Rodrigo Ricupero, professor de História do Brasil-USP e presidente da Adusp

O brutal assassinato de mais um negro pela racista polícia dos EUA provocou uma espetacular onde de protesto pelo mundo contra o racismo. Nos últimos dias, a indignação atingiu também símbolos do colonialismo com a derrubada da estátua de um traficante de escravos em Bristol e a destruição de duas estátuas de Colombo nos EUA. Nada mais natural, o racismo e a exploração dos povos são os símbolos do colonialismo. A luta contra a opressão e o racismo também se expressam na disputa pela memória. Aqui no Brasil também assistimos em passado recente manifestações semelhantes, colocando em xeque monumentos de exaltação da ordem colonial, que ao contrário de uma visão idílica ainda muito disseminada, foi na realidade um processo de destruição da população indígena e africana.

O Brasil foi construído ou conformado, em primeiro lugar, a partir da destruição das sociedades indígenas existentes no território que foi paulatinamente conquistado. Estas sociedades indígenas não eram “Outro Brasil”, eram, podemos dizer, o “Não Brasil”.

O processo de conquista militar do território foi central na conformação da nascente sociedade colonial, permitindo a transformação dos índios antes livres em escravos e a apropriação das terras transformada em propriedade privada. Esse processo, que em outro trabalho chamei de “acumulação primitiva colonial”, aproveitando-me da famosa expressão de Marx, também não teve nada de idílico e permitiu a montagem de uma sociedade extremamente desigual e escravista.

A conquista da área litorânea entre os atuais Estados de São Paulo e Rio Grande do Norte durante o século XVI foi uma enorme derrota para a população indígena. As doenças trazidas pelos europeus, as guerras empreendidas e a exploração do trabalho indígenas foram responsáveis por uma verdadeira hecatombe, descrita na documentação do período. Simplificando um pouco o processo, os índios escravizados, literalmente moídos nos engenhos de açúcar, foram sendo substituídos pelos escravos africanos a partir do final do século XVI nas áreas mais importantes da colônia em grande medida, mas não apenas, pela dificuldade crescente na obtenção de novos índios escravos.

O processo de exploração violenta da mão de obra indígena prosseguiu em ritmos diferentes pelas variadas áreas que foram sendo conquistas ao longo dos séculos, associando-se também, em maior ou menor medida, com a destruição destas mesmas populações até os dias de hoje.

A consolidação da sociedade colonial no litoral permitiu o surgimento de um setor “especializado”, digamos assim, na entrada pelo interior do território e na captura de índios. Tais figuras que posteriormente ficariam conhecidas como bandeirantes não eram exclusividade da vila de São Paulo, mas foi em torno desta região que tal setor encontrou terreno mais fértil para se desenvolver no século XVI e especialmente no XVII, perdendo importância no século seguinte.

A conquista de novos territórios e a descoberta de metais preciosos, tão destacadas pela historiografia tradicional, não podem ser separadas das expedições de captura de índios, do ataque aos quilombos (o famoso Palmares, por exemplo) e da destruição das missões jesuíticas no Paraguai, para citarmos apenas os “feitos” mais conhecidos.

Os bandeirantes não são simplesmente os “vilões” da época, eles eram apenas a face mais visível da violência fundamental que marcava aquela sociedade e junto com os homens ligados ao tráfico de escravos africano foram peças fundamentais para a formação e para a reprodução da sociedade escravista. Eram, por assim dizer, o outro lado da moeda dos senhores de engenho, dos mineradores, dos grandes mercadores e do próprio Estado português no Brasil, da mesma maneira que hoje a tropa de choque da PM é simbolicamente a outra face dos banqueiros, empreiteiros e do agro-negócio.

Devemos fazer tábula rasa do passado?

As manifestações a favor dos indígenas, que recorrentemente tem tingido de vermelho o monumento às bandeiras de Victor Brecheret, reacendem a também a discussão sobre a luta pela memória. Devemos derrubar todos monumentos que glorificam os opressores de qualquer tempo?

A disputa pela memória é um aspecto da luta ideológica e política mais geral. A direita brasileira sabe bem isso, não à toa destruíram o monumento em homenagens aos operários mortos pelo exército em 1988 na invasão da CSN em Volta Redonda. Nós, por outro lado, ainda apenas estamos começando a luta para retirar os nomes dos ditadores e torturadores das ruas brasileiras.

Quanto aos monumentos, não me parece que a resposta seja única, é preciso avaliar cada caso. Coloquemos abaixo uns, como as estátuas dos ditadores que ainda estiverem em pé, e mudemos o significado de outros.

No caso do monumento às bandeiras de Brecheret, mais interessante do que uma pequena vingança da história com sua destruição, é dar-lhe um novo sentido, preservando no meio da cidade a lembrança que a nossa sociedade foi construída também sobre a exploração brutal da população indígena. Mais ainda, transformar o monumento na lembrança concreta dessa nossa ferida aberta que é a forma criminosa que a sociedade e os todos os governos têm tratado a questão indígena.

Se “meus heróis não viraram estátua”, para utilizar o feliz título do trabalho do historiador Pedro Puntoni, transformemos as estátuas dos nossos “não heróis” em símbolos de luta, assim, enquanto a remanescente população indígena não tiver garantida condições dignas de vida, em especial com a demarcação de suas terras, que os índios e todos que os apoiam nessa causa pintem regularmente o monumento de vermelho, para lembrar nossa ferida aberta que ainda sangra.