PSTU Rio de Janeiro
Aconteceu no dia 6 de maio na comunidade do Jacarezinho o maior massacre já cometido pela polícia do Rio de Janeiro em uma só comunidade e de uma só vez.
Não que a polícia do estado não tenha se especializado em massacres, sempre contra pobres, normalmente contra negros, nas comunidades carentes. Em 1994, a Polícia Civil matou 13 pessoas no complexo do Alemão, com ajuda ilegal de PMs. Em 1995, a mesma Polícia Civil matou de novo no Complexo do Alemão outras 13 pessoas. Em 2007, a Polícia Militar, a Polícia Civil e a Força Nacional de Segurança mataram mais 19 pessoas, novamente no Complexo do Alemão. Em 2019, a PM matou 15 pessoas no Fallet. Em 2020, Polícia Civil e militar voltaram a matar 13 pessoas no Complexo do Alemão.
Após a operação da Polícia Civil neste dia 6 e até o fechamento deste texto, havia a confirmação de 28 mortos, mas seguem relatos de desaparecidos. Ou seja, os números da chacina podem ser ainda maiores. Morreu também na operação o policial André Frias.
Uma coincidência nada estranha
Bolsonaro havia visitado o atual governador do Rio, Cláudio Castro, dois dias antes do massacre. Eles podem ou não ter falado sobre segurança pública e, inclusive, sobre esta operação especificamente. Há muitos indícios de que operações como esta, entre outras coisas, favorecem as milícias. Também há evidências de sobra sobre o envolvimento da família Bolsonaro com esse tipo de organização. Mas, tendo ou não sido assunto entre eles, os fatos indicam uma profunda inspiração bolsonarista nos acontecimentos. Em primeiro lugar, porque Cláudio Castro é um dos governadores mais assumidamente bolsonaristas hoje no país, a ponto de a imprensa comentar sobre seu exagero em manifestar sua vinculação ao presidente. Em seguida, porque este sentimento de liberdade total para agir impunemente tem sido uma marca registrada do governo Bolsonaro. Liberar as forças mais horrendas que nunca foram devidamente punidas, e que habitam os porões dos órgãos repressivos desde os tempos da ditadura militar, e organizar forças milicianas paramilitares, de extrema-direita para suas ameaças golpistas.
A sensação de impunidade e a sintonia com o discurso e atos bolsonaristas entre os que dirigiram as operações no Jacarezinho é tão forte que, no final da tarde do dia 6, um grupo de policias civis deram uma entrevista na qual atacam ao que chamam de “ativismo judicial”, os defensores dos Direitos Humanos em geral, e o STF. Afirmaram os delegados que tinham certeza que todos os mortos eram criminosos, apesar de que não sabiam a identidade de nenhum.
Os “culpados de sempre”
A comunidade de Jacarezinho é uma das mais pobres do Rio de Janeiro. Para que se tenha uma ideia, 15% da população vivem abaixo da linha da miséria, e a renda per capita é de R$177,98, a 4ª mais baixa do município.
Dos 28 mortos pela Polícia Civil, apenas uma parte foi identificada. Este dado é impressionante e fala por si mesmo. A polícia afirma, em coletiva de imprensa, que matou 28 “bandidos” e apresentou-se como defensora da “sociedade de bem”. O governador do estado afirmou que a operação foi “pautada e orientada por um longo e detalhado trabalho de inteligência e investigação”. Os filhos de Bolsonaro também se pronunciaram sobre o fato, lamentando apenas a morte do policial, ignorando as outras vidas que foram perdidas.
No entanto, 24 horas após o massacre, não se sabe quem foram os mortos, se eles estavam ou não relacionados à operação inicial, se tinham passagens pela polícia, não se sabe sequer o nome das vítimas deste hecatombe.
Uma operação que contava com helicópteros, 4 blindados, 290 policiais, e supostos 10 meses de planejamento, inteligência e investigação. Entrou em uma das regiões mais pobres da cidade, atirando e expondo uma população de pobres, de muito pobres, majoritariamente negros, trabalhadores, pais de família e acertaram pelo menos 29 pessoas que eles não sabem quem são.
