Martin Hernandes, da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI)

A grande maioria da esquerda considera hoje que na ex-URSS e em todo o Leste europeu o capitalismo foi restaurado, mas não em Cuba. Ninguém nega as pressões restauracionistas, mas acham que o capitalismo não foi reintroduzido em Cuba devido à resistência da direção, principalmente a do próprio Fidel.

Sendo assim, Cuba seria um dos últimos “redutos socialistas”. As provas apresentadas para demonstrar essa caracterização são muitas: os discursos de Fidel contra o imperialismo e pelo socialismo; a manutenção por parte dos EUA do bloqueio econômico e a permanente e crescente hostilidade contra o governo cubano por parte da burguesia exilada nos EUA (os “gusanos”).

Para quem pensa dessa forma, o temor pelo que possa ocorrer a partir do afastamento de Fidel está amplamente justificado: o imperialismo norte-americano, junto com os “gusanos”, poderia se aproveitar da situação para restaurar o capitalismo na Ilha.

Sem dúvida, é verdade que estão tentando tirar proveito da atual situação, mas não é correto dizer que seu objetivo seja restaurar o capitalismo, pela simples razão de que em Cuba o capitalismo já foi restaurado!

Nunca houve acordo, no âmbito da esquerda, sobre o caráter do Estado cubano depois da revolução que levou Fidel Castro ao poder. Uns falavam de um Estado “socialista”, outros, de uma “economia popular” e não faltaram os que caracterizassem Cuba como um “Capitalismo de Estado”. De nossa parte, consideramos que a partir da expropriação do capitalismo, Cuba transformou-se em um “Estado operário burocratizado”.

Não é o objetivo desse artigo demonstrar qual das definições é a mais correta, mas queremos ressaltar um fato sobre o qual há bastante acordo: a partir da ruptura com o imperialismo e a expropriação da burguesia, o Estado cubano passou por uma mudança de qualidade. Deixou de existir uma economia capitalista. Surgiu um Estado de um novo tipo, onde não reinava a anarquia do capital, mas uma economia planificada. Com isso, o Estado cubano fazia parte da economia mundial, mas era, como a China e o conjunto dos estados do Leste europeu, uma parte contraditória dessa economia.

Essa sintética descrição do Estado cubano pós-revolução possivelmente seja respaldada pela ampla maioria da esquerda. Mas em nossa opinião um estado desse tipo, independente do nome que tenha, já não existe mais. Por isso, dizemos que o imperialismo não tem o objetivo de restaurar o capitalismo, porque ele já foi restaurado. Logo, o verdadeiro debate que existe em Cuba e que envolve a direção castrista, os “gusanos”, o governo norte-americano e o imperialismo europeu não é sobre se o possível afastamento de Fidel levará ou não à restauração. O debate é sobre como continuar a restauração, e aí surgem diversas posições políticas em função dos diversos interesses econômicos em jogo.

A restauração

Há uma enorme resistência no conjunto da esquerda mundial em reconhecer que o capitalismo foi restaurado em Cuba. No entanto, se analisarmos a realidade, e não somente os discursos da direção castrista, a restauração surge como um fato incontestável.

A existência de uma economia “não-capitalista” não estava apoiada em discursos, mas fundamentalmente em três pilares econômicos. Em primeiro lugar, a maior parte dos meios de produção era de propriedade estatal; em segundo lugar, a quantidade e qualidade do que se produzia não eram determinadas pelas leis do mercado, e sim por um plano econômico central, ao qual todas as empresas estavam subordinadas, e, por último, todo o comércio exterior, tudo o que o país comprava e vendia estava monopolizado pelo estado.

As conquistas econômicas e sociais de Cuba se assentaram nesses três pilares econômicos, mas esses três pilares já não existem. Por isso, hoje não podemos dizer que em Cuba existe uma economia “não-capitalista”, e também por causa disso estão se perdendo, uma a uma, as conquistas da revolução.

No final da década de 70 começaram a ser feitas concessões ao capitalismo, mas foi em 1990, em consonância com o processo que estava ocorrendo na ex-URSS e no Leste europeu, que em Cuba a restauração deu um salto qualitativo. A partir desse momento, seguindo o exemplo do que ocorreu na China depois de 1978 e na ex-URSS depois de 1986, as medidas para desmontar o antigo Estado operário vieram uma atrás da outra. Em pouco tempo, o governo acabou com o monopólio do comércio exterior por parte do Estado, e a economia deixou de ser planificada centralmente. Com isso, as antigas empresas do Estado foram deixando de operar em base a um plano central e passaram a responder aos desígnios das leis do mercado. Um único fato comprova isso facilmente: a Junta Central de Planificação, que dirigia a economia planificada, foi simplesmente dissolvida.

