Foto Marcelo Camargo
Júlio Anselmo

Diante da tentativa de golpe da ultradireita, Bolsonaro comparou as ações do 8 de janeiro de 2023 com as manifestações de 2013 e 2017. Vários articulistas da grande imprensa e setores burgueses fizeram o mesmo. Repetindo, inclusive, um argumento da própria ultradireita que, para tentar minimizar seu golpismo, diz que a esquerda também já fez atos violentos, radicalizados e com vandalismo.

Esta é uma argumentação que serve aos ricos e poderosos, pois tenta generalizar e equiparar métodos radicalizados, possibilitando que sejam atacados também possíveis manifestações dos trabalhadores. Assim, minimizam a questão fundamental do conteúdo da manifestação da ultradireita.

Desconsiderar o caráter de cada manifestação ao analisar o método que ela usa não serve nem para entender a manifestação nem o método. Perde-se, na verdade, o nexo da realidade. É completamente diferente a resistência violenta do oprimido contra a ação violenta do opressor. Desta forma, igualam revolução e contrarrevolução. Seria como se, guardada as devidas proporções, na Segunda Guerra dissessem que Hitler e os Aliados eram a mesma coisa porque ambos usavam de violência.

Os atos radicalizados de 2023, 2013 e 2017 são muito diferentes entre si. Em 2013 e 2017 foram manifestações de estudantes e trabalhadores, com amplo apoio popular, que lutavam por suas reivindicações sociais, políticas e econômicas contra as mazelas sociais que assolam o país por séculos. Estas manifestações, sempre ao longo de séculos, se enfrentaram com as forças de segurança do Estado, já que os representantes da burguesia sempre se utilizam de repressão e violência contra a luta do povo pobre.

O que aconteceu em janeiro de 2023 não tem nada a ver com isso. Foi um pequeno grupo (alguns milhares) com a conivência e preparação das forças de segurança e militares, instrumentalizada, organizada e financiada por grupos de empresários bolsonaristas, que tinham como pauta única criar condições para um golpe militar no país, alterando o resultado das ultimas eleições a fim de instalar uma ditadura (como bem mostra o documento encontrado na casa do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres).

A ação direta dos atos da classe se dá como autodefesa diante da repressão policial, enquanto que, no ato golpista, a polícia escoltou e abriu os prédios para eles, e o Exército os protegeu na porta dos quarteis. Inclusive, Junho de 2013 explodiu após uma violenta repressão contra os estudantes em São Paulo.

Óbvio que o nível de radicalidade do ato golpista, ou seja, até onde estavam dispostos a ir para implementar sua pauta, merece ser considerado e condenado em qualquer análise minimamente séria. O que está errado é, a partir daí, igualar com os atos da classe trabalhadora ou generalizar no sentido de dar margem para que a repressão contra os bolsonaristas atual vire repressão contra as manifestações dos trabalhadores no futuro.

Estudantes e trabalhadores enfrentando a polícia como podem numa manifestação contra o aumento das tarifas não tem nada a ver com meia dúzia de golpistas em conluio com a polícia tentando insuflar um golpe militar. A primeira ação é legítima, a segunda é completamente ilegítima. A primeira é progressiva, ajuda os trabalhadores e o povo a ter mais direitos e conquistas, a segunda é reacionária e ajuda os ricos, o Estado e os poderosos a retirar direitos do povo.

Alguém poderia objetar: mas quem define qual ação tem legitimidade ou não? Alguns responderiam que é o povo. O problema é que o povo reúne setores muitos diferentes que são dilacerados por interesses antagônicos, por exemplo, trabalhadores e bilionários em teoria são todos parte do “povo” e tem interesses antagônicos e posições diferentes na sociedade.

A burguesia, os bilionários, os grandes banqueiros e as grandes empresas são exploradores e opressores, contam com um poder econômico, social e político imenso. Controlam tudo, inclusive a política. Contam com o Estado burguês e com seu braço armado. Enquanto os trabalhadores são permanentemente explorados e oprimidos, com bem poucos direitos que são constantemente ameaçados, sofrem péssimas condições de vida e tem baixíssimos poder político de influenciar qualquer coisa.