Uma ação digna do Exército de Israel contra os palestinos, do exército branco sul-africano nos tempos do apartheid assumido contra a população negra daquele país, dos exércitos norte-americanos no Oriente Médio, uma ação típica de um exército de ocupação contra uma população civil que ele vê com hostilidade e medo. Isso fica evidente na opinião emitida por Mourão, o vice-presidente da República, quando disse: “isso é a mesma coisa que se a gente tivesse combatendo no país inimigo. Quase a mesma coisa. A partir daí houve esse combate de encontro e tenho quase que absoluta certeza, não tenho todos os dados disso, que os mortos eram os marginais que estavam lá, armados, enfrentando a força da ordem”.
A verdade
A operação montada pela Polícia Civil para prender 21 suspeitos de envolvimento com o tráfico de drogas, aliciamento de menores para o crime e, inclusive, o sequestro de trens da Supervia foi, além de um fracasso grotesco do ponto de vista da inteligência e de seus supostos objetivos iniciais, um ato ilegal, pois notadamente ia contra a decisão do STF que proíbe as operações policiais nas comunidades enquanto durar a pandemia.
Segundo a própria polícia, o policial morto em ação foi vítima de um tiro ao descer do carro blindado em que estava para retirar uma das barreiras colocadas pelos traficantes. O tiro teria partido, sempre de acordo com a polícia, de uma casamata de concreto armado. Se isso é verdade, o que se pode dizer é que 10 meses de inteligência e investigação sequer localizaram os locais onde os traficantes haviam se fortificado para deter a polícia. Só essa informação já basta para desmontar a falácia da operação bem planejada.
As polícias civil e militar tem sido no correr dos anos a principal responsável por mortes violentas no estado do Rio de Janeiro. Somente no primeiro trimestre deste ano já mataram mais de 453 pessoas. Isso em pleno vigor de uma decisão do STF que proíbe, regra geral, operações nas favelas e comunidades. E durante esse período nem o tráfico acabou, bem como as milícias (máfias, verdadeiras organizações criminosas, que ocupam os lugares e os negócios do tráfico) avançaram qualitativamente.
A situação é tão escandalosa que o STF vai pautar no dia 21 o julgamento de uma ação que obriga o governador do Rio a apresentar um plano de redução da letalidade policial no estado. Nós sabemos, pela experiência de sempre, que dificilmente este plano será feito, e se feito, nunca será executado. Não virá, infelizmente, de nenhuma das autoridades a resolução dos problemas existentes na segurança pública. Parafraseando Darcy Ribeiro, o que temos na segurança pública não é uma crise, mas um projeto.
E este projeto, em primeiro lugar, atinge aos setores mais pobres e vulneráveis da população. Em 2019, 80% dos mortos pela polícia do Rio eram negros, em 2017 esse número foi de 90%. Ou seja, há um nítido viés racista na violência cotidiana praticada pelos agentes do Estado. E esta distinção não é somente racial, mas também social e geográfica, nos dados de 2017, dos 1227 mortos pela PM metade tinha até 29 anos, 22% ocorreram em morros e favelas, a maior parte dos casos foram nas regiões norte e oeste do Rio. Apenas 14 na zona sul, pouco mais de 1% dos casos. A maioria dos que são encarcerados são inocentes.
Não existe relação entre as operações policiais e a diminuição da violência, pelo contrário. Nos meses que se seguiram à liminar de Fachin determina a suspensão de operações policiais durante a pandemia, exceto em casos excepcionais, observou-se a queda concomitante de todos os índices de violência, particularmente violência letal, no Rio de Janeiro. Para além disso, também houve uma diminuição do número de roubos de rua.
Outro aspecto da falência da atual política de segurança pública é o efeito que ela tem entre os agentes de segurança. Apesar da ideia falsamente difundida de que os policias morrem de morte violenta nos confrontos com o “banditismo”, a verdade é que o maior causador de mortes violentas entre os policiais é o suicídio. Ou seja, a ideia do herói que combate o crime e a violência, e acaba morto em uma ação, é uma falácia. A verdade é que temos um sistema de segurança pública que mata indiscriminadamente os setores mais vulneráveis da população, por um lado, e que causa diversos graus de sofrimento em seus próprios agentes, até levá-los ao suicídio. Um sistema completamente falido e que faz mal a todos.
