Marina Cintra, de São Paulo (SP)

“Na vocação para a vida está incluído o amor, inútil disfarçar, amamos a vida. E lutamos por ela dentro e fora de nós mesmos. Principalmente fora, que é preciso um peito de ferro para enfrentar essa luta na qual entra não só fervor, mas uma certa dose de cólera, fervor e cólera. Não cortaremos os pulsos, ao contrário, costuraremos com linha dupla todas as feridas abertas. E tem muita ferida porque as pessoas estão bravas demais, até as mulheres, umas santas, lembra?

Costurar as feridas e amar os inimigos que odiar faz mal ao fígado, isso sem falar no perigo da úlcera, lumbago, pé frio. Amar no geral e no particular e quem sabe nos lances desse xadrez-chinês imprevisível. Ousar o risco. Sem chorar, aprendi bem cedo os versos exemplares, não chores que a vida/é luta renhida. Lutar com aquela expressão de criança que vai caçar borboleta, ah, como brilham os olhos de curiosidade. Sei que as borboletas andam raras mas se sairmos de casa certos de que vamos encontrar alguma… O importante é a intensidade do empenho nessa busca e em outras. Falhando, não culpar Deus, oh! por que Ele me abandonou? Nós é que O abandonamos quando ficamos mornos. Quando a vocação para a vida começa a empalidecer e também nós, os delicados, os esvaídos. Aceitar o desafio da arte. Da loucura. Romper com a falsa harmonia, com o falso equilíbrio e assim, depois da morte – ainda intensos – seremos um fantasminha claro de amor.

Lygia Fagundes Telles em “A disciplina do amor”

Acordamos na manhã desse dia 3 de abril com a triste notícia do falecimento da escritora Lygia Fagundes Telles, aos 98 anos. Eu, particularmente, me sensibilizei muito com sua morte e resolvi escrever esse texto para prestar uma pequena homenagem a essa escritora que marcou gerações e gerações com suas histórias.

Comecei a ler Lygia desde novinha, com 13 anos. Lembro que li um dos seus primeiros romances “Ciranda de Pedra”. Lembro da história da personagem Virgínia que, no início, era uma criança e depois a conhecemos jovem. Não sei como tão cedo um livro tão complexo foi parar nas minhas mãos, mas, mesmo sem compreender a fundo muitas coisas na época, lembro que já me encantei com a Lygia.

Uma das coisas mais marcantes desse primeiro contato foi o fato de ter sido a primeira vez que apareceu na minha vida uma personagem feminina LGBT, e aquilo me despertava muita curiosidade. Depois de um tempo, conheci seu conto “Venha ver o pôr do sol”, a professora de português nos apresentou esse conto na escola. Adorei porque ele nos dava medo, era um conto de mistério e adolescente adora sentir um frio na barriga. Esse foi o primeiro conto que conheci da Lygia. Fiquei indignada com (alerta de spoiler) a menina que ficava presa no túmulo e pensava o que eu faria nessa situação, a imaginação ia a mil.

Depois, quando comecei a me interessar pela escritora mesmo, minha mãe, que também é muito fã, me sugeriu a leitura de seus romances por uma ordem: “primeiro, Ciranda de Pedra, depois Verão no Aquário, depois, As Meninas e, depois, as Horas Nuas.” Eu perguntei o porquê dessa ordem e ela disse que os livros “vão ficando cada vez mais malucos e aí, se for direto para as Horas Nuas, não vai entender nada”.

Dito e feito. A minha sorte é que minha mãe tinha todos os livros em casa e me deu todos. Aí fui lendo, chegando em As Horas Nuas fiquei chocada, a história de uma mulher alcoólatra, e Lygia vai a fundo na sua mente. O livro é tão profundo que vamos parar até na consciência do gato. Mas depois fui entender que não é loucura da Lygia, é uma sensibilidade, e isso é o que mais me encanta nos seus livros: a sensibilidade, a intensidade, a descoberta. Pois ela mesmo diz o que é escrever: “Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao amago do amago até atingir a semente resgaurdada lá no fundo como um feto.” Depois disso fui descobrindo seus contos e veio mais encantamento. Lembro quando li “As formigas”, um conto de mistério também, com duas personagens estudantes. Meio mistério, meio terror que dá um friozinho na barriga, eu adorava essa sensação que tinha quando lia seus contos. Depois vieram outros contos que me apaixonei, “Um coração ardente, “Eu era mudo e só”, “A estrela branca”. Todos muito bonitos, alguns muito tristes, mas todos sensíveis. Nessa época, eu estava no Ensino Médio e me encantava muito as personagens, a maioria feminina. Acho que me apaixonei por todas elas. E lembro das personagens LGBTs, isso foi muito marcante pra mim, lia e relia os detalhes, com atenção, era uma época de descobertas pra mim também, e os livros da Lygia me ajudaram muito, nunca vou esquecer.