No marco desse processo de restauração um fato de grande importância foi a lei aprovada pela Assembléia Nacional em setembro de 1995: a Lei de Inversões Estrangeiras. Por meio dela, o terceiro pilar econômico do antigo estado operário (a propriedade estatal dos principais meios de produção) foi destruído. As empresas estatais começaram a ser privatizadas, não em base a um capital nacional, mas ao capital proveniente fundamentalmente do imperialismo europeu. A partir dessa lei praticamente todos os setores produtivos do país foram postos à disposição do capital estrangeiro, que passou a associar-se a empresas do estado para explorar os recursos do país. Os principais “sócios de Cuba” hoje são, nesta ordem, a Espanha, o Canadá, a Itália, a França e o Reino Unido.

A entrada do capital estrangeiro ocorreu em praticamente todos os setores da produção em um ritmo assustador. Hoje as empresas mistas (entre o estado e o capital estrangeiro) dominam 100% da exploração de petróleo, de minério de ferro, da produção de lubrificantes, de serviços telefônicos, da produção de sabão, de perfumaria e da exportação de rum; 70% das agroindústrias e de cítricos e 50% da produção de níquel, de cimento e do setor de turismo.[1]

Apesar de todos esses dados, muitos analistas dizem que em Cuba não há um Estado capitalista porque ainda existem muitas empresas estatais e porque na maioria das empresas mistas o estado conserva 51% das ações.

Essa análise não tem o menor rigor científico. Em todos os estados capitalistas existem empresas estatais e mistas. Mas não é a quantidade de empresas estatais, ou a porcentagem que o Estado tem nas empresas mistas o que determina o caráter dessa economia (operária ou capitalista). A questão é saber, no caso de Cuba, se essas empresas, mistas e/ou estatais, estão subordinadas a um plano econômico central ou se estão subordinadas às leis do mercado, da oferta e procura. Em Cuba, até o final da década de 80, as empresas estavam subordinadas a um plano econômico central, mas essa realidade mudou depois dos anos 90 e isso é o que explica a entrada em massa de capital estrangeiro nesse momento. Por exemplo, em 1990 só existiam em Cuba sete acordos de associação econômica com o capital estrangeiro por um volume total de 100 milhões de dólares, e esses acordos estavam restritos à área de turismo. Cinco anos depois, em 1995, existiam 212 acordos de associação econômica com o capital estrangeiro, com um investimento da ordem de 2,1 bilhões de dólares, abarcando 34 ramos da economia.

As relações de Cuba com a burguesia mundial

Durante muitos anos, Cuba teve de suportar uma permanente agressão política, econômica e inclusive militar por parte do imperialismo norte-americano e seus aliados. A revolução que derrubou o ditador Batista triunfou em 1º de janeiro de 1959 e já no mês de outubro desse mesmo ano o presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, aprovou um plano da CIA para promover ações terroristas na Ilha. No início de 1960, as refinarias de petróleo norte-americanas instaladas em Cuba começaram a boicotar a produção. Nos meses e anos seguintes, essas agressões se multiplicaram.

Em dezembro de 1960, os Estados Unidos suspenderam a compra do açúcar cubano. Em janeiro de 1961, romperam relações. Em abril desse mesmo ano, cerca de 1.400 exilados cubanos, treinados e armados pela CIA, desembarcaram em Playa Girón (Baía dos Porcos) com o objetivo de derrubar o governo. Em janeiro de 1962, Cuba foi excluída da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em fevereiro, o presidente Kennedy ordenou o bloqueio econômico total a Cuba. Em todos esses anos, a CIA preparou tantos atentados para matar Fidel Castro que ele foi obrigado a viver praticamente na clandestinidade. Só em 1960 foram descobertos oito complôs para assassiná-lo.