Por isso, uma manifestação violenta, uma revolta, uma revolução dos trabalhadores em sua autodefesa para mudar a sua situação e lutar para mudar a base da sociedade, tem legitimidade. E é por isso que uma ação radicalizada de direita, reacionária, que defende os interesses da burguesia, carece de qualquer sentido. A sociedade já é edificada sobre seus interesses, quando setores burgueses simpatizam com estas ações radicalizadas, quando alguns propõem golpe militar e ditadura, é em nome de arrancar ainda mais o coro das costas dos trabalhadores. Querem mais repressão e acabar inclusive com as poucas liberdades democráticas e direitos sociais que temos para aumentar a exploração.

Então, é legítima a mobilização e autodefesa dos trabalhadores, do povo pobre e do pequeno proprietário unidos contra os monopólios capitalistas e esse seu Estado. É legítima a revolta, a rebelião e a luta por direitos como junho de 2013 e a greve geral de 2017 contra a reforma da Previdência, como a grande marcha a Brasília contra as reformas de Temer.  É legítima, inclusive, uma revolução contra um sistema e o Estado capitalista que explora e oprime. Enquanto que não é legítima a contrarrevolução, que é o que se expressou nas manifestações reacionárias e golpistas dos bolsonaristas de janeiro de 2023.

Bolsonaro quer que o Estado burguês tome a forma de uma ditadura militar, onde tudo seria controlado pelos militares. Inclusive, Legislativo e Judiciário, se existissem seriam de fachada, como mostra a minuta do Anderson Torres. E como na ditadura de 64 a 85, não teria mais liberdades democráticas: direito de greve, de organização, de manifestação, de imprensa, de expressão, etc. Só seria permitido expressar o que os militares deixassem – teria censura e provavelmente tortura. Então, o que aconteceu em Brasília é gravíssimo, um ataque violentíssimo contra as liberdades democráticas e, se não tivesse fracassado, os que mais perderiam seriam os trabalhadores, porque a ditadura visa aumentar ainda mais a exploração e a opressão.

Agora, outra coisa é que Lula, diante disso, disse defender: “democracia para sempre”. Mas qual democracia? Esta democracia atual que temos hoje é burguesa, é uma democracia dos ricos, é a forma democrática do Estado burguês, que é corrupta, como a ditadura, e que, embora, garanta as liberdades democráticas, não garante igualdade e justiça, porque é a ordem de um Estado que tem por finalidade a manutenção deste sistema capitalista de exploração. Ou seja, na prática uma ditadura da classe capitalista sobre os trabalhadores.

Nesta democracia burguesa, que defendemos ante um golpe ou tentativa de golpe, e que precisamos derrubar uma ditadura militar para conquistar, embora se garantam algumas poucas liberdades democráticas para os debaixo, é uma outra forma do mesmo Estado da burguesia. Também a democracia burguesa defende e impõe um sistema de desigualdade, que garante a propriedade privada dos meios de produção (grandes fábricas, bancos, grandes empresas e latifúndios do agronegócio; grande comércio nacional), seus lucros e a acumulação de capital. Beneficia menos de 1% da sociedade com outros métodos, através do engano, mas também sempre combinado com repressão e violência, vide a violência policial nas favelas, a repressão as manifestações dos trabalhadores e restrição a várias liberdades para os debaixo.

Não é à toa que a democracia burguesa está em crise; ela gerencia e defende o capitalismo em crise. A ditadura que defende Bolsonaro e a tentativa de golpe é, por sua vez, uma tentativa de jogar com ainda maior profundidade e violência os custos dessa crise capitalista nas costas dos trabalhadores, e inclusive do pequeno proprietário.

Isso mostra como é um engano confiar seja em setores burgueses, seja nestas instituições da democracia burguesa para enfrentar até o final a ultradireita como faz o PT. Não está em debate o retrocesso que significaria um golpe militar e como o bolsonarismo tem que ser extirpado do Brasil, assim como qualquer proposta de ditadura militar reacionária.

