Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Quem quer que tenha sido criança ou jovem nos anos 1960 e 1970 teve parte importante de sua vida embalada pelas canções de Cassiano. Principalmente, sendo negro ou negra e vivendo nas periferias das grandes cidades não havia como não se deixar levar pelas músicas daquele que é considerado o “pai do Brazilian Soul”, a nossa versão da “soul music” norte-americana, o estilo  que, saindo da “alma” sofrida, mas sempre guerreira, do povo negro, surgiu, não por acaso, no mesmo momento em que as lutas pelos direitos civis começavam a sacudir os Estados Unidos, nos anos 1950.

Cassiano foi um dos primeiros a dar um verniz “brazuca” para o “soul” que, também aqui, mexeu não só com os corpos e corações da juventude negra, como foi trilha sonora obrigatória para a geração que, em meados e final dos anos 1970, estava reorganizando o movimento negro, na esteira da luta contra a ditadura.

Sua importância para nossa “música negra” (e toda MPB) pode ser sentida até os dias atuais, já que ele se encontra na raiz da obra de muita gente que se inspirou diretamente nele ou gravou suas canções, como Tim Maia, Alcione, Jorge Benjor, Gilberto Gil, Sandra de Sá, Luis Melodia e Djavan. Ou até mesmo em gêneros mais contemporâneos, com o RAP (em 1998, por exemplo, ele gravou com os “Racionais MC’s”).

Por isso mesmo, não são poucos os que, hoje, lamentam profundamente pela morte do cantor e compositor, que nos deixou, aos 77 anos, juntando-se às mais de 410 mil pessoas que tiveram suas vidas ceifadas não exatamente pelo coronavírus; mas, em grande medida, pela conduta propositalmente genocida de Bolsonaro e seus cúmplices nos governos estaduais e municipais.

Da Paraíba para os bailes black

Como tantos outros nordestinos, Genival Cassiano deixou sua terra natal, Campina Grande, na Paraíba, migrando para o Rio, aos 17 anos, em 1960. Na capital carioca, o cantor trabalhou como pedreiro e em diversos “bicos”, utilizando seu tempo livre para aprender a tocar bandolim e violão.

Fã da Bossa Nova, formou um trio “Os Diagonais” (juntamente com seu irmão, Camarão, o amigo Amaro e, eventualmente, Hyldon), que acompanhava Tim Maia, desde o início de sua carreira. E foi exatamente no vozeirão desta outra figuraça fundamental de nossa “black music” que suas composições começaram a fazer sucesso, com “Primavera” e “Eu amo você”, ambas compostas com Silvio Rochael e lançadas no primeiro disco de Tim, em 1970, que havia acabado de voltar de um período nos EUA fortemente influenciado pela “black music” do país.

No ano seguinte, o trio gravou “Cada um na sua” (onde estão registradas músicas como “Não dá pra entender”) e Cassiano lançou carreira solo, como o LP “Imagem e Som”. Depois disto, vieram álbuns considerados, até hoje, “clássicos” da música negra brasileira, como “Apresentamos nosso Cassiano” (1973) – com composições como “Cedo ou Tarde” (em parceria com Suzana), “Me chame atenção” (composta com Renato Britto) e “Castiçal” – e “Cuban soul: 18 quilates” (1976).

Mas, ele só chegou ao topo das “paradas”, como se dizia na época, quando suas canções viraram trilhas de novelas “globais”: “A lua e eu” (em “O grito”, 1975/76) e “Coleção” (em “Locomotivas”, 1977). Anos-chave, também, na história do movimento negro, exatamente por marcarem as iniciativas que, clandestinamente, estavam reorganizando a luta anti-racista, veementemente proibida pelo regime militar.

Pode parecer estranho para os dias de hoje, mas muitas das conversas e reuniões que impulsionaram este processo se deram nos cantos iluminados pela luzes estroboscópicas e as cores de neon nos salões que organizavam os chamados “bailes black”. E, neles, Cassiano era presença obrigatória.

Black Rio: embalando corpos, corações e mentes negras

O lançamento do LP de Tim Maia, em 1970, é considerado quase como uma certidão de nascimento de um movimento que ficou conhecido, inicialmente, como “Black Rio” e, nos anos seguintes, se generalizou como “música negra brasileira”, ou, simplesmente, “black music”.