Depois de tantas agressões contra Cuba e contra Fidel, hoje muitos temem que a crise provocada pela possível morte de Castro possa chegar a ser aproveitada pelos Estados Unidos para invadir a Ilha. No entanto, as declarações do governo dos EUA não parecem confirmar esses temores. Apesar de toda a política agressiva do governo Bush, Condoleza Rice foi muito categórica ao declarar que sob nenhum ponto de vista pretendem invadir Cuba. A política é outra. É pressionar para que sejam legalizados os partidos políticos e o processo sucessório de Fidel seja decidido nas urnas. Nesse marco, Caleb McCarry, o homem de Bush para garantir a “transição em Cuba” chegou a declarar que se a maioria dos cubanos votarem no Partido Comunista, os Estados Unidos respeitarão o resultado. Se observarmos a atual política norte-americana e a compararmos com a anterior (atentados contra Fidel, desembarque na Playa Girón, bloqueio, etc.) fica evidente que há uma mudança.

Em relação à URSS e o governo de Stalin, Trotsky dizia:

Enquanto o monopólio do comércio exterior não for abolido, enquanto o direito do capital não for restabelecido, a URSS, apesar de todos os “méritos” de seus governantes, continuará sendo para a burguesia do mundo inteiro um inimigo irreconciliável.[2]

O mesmo podemos dizer em relação a Cuba. Enquanto o monopólio do comércio exterior era estatal e os direitos do capital não eram restabelecidos, a burguesia do mundo inteiro considerava Cuba um inimigo irreconciliável.

O governo castrista, a partir da década de 70, abandonou a idéia dos primeiros anos, de tentar repetir em outros países a experiência cubana. Dessa forma, quando os sandinistas tomaram o poder na Nicarágua, Fidel Castro aconselhou-os a não expropriar a burguesia (“Não façam da Nicarágua uma nova Cuba”). Mas essa mudança não serviu para nada. A maioria da burguesia continuou considerando Cuba um inimigo irreconciliável.

A burguesia mundial só mudou de atitude quando os “direitos do capital” começaram a ser restabelecidos na Ilha. Depois disso, o respaldo foi tão grande que a maioria dos governos, não só da Europa como do mundo inteiro, passaram a questionar o bloqueio americano. Por exemplo, em novembro de 2005 a ONU condenou pela 14ª vez consecutiva o bloqueio a Cuba por parte dos Estados Unidos. Essa posição contou com o respaldo de 182 países. Essa nova relação com uma boa parte da burguesia mundial foi “abençoada” pelo Papa João Paulo II, que em 1998 visitou a Ilha, e pelo patriarca Bartolomeu I, líder espiritual de 140 milhões de cristãos ortodoxos, que esteve lá em 2004.

A política da burguesia norte-americana foi diferente, mas não muito diferente da política da burguesia européia. Há importantes setores que reivindicam o fim do bloqueio e o restabelecimento de plenas relações com Cuba, o mesmo que reivindica o governo cubano. Se isso ainda não foi alcançado se deve à pressão da poderosa burguesia cubana exilada nos EUA. Possivelmente a maioria desse setor só aceita relações com Cuba em base à recuperação do poder e de suas antigas propriedades. No entanto, eles não conseguiram impedir a ampliação dos setores que estão a favor de restabelecer relações com o atual regime cubano.

De imediato, é um fato que o número de americanos que visitam Cuba não pára de crescer. Só em 2002 foram 230.000 (40.000 de forma ilegal). Mas não são só turistas que visitam a Ilha. Em maio desse mesmo ano, Jimmy Carter, ex-presidente dos EUA, visitou Cuba e em dezembro de 2004 mais de 300 empresários norte-americanos viajaram para Havana para reunir-se com Fidel Castro.

Outros fatos também mostram que existe uma nova relação entre os Estados Unidos e Cuba. Em 1988 o FBI desarmou uma conspiração de exilados cubanos para assassinar Fidel Castro, enquanto o juiz norte-americano James L. King condenou seis exilados a mais de 20 anos de prisão por participação no seqüestro de um avião na Ilha. Por outro lado, a partir do próprio governo, o bloqueio econômico começou a ser questionado. Hoje os EUA ocupam o quarto lugar no mundo em exportações para Cuba. Isso se deve fundamentalmente ao fato de a poderosa indústria farmacêutica americana exportar a Cuba com o argumento de que se trata de “ajuda humanitária”. Essa manobra contra os “gusanos”, defensores incondicionais do bloqueio, só se pôde consumar porque contou com o respaldo do governo.

