Israel Luz, de São Paulo (SP)

Quase duas semanas após a onda de chacinas e violência policial que provocou, no mínimo, 45 mortes nos estados da Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro (leia mais no artigo Chacinas da polícia deixam rastro de sangue pobre e negro), Lula e um de seus principais ministros, Rui Costa, Ministro-Chefe da Casa Civil, e, não por acaso, ex-governador da Bahia entre 2015 e 2023, deram declarações desastrosas sobre a onda de violência policial das últimas semanas.

Lula só se pronunciou sobre o assunto no dia 10 de agosto, quando se referiu ao assassinato do menino Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, na Cidade de Deus.

“Esse estado não é só Copacabana, não é só Ipanema. É um povo pobre, negro, que precisa ser tratado com respeito, para que nunca aconteça o que aconteceu com um menino de 16 anos [13 anos] que foi assassinado por um policial despreparado ou irresponsável”, disse o petista, em evento no Rio, junto com o governador bolsonarista Cláudio Castro (PL).

Lula afirmou, ainda, que não queria jogar “a culpa em nenhum governador”; que não é possível culpar a polícia, como instituição, por episódios como esse; e, também, que a polícia “tem que saber diferenciar quem é bandido e quem é pobre que anda na rua”.

O que se pode concluir diante de afirmações como estas? Lula está tentando nos fazer crer que as barbaridades cometidas por agentes públicos são de responsabilidade individual? É o que tudo indica. Mas essa tese não se sustenta.

A polícia é muitíssimo “bem-preparada” para fazer o que faz

Certamente, podem ser apontados inúmeros problemas no treinamento dos agentes de segurança. Mas, a política de guerra contra a população pobre e negra não tem nada a ver com a falta de preparo. Pelo contrário. O problema é que as forças de repressão, há muito, são preparadas para travar uma guerra contra a população periférica e pobre, em geral, e a negra, em particular.

Para exemplificar, usemos um símbolo da Polícia Militar de São Paulo, para explicar o que estamos dizendo. O brasão de armas da PMSP é composto pelas figuras de um bandeirante e um soldado e 18 estrelas, que representam os “feitos” da corporação. O que significam estes símbolos? Do que a PM paulista tem orgulho?

Primeiro, por mais que a História Oficial tende nos convencer do contrário, os bandeirantes nada mais foram do que escravizadores de indígenas, “caçadores” de negros e negras e impiedosos mercenários que deixaram um rastro de sangue e dor por onde passavam.

Gente cujos métodos violentos foram reconhecidos por seus próprios contemporâneos e contratantes, como escreveu o bispo Francisco de Lima, comentando a contratação de um dos mais famosos deles, Domingo Jorge Velho, para o ataque final ao Quilombo dos Palmares: “trata-se de um dos maiores selvagens com quem tenho topado”.

Já em relação às tais estrelas, a lista equivale à uma sucessão de ataques e crimes contra o povo brasileiro e suas lutas, como foi levantado pelo portal Outras Palavras, em um artigo publicado em 09/07/2020.

Dentre as 18 datas “estreladas”, destacam-se a repressão feita pela instituição paulista à Guerra dos Farrapos (RS, 1838); à revolta indígena no Campo das Palmas (PR, em 1839); à Revolução Federalista (1893); ao Arraial de Canudos e o povo de Antônio Conselheiro (1897); à Revolta da Chibata, liderada por João Cândido, no Rio, em 1910; à Greve Geral (SP, 1917); aos 18 do Forte de Copacabana (1922); à Coluna Prestes (Ceará, 1926) e, como não poderia deixar de ser, o apoio decisivo ao Golpe Militar de 1964.

Ostentar no brasão o orgulho desse passado, indica que instituições como esta não mata negros, indígenas e pobres massivamente por pura incompetência, no sentido dado pelo presidente. É indício, mais do que simbólico, que a Segurança Pública foi e continua sendo concebida como defesa do Estado brasileiro. Estado entendido como um “quartel general” ou um “um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”, como escreveram Marx e Engels, no Manifesto Comunista.

Essa visão, que fica ainda mais evidente nos períodos ditatoriais, foi consolidada na Constituição de 1988, como vem sendo apontado por especialistas, como o advogado e pesquisador de Políticas de Segurança Pública Almir Fellite, autor de “História da polícia no Brasil: estado de exceção permanente?” (Editora Autonomia Literária, 2023, p. 227).

