as produz, e cujas mãos são majoritariamente negras. Pela falta de horizonte projetivo, nem um desses autores responde a tais questões.

Não somos defensores do “cretinismo antiparlamentar”, tão combatido por Lênin, que se nega a disputar as instituições burguesas. Porém, nada disso serve se não estiver apoiado na classe operária e voltado aos interesses do conjunto do proletariado. Devemos preservar ou superar tais instituições, que só existem porque existem exploração e opressão? Pergunta tão simples que escapa ao senso comum universal da nossa refinada intelectualidade.

Os fatos são concretos e eles não podem ser substituídos por conceitos e terminologias abstratas. Os conceitos devem estar vinculados aos fatos. É preciso olhar para a classe trabalhadora brasileira, a mais negra fora da África, considerando suas contradições internas (de raça, de gênero, de sexo), seus fluxos e refluxos, vitórias e derrotas, expectativas e frustrações, mas olhar com otimismo político, recolocando-a em seu lugar de sujeito histórico, por mais dura e amarga que seja a realidade, realidade esta que deve ser não apenas interpretada, mas superada por meio da revolução socialista.

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REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental/ Nas trilhas do materialismo histórico. São Paulo (SP): Boitempo Editorial, 2004

Artigo – “Muniz Sodré endossa racismo estrutural que tenta negar” dos professores Rafael Burgos e Vinícius Vieira. Folha de S. Paulo, 08.04.2023.

Artigo – “Sobre Estrutura e Racismo” dos professores Vainer Schucman e Rafael Mantovani. Folha de S.Paulo, 29.03.2023.

Entrevista – “Radiografia do Racismo”, concedida por Muniz Sodré ao jornal Folha de S. Paulo, 18.03.2023.