O objetivo desses setores da burguesia norte-americana é claro: não ficar de fora do processo de recolonização da Ilha encabeçado atualmente pelo imperialismo europeu.

Bonapartismo e democracia burguesa

Não há nada que indique que a política dos norte-americanos, e muito menos do imperialismo europeu, seja a de desestabilizar o regime. Hoje a política parece ser “pressionar sem desestabilizar”.

Por que não querem desestabilizar o regime cubano? Porque é com esse regime que o capitalismo está sendo restaurado. Então, por que pressionam por uma saída “democrática”? Porque os diversos setores da burguesia mundial buscam, mediante a legalização dos partidos políticos e as eleições, ganhar terreno no interior do processo de restauração, tanto em relação aos outros setores burgueses como frente ao próprio governo que hoje tem o controle do processo, o que está dando origem a uma nova burguesia ligada ao Estado. Nisto se resume, em relação à burguesia e o governo cubano, o debate sobre a sucessão de Fidel.

A imprensa mundial abriu espaço às mobilizações dos exilados cubanos em Miami e isso deu força à idéia de que os EUA estariam preparando uma invasão ou ao menos uma ofensiva brutal para derrubar o regime atual. No entanto, não é o que opinam os analistas mais informados. O jornalista e escritor argentino Andrés Oppenheimer[3], um expert em Cuba e com muitos anos de trabalho nos Estados Unidos, escreveu: “Observando os últimos acontecimentos em Cuba desde esta parte do mundo, fica a impressão de que a comunidade internacional — incluindo os Estados Unidos — não terá muita pressa em buscar uma transição rápida para a democracia na Ilha”.[4]

Por outro lado, o mesmo Oppenheimer cita uma declaração de Emilio Cárdenas, ex-embaixador argentino nas Nações Unidas: “Ninguém está com pressa de ver grandes mudanças em Cuba. Num primeiro momento, isso poderia significar apoio à direção de Raúl Castro”.[5]

Para entender essa contradição (não desestabilizar o regime bonapartista e pressionar por mudanças) é preciso fazer uma comparação entre Cuba e os demais países capitalistas. As saídas bonapartistas, ditatoriais, são uma alternativa para a burguesia quando, em função da intensidade da luta de classes e/ou dos choques interburgueses se torna necessário colocar ordem nos negócios da burguesia. Nesses momentos, até os mais “democráticos” setores da patronal optam por bater na porta dos quartéis. Por outro lado, o bonapartismo é a expressão, na superestrutura política, da existência dos monopólios; por isso, há uma pressão constante da economia mundial por saídas desse tipo. No entanto, esses regimes não conseguem se manter porque normalmente intervêm três fatores contrários. Os próprios setores burgueses que buscam maior espaço para se expandir, uma tendência dos governos que encabeçam esses regimes a tornarem-se independentes da burguesia que os colocou no poder e a ação das massas contra esses próprios regimes. Sempre que um regime bonapartista é derrubado é porque um desses fatores esteve atuando, com maior ou menor força.

Na maioria dos países capitalistas os regimes bonapartistas surgiram depois que o mecanismo tradicional da burguesia para exercer sua dominação de classe, a democracia burguesa, foi questionado. Mas no caso de Cuba não estamos falando de um Estado burguês típico, e sim de um Estado burguês que surgiu como produto da restauração do capitalismo em um estado operário. Nesse caso, esse tipo de regime é uma necessidade já desde o momento do nascimento do Estado capitalista. Essa é a lição que o conjunto da burguesia parece haver aprendido dos outros processos de restauração.

Na ex-URSS, por exemplo, depois de iniciada a restauração do capitalismo, as massas foram às ruas para enfrentar esses regimes e o grosso da burguesia mundial apoiou “alegremente” esse movimento que acabou derrubando o aparato stalinista. No entanto, essa realidade trouxe graves problemas para o processo de restauração. Na China, pelo contrário, a restauração que começou em 1978 não produziu um choque entre as massas e o regime. Isso permitiu que a restauração fosse ocorrendo sem sobressaltos. Em 1989, quando as massas foram às ruas e ameaçaram liquidar o regime ditatorial do PC, surgiu a possibilidade de que, na China, se repetisse a experiência russa e que o processo de restauração passasse por dificuldades, mas o governo chinês conseguiu, mediante um massacre, controlar a situação. Isto levou ao aprofundamento do caráter bonapartista do regime.

