Daniel Sugasti
Aparentemente, o assassinato do ex-presidente haitiano Jovenel Moïse foi cometido por um grupo de mercenários estrangeiros, a maioria ex-membros do exército colombiano e alguns estadunidenses. Pelo menos esta é a versão das autoridades locais. Mas ainda faltam peças no quebra-cabeça do assassinato que sacode o país caribenho, o mais pobre das Américas.
Até o momento, a polícia matou três colombianos e prendeu outros 17 suspeitos. Os investigadores apontam 28 envolvidos. Uma multidão de haitianos se reuniu perto da área da operação policial em Porto Príncipe, onde incendiaram carros e a casa que servia de esconderijo aos supostos assassinos, que denunciaram como agressores estrangeiros.
Não se sabe sobre as motivações do ataque ou quem estaria por trás do mesmo. O governo colombiano reconheceu seis dos detidos como membros aposentados de suas forças armadas e ofereceu sua colaboração para resolver o caso. De fato, ex-militares colombianos experientes e altamente treinados são cobiçados por empresas mercenárias que operam em lugares como Iraque, Afeganistão, Emirados Árabes Unidos e Iêmen.
Assim, a crise que se aprofunda no Haiti adquire uma dimensão internacional incerta. Os Estados Unidos temem uma crise migratória. A República Dominicana, país vizinho desde 1821, também. A Colômbia não pode ignorar o fato em função da origem dos mercenários. Todos estão preocupados com a possibilidade de uma explosão social violenta. Internamente, as consequências políticas são imprevisíveis. O último assassinato de um presidente ocorreu em 1915. A situação levou à ocupação dos Estados Unidos.
O assassinato abriu uma crise institucional muito séria. O primeiro-ministro Claude Joseph tomou a iniciativa e declarou estado de sítio em todo o território, concedendo amplos poderes ao exército. No entanto, o neurologista Ariel Henry reivindica a posição de Joseph. Henry havia sido nomeado pelo falecido presidente dois dias antes de seu assassinato, mas não pôde assumir suas funções. Ele teria sido o sétimo primeiro-ministro do governo de Moïse, fato que pode ser mais bem compreendido se considerarmos que o Haiti teve 20 presidentes em 35 anos.
Para complicar ainda mais as coisas, na sexta-feira um grupo de senadores acusou Joseph de “instigar um golpe” e exigiu que Joseph Lambert, presidente do Senado, assumisse o cargo. Uma solução constitucional para esse impasse poderia ser a posse do presidente do Supremo Tribunal Federal. Mas René Sylvestre, o último homem a ocupar essa posição, somou-se às estatísticas das vítimas do Covid-19 há um mês.
Por outro lado as eleições presidenciais e legislativas, convocadas para o final de setembro estão na justiça. A sucessão legal de Moïse é antecipada de forma turbulenta, especialmente se considerarmos o contexto de um país devastado pela pilhagem do imperialismo, a opressão de ditaduras sanguinárias, a ação de gangues paramilitares que espalham o terror entre o povo, desastres naturais e uma profunda crise humanitária. A instabilidade política é exacerbada na nação caribenha, em meio a uma situação desesperadora para as massas trabalhadoras. Para se ter uma ideia, a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) declarou que o país está mergulhado na “pior crise humanitária dos últimos anos”.
A primeira coisa a dizer é que o povo haitiano não tem motivos para lamentar a morte de Moïse, um representante da burguesia nativa – uma classe dominante frágil, implacável com o povo, mas subserviente ao imperialismo – que governou com métodos ditatoriais.
O ex-presidente chegou ao poder com as credenciais de um empresário de sucesso. Sua principal atividade era a produção de banana orgânica. Em 2012, criou a empresa Agritrans, localizada na primeira zona franca agrícola do país e com uma plantação de cerca de mil hectares. Seus produtos agrícolas eram exportados para a Europa, principalmente para a Alemanha. Com a fama de “o homem das bananas”, foi eleito candidato do partido Tèt Kale pelo então presidente Michel Martelly, que preparava sua sucessão. Em novembro de 2016, ele foi o vencedor das eleições e iniciou seu mandato em 7 de fevereiro de 2017.
O governo de Moïse foi marcado por graves denúncias de corrupção e sucessivas ondas de protestos sociais. O auge da mobilização popular foi em 2019, quando milhares de pessoas nas ruas praticamente paralisaram o país. O gatilho foi a dramática crise humanitária, agravada por um escândalo de corrupção que envolveu altos funcionários do governo acusados de desviar US$ 3,8 bilhões da PetroCaribe, um programa de assistência petroleira. O grito de Fora Moïse! tornou-se comum nas ruas.
Mas Moïse nunca pensou em renunciar e respondeu com dura repressão Em outubro de 2019, ele suspendeu as eleições parlamentares. Em janeiro de 2020, ele dissolveu o parlamento, todos os prefeitos e passou a governar por decreto. Moïse não poderia concorrer às eleições convocadas para setembro. Por isso, convocou um referendo constitucional no dia das eleições. Disse que isso serviria para “modernizar” a constituição, mas a oposição denunciou que seu verdadeiro objetivo era eliminar o artigo que impedia sua reeleição.