O estilo nasceu da criatividade de jovens negros que haviam crescido ouvindo as produções da “Motown”, a gravadora da nove em cada 10 dos grandes nomes da música negra norte-americana – “blues”, “funk”, “jazz”, “rhythm and blues” (or “R&B”) ou “soul”.

Influências que músicos como Cassiano, Cláudio Zolli, Tim Maia, Hyldon, Tony Tornado, Carlos Dafé, Gerson King Combo e a Banda Black Rio incorporaram às suas (e nossas) raízes: de Jackson do Pandeiro (amigo do pai de Cassiano) a Cartola; de Lupicínio Rodrigues a Elizeth Cardoso.

A particularidade de Cassiano foi ter se inspirado no “soul”, surgido nos anos 1950 através da “desacralização” do “gospel” cantado pelos negros nas igrejas segregadas. Ou seja, músicas que retiraram o conteúdo religioso, mas a mantiveram a melodia, o ritmo e a forma de cantar do “gospel”, abordando, então, temas relacionados à vida terrena, particularmente o amor e as coisas do cotidiano.

Na cultura negra norte-americana, o termo “soul”, diga-se de passagem, nunca esteve restrito à “alma”, no sentido cristão. Por exemplo, a comida típica de origem africana, principalmente no Sul do país, é conhecida como “soul food” (“comida da alma”), numa referência aquilo que chamamos de “axé” (a “força vital” que habita todos os seres do planeta e se perpetua de geração para geração).

Foi este sentido que foi abraçado pelos movimentos negros a partir dos anos 1950, em composições de artistas como Hank Ballard, Etta James, Ray Charles, Otis Redding (uma das principais referências de Cassiano), Sam Cooke, Jackie Wilson e James Brown (apelidado o “Padrinho da Soul Music”) e, posteriormente, nomes como a banda “The Temptations”, Marvin Gaye e Stevie Wonder.

Por aqui, não foi diferente. Do meio para o fim dos anos 1970, negros e negras, com o mesmo fervor que se voltavam contra o racista regime militar, buscavam demolir o mito da democracia racial, resgatando origens e referências, brigando por espaço para expressar nossa cultura e as particularidades do nosso modo de vida. E a “black music” era a trilha mais do que adequada para isto.

Marginalizado pelo “sistema”, imortal para “os de baixo”

Como muitos outros artistas negros, Cassiano teve uma tumultuada relação com as gravadoras, que o tratavam como “difícil” e tentavam lhe impor “limites”. Nos anos 90, mesmo marginalizado pela indústria cultural, Cassiano voltou aos rádios através de um disco comemorativo, lançado pela gravadora Universal, “Velhos camaradas”, com composições e interpretações de dele, Tim Maia e Hyldon.

Foi um sucesso fulgaz e, em entrevista ao jornal “Folha de S. Paulo”, em 12/10/1998, Cassiano desabafou sobre sua “invisibilização” no cenário musical brasileiro. “Sabe como sou mestre (do soul)? Tenho fitas com músicas inéditas que dão para encher um elevador. Sempre que a mídia precisa lançar uma Ivete Sangalo [que gravou um de seus sucessos], eu sou o mestre, o papa. Quando ganham a grana que queriam, o mestre pode ficar na rua, não tem mãe, não come”, disse o compositor, no mesmo ano que fez sua última apresentação.

Depois disto, foi mais uma vez resgatado, desta vez pelos Racionais, em “Vida Loka – parte II”, através de um verso que despertou a curiosidade de muita gente, que foi atrás da obra do compositor: “Ouvindo Cassiano, há, os gambé não guenta”.

Nos seus últimos anos, já estava bastante debilitado (uma tuberculose lhe custou um dos pulmões, anos atrás). No entanto, também como muitos outros negros e negras, a Covid-19 o atingiu e o deixou à mercê de um sistema de Saúde praticamente colapsado. Internado há mais de um mês, inicialmente numa Unidade de Pronto Atendimento (UPA), foi transferido para um hospital público, onde faleceu.

Aqui, além de nos solidarizarmos com seus familiares e amigos, queremos deixar registrado que seu “axé”, deixado nas belas canções que nos fizeram dançar, sonhar e amar não serão esquecidas. Assim como ele próprio e todos e todas demais que nos foram tirados por uma pandemia que tem como principais aliados e veículos transmissores um governo e uma classe dominante que, literalmente, não têm aquilo que alguns chamam de “alma” e, pra nós, é, pura e simplesmente, a essência do que é ser humano. Algo que Cassiano tinha de sobra.