Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Com esta nota, a militância do PSTU quer deixar registrada sua homenagem à professora Mari Mendes que faleceu, nesse dia 14, precoce e repentinamente, deixando todos e todas nós comovidos e atordoados. Também queremos, de imediato, estender nossa solidariedade a seus amigos(as), companheiros(as) na organização onde militou nos últimos anos (Resistência/PSOL) e familiares, particularmente seu ex-companheiro, Jeferson Mendes, e a filha deles, Ana Rosa, que praticamente vimos crescer entre reuniões, atividades, encontros e congressos e, sabemos, hoje, deve estar dilacerada, o que também nos dói profundamente.

Sua súbita morte, aos 41 anos, deixou todos e todas perplexos. Contudo, pra mim, não há como escrever sobre isto senão num tom bastante pessoal porque Mari, também, foi uma amiga muitíssimo querida durante os 16 anos em que convivemos no PSTU, durante os quais construímos uma cumplicidade alicerçada no ódio visceral contra todas formas exploração e de opressão, mesclada com um imenso carinho mútuo, alimentado por coisas que realmente importam nas relações humanas: a solidariedade incondicional, o cuidado desinteressado com o(a) outro(a) e o  prazer em compartilhar o que há de bom em um mundo repleto de dissabores.

Uma guerreira gigante, num corpo pequeno e aparentemente “frágil”

Quando a conheci, no final dos anos 1990, ela militava com a juventude periférica de Franco da Rocha e a simpatia foi imediata até mesmo porque me encantei com a potência e força de suas ideias e falas (sempre acompanhadas de gestos expressivos e largos), em contraposição a sua baixa estatura, seu corpo aparentemente frágil e as feições de pré-adolescente.

Em 2000, ela já estava no partido e, “sem pedir licença”, como era típico de sua personalidade sempre aguerrida, foi se construindo como uma militante socialista e revolucionária exemplar. Dedicada aos estudos, abraçou tarefas de Formação; mulher negra e consciente, se integrou às nossas secretarias formadas por estes setores; militante incansável, se dedicou à organização da classe trabalhadora, da juventude, e, acima de tudo, à construção do partido para além da região em que residia, como Mogi das Cruzes, onde também trabalhou nos últimos anos.

No decorrer dos anos, se tornou professora apaixonada e dedicada (como, hoje, atestam os muitos e comoventes depoimentos deixados por seus alunos e alunas em suas redes sociais) e, também, abraçou a militância sindical, na CSP-Conlutas. E, para ela, nada disso faria sentido se, a cada passo, em cada embate, não levantássemos bem alto as bandeiras da luta contra o machismo, o racismo e a LGBTIfobia, temas que sempre estiveram no centro de suas preocupações e atividades, assim como uma profunda consciência sobre a importância do internacionalismo.

E, em tudo isso, demonstrava força e coragem invejáveis que, inclusive, tinham suas raízes na sua teimosa e convicta negativa em se deixar abalar (e, muito menos, ser “diminuída” ou vista como “menos capaz”) pelos muitos e sérios problemas de saúde contra os quais lutou a vida inteira, em função de ser portadora de Artrite Reumatóide Juvenil, uma doença autoimune, caracterizada pelo ataque do próprio corpo às articulações, o que se manifesta, lamentavelmente, quase sempre de forma extremamente dolorosa e debilitante.

Por ter acompanhado parte desta história de perto, hoje, ao saber de sua morte, a primeira imagem que me veio à mente foi de uma atividade da Liga Internacional dos Trabalhadores, em 2007, se não me engano, na qual a presença de Mari chamou a atenção inclusive de um dos oradores, que fez referência ao fato, ao vê-la, numa cadeira de rodas, visivelmente debilitada, mas vibrando, entoando palavras de ordem e fazendo um enorme esforço para erguer seu punho esquerdo para se irmanar com seus companheiros e companheiras.

Liberdade é não ter medo

O ato da LIT está longe de ter sido o único evento ao qual a Mari compareceu contrariando os limites do próprio corpo. E, por mais que se tentasse ponderar, ela nunca foi daquelas que se deixava convencer facilmente. Era marrenta, mesmo. O que, tenho certeza, fez com que, hoje, muitos tenham lembrado da forma absolutamente apaixonada com que travava polêmicas (muitas vezes convertidas em impagáveis expressões faciais que denunciavam sua discordância) e do quanto, pro “bem ou pro mal”, era capaz de comprar um briga.

Num campo mais subjetivo, me lembro que, anos atrás, acho que meio que acabei alimentando esta “marra”, involuntariamente, numa conversa que, lá pelas tantas de uma madrugada, foi parar em duas mulheres que ambos sempre amamos: Frida Kahlo e Nina Simone, com as quais, na conversa, Mari estabeleceu sintonias muito pessoais, mas extremamente relevantes para sua vida.

Frida, para além de sua arte, era exemplo de mulher, militante e, também, alguém cujo corpo debilitado e mergulhado na dor nunca foi limite para amar, viver intensamente e lutar com garra incansável. Nina, para além da música que ouvíamos ou assistíamos por horas, ganhou um novo sentido em função de uma frase mencionada na conversa: “Eu te digo o que a liberdade significa pra mim: não ter medo.”

E se é inquestionável que foi com essa mescla de Frida e Nina que a Mari viveu sua breve vida, uma prova inconteste se deu no momento que, inclusive, nos fizemos mais próximos e ela enfrentou algo que, simultaneamente, se tornou um de seus maiores desafios e sua conquista mais adorada: ser a mãe da Ana Rosa.