Tanto o primeiro-ministro interino quanto a chamada comunidade internacional –Washington, o Conselho de Segurança da ONU e a União Europeia– estão preocupados que esta nova crise impulsione novas mobilizações populares que questionem os negócios imperialistas junto com a burguesia haitiana. Eles sabem que o Haiti é uma bomba-relógio e o fantasma do “caos social” reaparece nos corredores dos palácios. Governos estrangeiros exigem que se mantenha as eleições para 26 de setembro seja mantida, conforme estava previsto. Enquanto isso, o governo Biden reconhece Joseph como chefe do governo.
É provável que o assassinato de Moïse tenha sido um acerto de contas entre setores burgueses. Inimigos políticos não faltavam, especialmente entre setores oligárquicos descartados dos negócios mais suculentos. Também não se deve excluir que esta crise conduza a uma intervenção militar imperialista. Com a desculpa de “descontrole social e institucional”, as autoridades haitianas pediram aos Estados Unidos e à ONU que enviassem tropas para proteger o porto, o aeroporto, as reservas de gasolina e outras infraestruturas essenciais. O Departamento de Estado e o Pentágono confirmaram o pedido, mas ainda não confirmaram se haverá um deslocamento militar. Isso é gravíssimo e deve ser denunciado desde já.
O Haiti foi ocupado pelos Estados Unidos em várias ocasiões. A última ocorreu entre 2004 e 2017 na forma de uma “missão humanitária”, a MINUSTAH, que era comandada por tropas brasileiras – enviadas pelo ex-presidente Lula em acordo com George W. Bush – e formada por tropas de vários exércitos latino-americanos – muitos deles governados por presidentes “progressistas” -. Esta missão nada teve a ver com garantir a “paz” no Haiti, mas com a proteção dos investimentos imperialistas e a manutenção do bom fluxo de negócios legais e ilegais. É evidente que esta intervenção imperialista, com a cobertura da ONU, não resolveu nenhum dos problemas que afligem o povo haitiano.
Pelo contrário, deixou um legado de opressão e cometeu todo tipo de violência, incluindo inúmeros relatos de abuso sexual e disseminação da cólera. Não é por acaso que muitos militares brasileiros de alto escalão, que lideraram essa vergonhosa ocupação, agora ocupam cargos importantes no governo Bolsonaro.
Não é difícil entender o ódio refletido nas paredes da antiga sede da MINUSTAH, apedrejada repetidamente pela população.
O Haiti é um país extremamente pobre, mas seu povo é valente. É consciente de sua história. É o único país que garantiu sua independência por meio de uma revolução liderada por escravos negros, que derrotou os impérios da França, Espanha e Reino Unido no século XIX. Para se consolidar, a revolução haitiana exterminou fisicamente a população branca, a maioria dos quais eram escravistas.
O imperialismo nunca perdoou a audácia do povo haitiano e o sujeitou a todos os tipos de sanções, pesadas dívidas e ocupações militares. O Haiti pagou um alto preço por sua rebeldia. Em 2021, 60% da população sobrevive na pobreza. A ONU estima que quase quatro milhões de haitianos, de uma população de 11,5 milhões, sofrem de insegurança alimentar. Um quinto de seus habitantes foi forçado a emigrar. A péssima infraestrutura aumenta o poder destrutivo de qualquer força natural. O terremoto de 2010, por exemplo, matou 300.000 pessoas. Além disso, 1.500.000 pessoas ficaram desabrigadas. Em 2016, o furacão Matthew varreu o sudoeste do país, causando 573 mortes e deixando mais de dois milhões de pessoas afetadas. O furacão Laura devastou o país em agosto de 2020, em plena pandemia, deixando dezenas de mortos e extensos danos materiais em seu rastro. Sem um sistema público de saúde adequado, as epidemias causam destroços na população. A cólera de 2010 infectou 520.000 pessoas e matou pelo menos 7.000. Até o momento, foram registrados 19.220 casos de Covid-19 e o número de mortes chega a 471, mas os especialistas concordam que esses números são muito maiores devido à falta de registro. O Haiti não recebeu uma única vacina contra o vírus.
Por enquanto, a Casa Branca anunciou o envio de agentes do FBI e do Departamento de Segurança Interna para investigar o ataque e salvaguardar a “ordem”. Os EUA também doarão cinco milhões de dólares para fortalecer a polícia haitiana e um lote não especificado de vacinas contra a Covid-19. Mas a dinâmica da situação pode fazer com que o imperialismo decida intervir de forma mais contundente.
É preciso que a classe operária e o povo haitiano estejam organizados e se mobilizado. Nenhuma confiança nos governantes provisórios ou no imperialismo. Qualquer tipo de intervenção estrangeira deve ser rechaçada categoricamente. Só é possível aceitar ajuda humanitária oferecida sem nenhuma exigência. Os povos do mundo devem concentrar sua atenção na crise haitiana e demonstrar solidariedade ativa.
Nós revolucionários/as devemos nos opor a qualquer tentativa de intervenção imperialista. Diante do impasse que supõe a sucessão de Moïse e na medida em que não haja levante popular, é correto exigir a imediata convocação de uma eleição geral, livre e soberana. A classe trabalhadora e o povo foram às ruas inúmeras vezes para derrubar Moïse. Agora que ele está morto, é inaceitável que membros de sua facção corrupta e repressora, completamente entreguista, continuem governando o país. A luta contra o governo provisório, as forças repressivas locais, as gangues paramilitares e o imperialismo deve ser encarada com uma perspectiva de poder operário e socialista.
Tradução: Lena Souza