Aparentemente, a burguesia mundial conseguiu uma grande vitória no Leste europeu com o surgimento, nos países mais importantes da região, de regimes democrático-burgueses e, pelo contrário, teria sido derrotada na China, porque lá, mediante a repressão, reafirmou-se o regime ditatorial do Partido Comunista. No entanto, as coisas não foram nem são vistas dessa maneira pela burguesia e isso é o que explica que em todos esses anos tenha sido a China (apesar das diferenças culturais e de idioma) e não o Leste europeu, o destino das principais inversões imperialistas.

Um dado recente exemplifica essa postura do imperialismo. O custo da mão-de-obra para produzir um automóvel na China é de 170 dólares por veículo, enquanto que nos Estados Unidos supera os 2000. Este é o “milagre chinês”, que só pode ser atingido sob uma ditadura sanguinária, onde os trabalhadores não têm os menores direitos trabalhistas. Isso é o que explica porque a GM, em âmbito mundial, conseguiu sair de sua crise em 2005 a partir de suas fábricas na China, e isso também explica porque 50% de todos os produtos exportados pelas 500 multinacionais mais importantes do planeta são fabricados na China.

Do ponto de vista dos interesses das potências imperialistas, não teria sentido uma política para derrubar o regime do PC chinês ou o do PC cubano. O governo cubano dá todas as garantias às empresas imperialistas para explorar os recursos da Ilha. Oferece-lhes a possibilidade de contratar uma mão-de-obra altamente qualificada, pagando os menores salários do continente, e além disso o Estado garante às empresas que esses trabalhadores não farão greve nem qualquer exigência. Isso gera uma enorme mais-valia, que pode ser enviada ao exterior praticamente sem restrições. O que mais poderia desejar o capital internacional?

No entanto, a existência de um processo de restauração dirigido por uma ditadura do Partido Comunista cria contradições não só para o imperialismo norte-americano como também para o europeu. Ambos quiseram manter o controle total desse processo e hoje em dia não o têm, e isso faz com que, a partir do estado, vá surgindo uma nova burguesia nacional que nenhum setor imperialista tem interesse em desenvolver. Daí as pressões para “democratizar” o estado.

Já observamos anteriormente a contradição da burguesia norte-americana com a burguesia cubana, coisa que a impede de disputar de igual para igual com o imperialismo europeu a recolonização de Cuba. Mas a contradição observada anteriormente afeta também o imperialismo europeu e por isso, assim como os norte-americanos, embora não trabalhem para derrubar o regime cubano, não param de pressioná-lo por saídas “democráticas”. Por exemplo, em novembro de 2004, o Parlamento Europeu exigiu de Cuba a libertação dos presos políticos e o presidente da Espanha, José Luís Zapatero, exigiu “passos rápidos na democratização”. Em outubro de 2005 o Parlamento Europeu entregou o Prêmio Sakharov de Direitos Humanos às “Damas de Branco”, um grupo de esposas de dissidentes cubanos presos em 2003.

Nesse marco, o governo cubano não ficou imune às pressões e os norte-americanos estão começando a reconhecer esse fato. Por um lado, o governo cubano tem deixado em liberdade uma série de dissidentes e, por outro, em maio de 2005 permitiu a realização em Havana de um encontro de 150 representantes de grupos opositores que discutiram um plano para a transição política na Ilha. Frente a esses fatos, o chefe da Seção de Interesses dos Estados Unidos em Havana (Sina), Michael Parmly, declarou: “Algum dia o povo cubano concretizará as transformações, já iniciadas, que conduzirão à democracia”, e Caleb McCarry disse que a questão da restituição das propriedades a seus antigos proprietários (os “gusanos”) ou a indenização por elas, que sempre foi a bandeira central dos cubanos exilados, é um tema que deve ser “discutido”, ou seja, negociado.

O verdadeiro temor do governo cubano

Como se fosse uma dinastia, Fidel indicou o irmão Raúl como seu sucessor e nomeou um triunvirato, com dirigentes mais jovens, para assumir o poder de forma conjunta. São eles: Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia Nacional, Carlos Lage, atual vice-presidente e Felipe Pérez Roque, ministro de Relações Exteriores. Todos esses movimentos estão sendo feitos sem que se saiba o real estado de saúde de Fidel Castro. Qualquer informação a respeito virou segredo de estado.