Como ela relatou em um sensível e comovente depoimento para a página “Amigos do coração”, destinado para a troca de experiências de pais com filhos portadores de problemas cardíacos, a gravidez não estava em seus planos, pois seria inevitavelmente “de risco”, implicando, inclusive, na necessidade de interromper as medicações que aliviavam suas próprias dores.

Contudo, no final de 2006, Mari se viu grávida. E foi dilacerante acompanhar suas ondas de desespero, em meio a um oceano de dúvidas e preocupações, cercado pela expectativa de ser mãe. Tudo isso tomando forma em crises cada vez mais constantes e agudas de dor. Algo que, no entanto, e como demonstração de que tipo de mulher ela foi, não a impediu de continuar trabalhando, enfrentando, “todos os dias mais de duas horas e meia de viagem de ônibus até o serviço”, para cuidar de “20 crianças a partir 1 ano a 2 anos e meio de idade”, como ela escreveu em seu relato.

O ato da LIT aconteceu quando a situação já havia se agravado bastante e Mari foi progressivamente perdendo os movimentos, dependendo do seu companheiro para as mínimas tarefas. Mas, Mari persistiu. E me lembro de ter pensado ou comentado com alguém como todo aquele sofrimento era também tocante pela relação que se estava sendo estabelecida entre mãe e filha: a Mari lutando pra se manter viva pra poder, literalmente, dar Ana Rosa à luz da vida. Ana Rosa, inconscientemente, servindo de âncora para que Mari se agarrasse à própria vida.

Uma relação que se fez ainda mais intensa quando a Aninha nasceu, em junho de 2007, com sérios problemas cardíacos, o que levou a um novo ciclo de lutas: uma verdadeira via-sacra por um sistema hospitalar negligente, particularmente, com o povo periférico e preto; operações delicadas, meses na UTI e problemas dos mais diversos, só superados com a solidariedade encontrada com gente que compartilhava de problemas semelhantes e, inclusive, do partido, que fez uma campanha de doação de sangue.

Foi neste período que nos aproximamos mais. O apartamento em que eu morava serviu como alojamento improvisado e canto de repouso para um massacrante e longo processo que, felizmente, resultou numa das crianças mais geniais e graciosas que conheço.

Resgatar essa história não tem como objetivo retratar Mari como exemplo da abnegação materna ou coisa parecida. Ela me odiaria por isso. Mas é importante para lembrar o quanto esta mulher lutou pela vida. Algo que, hoje, infelizmente, só aumenta nossa tristeza, ao vê-la partir de forma tão abrupta e inesperada.

Mari, presente! Não esqueceremos de sua rebeldia revolucionária

Mas, se é impossível não nos entristecermos profundamente com sua partida, também não dá para não celebrarmos o fato de termos tido o prazer de ter convivido com ela. Um convívio também marcado por muita alegria, pelas rodas de cantoria, por muita dança nas festas, por noitadas embriagantes e embriagadas. E, também, por historietas impagáveis.

Hoje, uma das que já vi circulando por aí é particularmente exemplar de seu compromisso com a construção de um partido revolucionário. E, ao mesmo tempo, digna da lembrança do seu belo e sempre delicioso sorriso, que, às vezes, explodia em estrondosas gargalhadas.

Em 2005, quando a ainda jovem militante Mari foi eleita como delegada para a instância máxima de deliberação do PSTU, o seu empregador se recusou a dar os dias de folga necessários. A solução encontrada, relatada diante de todos demais, provocou uma inesquecível onda de gargalhadas, aplausos e, também, perplexidade: Mari arrastou seu companheiro pra um cartório, casou-se no Civil, e garantiu a licença por “vias legais”.

Num momento em que, lamentavelmente, temos repetido com freqüência aterradora e deprimente “Companheiro(a), presente!” ao nos referirmos aos que morreram vítimas do genocídio da Covid-19 ou em meio a ela, alguns podem até acreditar que há “formalidade” nisto. Não para nós.

Como revolucionários, temos convicção e compromisso para que aqueles e aquelas que nos deixam se perpetuem e se façam “presentes”, hoje e sempre, até a revolução, através das lutas que travaram e do papel que cumpriram. Particularmente aqueles e aquelas que se banham na cultura negra, assim como Mari, mesmo quando ateus, acreditamos, sim, que o “axé” (a força vital e a essência) dos ancestrais segue conosco, nos fortalecendo.

E é por isso que, neste momento, tenho certeza que corações e mentes ecoam país e mundo afora “Mari, presente! Até o socialismo e sempre!”. Você seguirá conosco, inclusive como um exemplo. O de uma mulher negra que se fez livre, mesmo em uma sociedade marcada por tanta exploração e opressão, exatamente por nunca ter tido medo. Por não ter tido medo pra enfrentar problemas que, até mesmo pela origem, estavam para além de seu controle. Mas, acima de tudo, por ter tido a coragem para enfrentá-los não só para “ter uma vida melhor”, mas pra lutar para que a humanidade um dia possa viver em plenitude.

E acho que não só eu, mas muitos e muitas de nós, gostariam que você soubesse que “cuidaremos” da Ana Rosa. Mesmo que à distância. Mesmo que apenas através do compromisso de seguirmos lutando para construir um mundo onde ela possa crescer segura, sadia, livre e desfrutando da plenitude da vida.