Além disso, dados que comparam a localização das operações policiais nos últimos anos demonstram uma clara associação entre o maior número de operações policiais e territórios em disputa entre facções de narcotraficantes, em comparação com os territórios dominados por milícia. Mais do que uma vista grossa, os dados expressam que a polícia tem cumprido um papel de abrir territórios, através de suas operações, para a expansão das milícias na cidade.
Como atesta o estudo “A expansão das milícias no Rio de Janeiro: Uso da força estatal, mercado imobiliário e grupos armados” do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF) e do Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ): “O cruzamento realizado entre o Mapa dos Grupos Armados e a base de operações policiais permite observar que nas RAs onde ocorreram menos operações no período – como Guaratiba, Barra da Tijuca e Campo Grande –, os grupos armados predominantes são milicianos. Já nas RAs onde houve o maior número de operações – Bangu, Méier e Pavuna – há porções territoriais em disputa e importante presença de “comandos” do tráfico de drogas.”
Existe uma desproporção abissal entre a quantidade de operações policiais realizadas em territórios dominados pela milícia e por algumas facções do narcotráfico: “Apesar de já ocuparem parte considerável da cidade, as áreas de milícia foram palco de apenas 88 trocas de tiro com as forças de segurança em mais de três anos —2,97% do total. (…) Por outro lado, 2.333 tiroteios se deram em favelas dominadas pelas três principais facções de traficantes do estado —o equivalente a 78,8% do total de tiroteios envolvendo agentes de segurança em mais de três anos”.
Os milicianos com os quais a família Bolsonaro tem profundas relações, não são gente de bem, são bandidos, mafiosos, que ocupam cada dia mais e de forma mais violenta áreas territoriais do narcotráfico, bem como o Estado. Jairinho, o vereador bolsonarista, preso por matar o garoto Henry, é uma mostra da “gente de bem” miliciana, que esse governo protege, se relaciona e defende.
Neste sentido, o governador Cláudio Castro, vice desconhecido de um juiz condenado por corrupção e bolsonarista de carteirinha, é o principal responsável por mais essa terrível chacina e deve ser responsabilizado criminalmente.
Chega de chacinas! É preciso acabar com esta política de segurança pública
A atual cúpula da PM, da Polícia Civil e do governo do estado são criminosos que precisam ser investigados, condenados e presos. Igualmente, aqueles envolvidos em crimes contra a população dever ter o mesmo tratamento.
Mas, mais do que apontar os erros, é necessário ter um projeto de segurança pública para o estado e o país.
Nós opinamos que é necessário acabar com a falácia da guerra às drogas, e no geral com a concepção de guerra ao crime pois, além de não atingir esse negócio bilionário (o mantém e amplia, na verdade), é usado como justificativa para violência, assassinatos, encarceramento, em uma verdadeira guerra aos pobres e negros.
É preciso legalizar o consumo de todas as drogas, e ao mesmo tempo controlar sua produção e venda. A questão das drogas deve ser tratada como uma questão de saúde pública, com o tratamento dos casos de consumo abusivo de substâncias hoje consideradas ilegais.
É preciso encarar os grandes negócios ilegais, como tais, como negócios ilegais que tem ramificações com a economia legal, o mero controle dos bancos permitiria saber de onde vem e para onde vão as grandes somas de dinheiro oriundos do tráfico de drogas e armas. Bastaria controlar os bancos para acabar com os negócios ilegais que se quer combater.
A violência oriunda do desespero social, o furto, o roubo de pequena monta, mesmo a participação em negócios ilegais como o jogo ou o pequeno tráfico, podem ser drasticamente reduzidos com medidas sociais que garantam emprego, renda, moradia, saneamento, educação e saúde.
Por uma segurança pública sob controle dos trabalhadores e das comunidades
As atuais polícias militar e civil são controladas por oficiais e delegados com todo tipo de ligação políticas e criminais. Esses oficiais e delegados são irreformáveis. Estas polícias nestes moldes precisam acabar.
Necessitamos de uma polícia única, controlada pelas comunidades, sem patentes, com seus oficiais eleitos democraticamente, com as policias tendo direitos a sindicalização e a plena participação na política nacional.