Quando tinha uns 16 ou 17 anos, ainda no Ensino Médio, fucei, fucei e fucei na internet até fazer a melhor das descobertas: achei o endereço da Lygia! Ela morava na rua da Consolação, pertinho da Paulista. Fiquei muito feliz e escrevi uma carta pra ela, estava próximo de seu aniversário em abril, então lembro que escrevi em uma folha de caderno uma mensagem de feliz aniversário, falando que eu gostava muito dela, dos contos e que eu gostava de escrever também, mas que tinha vergonha. Fui andando até a casa dela, não botei meu endereço nem nada, queria entregar a carta na portaria com minhas próprias mãos, porque, vai que né, extraviasse nos Correios, esse era meu pensamento na época. Cheguei lá e falei ao porteiro: “Oi, eu queria entregar uma carta para Lygia, mas não sei que andar ela mora.” “Ah, a escritora! Ela recebe muitas cartas! Vou entregar sim.” E deixei com ele. Fiquei muito feliz, foi, pra mim, um grande ápice, um grande feito, um grande momento.

Por fim, o último livro que li da Lygia, e acho que meu preferido, foi “A disciplina do amor”, um livro de memórias. Eu lia e sentia que estava a conhecendo cada vez mais, que era quase íntima. Um livro sensível, achei lindo, li mais de uma vez.

Nos últimos tempos, cheguei a dar de presente para meus amigos os livros dela, eu tinha vários em casa e queria dar uma lembrança boa. Para alguns dos meus amigos, dei os livros de contos. Mas lembro de dar alguns conselhos antes da leitura: “Esse livro é lindo, mas uma coisa: não leia antes de dormir, é muito intenso, pesado e você com certeza vai acabar sonhando.” Algumas vezes me peguei nessa situação, fui ler despretensiosamente algum conto antes de dormir e quando vou ver é uma história pesadíssima, daquelas que tocam o coração e aí pensava: “pronto, agora vou sonhar com isso tenho certeza, estou perdida. É muita intensidade junta e vai acabar virando pesadelo.”

Lygia vai fazer uma grande falta no Brasil e no mundo. Ela tinha “um coração ardente” e consegue, com a escrita, nos fazer sonhar, viver e sentir. Em um momento de sua vida, ela disse: “Faço um convite ao jovem leitor: Me leia. Não me deixe morrer”. E é sobre isso. Lygia, nunca vamos deixar de te ler, nunca vamos deixar de nos apaixonar pelas personagens, de chorar com seus contos, de sentir medo ou frio na barriga, de rir, de sentir essa sensibilidade à flor da pele. Você vai permanecer viva porque nos deixou muito, obrigada por tudo!

Uma pequena biografia

Lygia nasceu em São Paulo em 19 de abril de 1923. Estudou no ensino fundamental na escola Caetano de Campos e, em seguida, entrou na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco. Foi uma das primeiras mulheres a estudar nessa faculdade e a escritora retrata isso em seus contos. Depois, cursou também Educação Física na mesma universidade. Começou a manifestar sua paixão pela escrita quando era adolescente, mas depois rejeitou esses escritos porque os achava muito prematuros.

Em 1954 é publicado seu romance “Ciranda de Pedra”. Nesse ano também nasce seu filho Goffredo da Silva Telles Neto. Posteriormente, ainda na década de 50, é lançado o livro “História do Desencontro”, pelo qual recebeu prêmio do Instituto Nacional do Livro. Em 1963 sai “Verão no Aquário”, que lhe rendeu o prêmio Jabuti. Com a entrada da década de 70, Lygia tem sua carreira consagrada, publicou seu livro “Antes do Baile Verde (1970), “As meninas” (1973) “Seminário dos Ratos “(1977). Todos premiados. Na década de 80, saiu seu livro “A disciplina do amor” e “As horas nuas”. Em 1995 publicou “A Noite Escura e Mais eu”. Em 2000 publicou “Invenção e Memória” em 2002 “Durante Aquele estranho chá”, em 2007 “Conspiração de nuvens”. Em 2005 ganhou o prêmio Camões, distinção maior da língua portuguesa pelo conjunto da obra. Lygia fez parte da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Letras. Seus livros foram publicados e traduzidos em vários países: Portugal, França, EUA, Alemanha, Holanda, etc.

A literatura de Lygia também trouxe elementos sociais, como em seu livro “As meninas”, que retrata a vida de três amigas sob o período da ditadura militar. Seus escritos também refletem a condição da mulher, inclusive da mulher escritora que pouquíssimo espaço tinha na época. Lygia também retrata a questão LGBT em seus contos e romances (Ciranda de Pedra, As meninas).

Lygia, em 1976, durante a ditadura, fez parte da comissão de escritores que entregou em Brasília o “Manifesto dos mil”, a declaração contra a censura.  Em uma entrevista, Lygia declarou: “A criação literária (interrogação). O escrito pode ser louco, mas não enlouquece o leitor, ao contrário, pode até desviá-lo da loucura. O escritor pode ser corrompido, mas não corrompe. Pode ser solitário e triste e ainda assim vai alimentar o sonho daquele que está na solidão”.