Nesse cenário, mesmo as tentativas mais honestas de mudança dessa lógica encontram fortes obstáculos para se impor. O resultado é esse que vemos condensado nas chacinas em São Paulo, Rio e Bahia.

O Estado tem donos – e, você já sabe, não somos eu ou você. É em defesa dessa minoria que a coisa toda é pensada. Em um país tão desigual, a ação policial é parte do controle de grandes contingentes da classe trabalhadora.

Não é acidental, portanto, que seja violenta com os moradores das periferias e suave com os moradores ricos das “áreas nobres” e condomínios, como já confessou publicamente um antigo comandante das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota).

“São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins [região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado (…). Se eu coloco um [policial] da periferia para lidar, falar (…) com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui no Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa do Jardins que está ali, andando”, declarou o então tenente-coronel Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo, em entrevista ao portal UOL, em 24/08/2017, dias depois de assumir o comando da Rota.

O negacionismo de Rui Costa

Dias após as declarações do presidente, no dia 14, foi a vez de uma das peças-chave do governo Lula, o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, falar sobre o assunto.

“Eu não reconheço nenhuma comparação de ONGs que fazem publicações sobre questões de segurança”, disse Costa, em entrevista à Globo News, referindo-se ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que publica o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que, em sua 17ª edição, apontou que, em 2022, policiais militares e civis da Bahia mataram 1.464 pessoas, dentro e fora de serviço. O estado tomou a dianteira do Rio de Janeiro neste triste ranking, mas tem números que vêm piorando cada vez mais desde 2015.

Em reportagem publicada no mesmo dia no portal UOL, com o significativo título “Polícia da Bahia matou 1.464 pessoas em um ano, mais que a polícia dos EUA”, a pesquisadora Yanilda Gonzales destacou que, em termos absolutos, os números são maiores que os dos EUA, país onde, no ano passado, foram registradas 1.201 vítimas. Em termos proporcionais, esse cenário é ainda pior, já que estamos falando de populações de tamanhos bastantes distintos: contam-se 15 milhões de baianos, enquanto, no país imperialista, a população é de 330 milhões.

O petista preferiu responder a tudo isto negando a veracidade dos dados. Dados que, diga-se de passagem, vêm sendo historicamente utilizados por todos os movimentos sociais, negros e de defesa dos direitos humanos. Algo que não chegar a causar espanto. Afinal, este é o mesmo Rui Costa que, em 2015, comparou a ação dos PMs responsáveis pela Chacina no Cabula, bairro pobre de Salvador, a de “um artilheiro em frente ao gol”. Na ocasião 12 jovens negros foram mortos. Os policiais atiraram aleatoriamente em mais 6 pessoas.

É preciso dar nome aos genocidas

A PM do governo Jerônimo Rodrigues (PT) matou 30 pessoas entre 28 de julho e 4 de agosto. A polícia de Tarcísio de Freitas (Republicanos) matou 18, até agora, na Operação Escudo. A PM de Claudio Castro fez 10 vítimas fatais no dia 02 de agosto, na Penha. As mortes de Thiago Flausino e da pequena Eloah Passos, de 5 anos, são resultados de ações posteriores, em outras regiões do Grande Rio (leia também Eloah e Wendel: duas vítimas mais recentes de uma polícia responsável por metade das crianças atingidas por arma de fogo no RJ).

Como escrevemos recentemente (Tarcísio conseguiu: já tem uma chacina para chamar de sua), o genocídio racista é uma política do Estado brasileiro, com raízes fincadas na história de violência de classe e raça, contra os de baixo. Mas, as instituições são comandadas por políticos de carne e osso.

Tarcísio segue defendendo veementemente a ação da sua polícia. As vidas inocentes perdidas não passam para ele de “efeito colateral”. Jerônimo pediu: “respeitem a nossa Polícia Militar” após reportagem sobre o episódio na Bahia.

Por isso, não se pode titubear. Jerônimo, Tarcísio e Castro têm sangue nas mãos. E as declarações de Lula e Rui Costa são desastrosas. Ambos agem como cúmplices, ao repetir mais do mesmo, de um lado; e negar a realidade, de outro.

E em, meio a tudo isto, resta apenas uma certeza: venham de onde venham, as balas do Estado acertam sempre os mesmos. São as famílias pretas, indígenas, trabalhadoras e periféricas que choram. Ter independência política dos governos neste caso é, com o perdão da frase feita, uma questão de vida ou morte.

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