Mas, ainda que devamos fazer unidade de ação contra as tentativas golpistas e contra uma ditadura com todos os setores dispostos a combatê-los, não podemos renunciar à luta por revolucionar essa sociedade injusta e desigual. É preciso também questionar o caráter desta democracia dos ricos e o sistema capitalista que é o terreno fértil de onde brota o bolsonarismo.

Primeiro, para combater aqueles que querem implementar uma ditadura no país é preciso exigir mais liberdades democráticas, mais conquistas para os trabalhadores, mais avanços inclusive em relação ao regime político. Seria preciso acabar com o artigo 142, acabar com a GLO, desmilitarizar a Polícia Militar e mudar completamente as Forças Armadas, a começar pelo seu currículo.

Segundo, o combate à tentativa golpista ditatorial da ultradireita não pode ser confundida com a defesa em geral do regime democrático burguês como se este fosse pacífico e resolvesse os problemas dos trabalhadores.

O que explica o crescimento dos questionamentos ao regime democrático burguês é o seu próprio desgaste. Ao não resolver os graves problema econômicos e sociais do país; ao manter e aprofundar a desigualdade social, a decadência e processo de recolonização do país, e a pobreza, criou uma situação que dão base econômicas, sociais e políticas para essa ultradireita e sua saída reacionária.

Só a classe trabalhadora mobilizada e organizada, com autodefesa, é garantia de um combate até o final contra o bolsonarismo. Por outro lado, para acabar com as bases sociais e políticas que geram essa extrema-direita, é também preciso enfrentar o sistema capitalista.

Mas o PT fez governos capitalistas e continua defendendo governar o capitalismo brasileiro em aliança com a burguesia, nos limites do sistema e da defesa da democracia dos ricos. E, ao invés de debater às claras isso, o PT e seus apoiadores alimentam uma postura maniqueísta taxando como “ultradireita” ou “fascistas” todos que lutam contra o bolsonarismo, mas que também criticam a atual democracia burguesa ou o governo Lula-Alckmin, seu programa, suas alianças e sua estratégia. Aliás, basta de opor ou realizar qualquer crítica ao governo, para que numa postura bem stalinista, utilizada por dirigentes do PT e inclusive também por setores do PSOL, chamem socialistas e até democratas de “fazerem o jogo da direita”.

Isso fica demonstrado no debate entre Glenn Greenwald e Chico Pinheiro. Apesar das discordâncias que temos com o Glenn, não é possível que todos os que critiquem a visão do PT sejam taxados de ajudante da ultradireita quando é o próprio PT que busca aliança com a direita e consenso com os militares golpistas, como prova a escolha de Múcio para ministro.

Além de estarmos na linha de frente contra os bolsonaristas e seu projeto de ditadura, é preciso não nos furtar de fortalecer uma saída dos trabalhadores para o país, a luta pelo poder dos trabalhadores e uma verdadeira democracia, portanto contra a ordem capitalista e a democracia dos ricos. Ou seja, construir e fortalecer uma saída de um poder dos trabalhadores com uma democracia dos trabalhadores apoiada em suas organizações e organismos. Temos que lutar contra os retrocessos no regime, mas também contra o poder dos capitalistas independentemente do regime que defendem.

Isto não se faz confiando no governo Lula-Alckmin, de alianças com o grande empresariado e banqueiros em defesa da democracia dos ricos e desse Estado burguês. Mas sim confiando nas suas próprias forças, mantendo a independência da classe trabalhadora e de suas organizações em relação ao governo; que una os trabalhadores em defesa de suas reivindicações; que, inclusive, seja capaz de organizar sua autodefesa e levar a luta contra a ultradireita até o fim. É necessário construir uma oposição de esquerda, que defenda um projeto da classe trabalhadora para o país, contra a desigualdade social e pela soberania do país. Um projeto socialista. Isso é o que pode pavimentar o caminho para superarmos de vez inclusive os riscos de golpe mais pra frente.