Por que tanto mistério? Por que não se divulga um boletim médico sobre a saúde de Fidel? Se o imperialismo não está tentando derrubar o regime castrista, o que explica essa atitude do governo? Por que foram reforçadas as medidas de segurança? De que o governo cubano tem medo?

Um fato ocorrido em 1994 nos ajuda a desvendar tanto mistério e preocupação. Jon Lee Anderson[6], um jornalista e escritor norte-americano que viveu dez anos em Cuba, descreve dessa forma o que aconteceu no verão de 1994 durante a crise dos “balseros”[7]:

No auge do período especial, depois dos choques entre as autoridades e os que pretendiam emigrar, centenas de homens e jovens fizeram uma manifestação no Malecón. Castro foi até lá com seus guarda-costas nervosos e entrou no meio da multidão. Os manifestantes carregavam pedras e tijolos, mas quando viram Castro, jogaram tudo no chão e começaram a aplaudir. O tumulto, que começou a se expandir perigosamente, dissipou-se.

E Anderson, depois de fazer esta descrição, chega à seguinte conclusão:

É difícil imaginar que qualquer sucessor de Castro tivesse autoridade para tomar essa medida, e a rebelião poderia expandir-se por toda a Ilha.[8]

Uma possível rebelião das massas é a principal preocupação do governo cubano. Para os leitores possivelmente pareça estranho pensar que uma rebelião possa chegar a ocorrer em Cuba, mas o governo tem razão de estar preocupado, porque foram justamente as rebeliões de massas a norma em praticamente todos os processos de restauração do capitalismo.

Existe a falsa idéia, difundida pelos meios capitalistas e assimilada pela maioria da esquerda mundial, que os processos de restauração não provocaram reações na população. Pior, ouve-se dizer que as massas foram para as ruas exigir a volta do capitalismo. Isso não é verdade. O capitalismo foi restaurado e isso teve efeitos devastadores no nível de vida dos trabalhadores e do povo e por isso as massas foram para as ruas enfrentar os regimes restauracionistas. Na ex-URSS o desmantelamento do Estado operário começou em 1986 e isso provocou, em 1989, o início de uma reação generalizada das massas que durou vários anos e culminou com a derrota do regime de partido único do PC. Na China, a destruição do Estado operário começou em 1978 e gerou uma insurreição em 1988 que, ao contrário da ex-URSS, pôde ser controlada por meio de um massacre.

Em Cuba a restauração do capitalismo teve as mesmas conseqüências para o nível de vida das massas que na ex-URSS e na China e isso gerou um profundo descontentamento. No entanto, em Cuba, assim como no Vietnã, esse descontentamento não se concretizou, até agora, em grandes enfrentamentos contra o governo restauracionista e isso não foi por acaso. Tanto na URSS como na China, o processo de restauração foi feito em nome do socialismo e do bem-estar dos trabalhadores e do povo. Mas essas mentiras não se sustentaram por muito tempo porque quem dizia isso eram burocratas sem passado e afastados das massas. Mas em Cuba e no Vietnã a realidade foi diferente. Nesses países também a restauração do capitalismo foi feita em nome da luta pelo socialismo, mas quem estava à frente dessa campanha não eram burocratas afastados das massas e sim os antigos líderes da revolução e da expropriação da burguesia.

Essa é justamente a crise que se avizinha com a possível morte de Fidel. Se ele morrer, quem poderá impedir a rebelião contra as conseqüências da restauração? Poderá Raúl Castro substituir Fidel nessa tarefa?

Além de Fidel Castro, a revolução cubana só gerou dois grandes líderes de massas: Camilo Cienfuegos e Che Guevara, mas ambos estão mortos. Raúl Castro é parte dessa mesma geração, mas nunca teve o carisma e a influência dos outros. O governo cubano sabe desse grave problema e isso é o que explica que o jornal oficial do PC e do governo, o Granma, tenha começado a fazer uma apologia de Raúl Castro. Em uma de suas últimas edições, publica novamente uma notícia do jornal Oriente, de 30 de julho de 1953, informando a prisão de Raúl por ter participado, junto com Fidel, do assalto ao quartel de La Moncada em Havana. A intenção é clara: recordar a participação de Raúl no processo revolucionário que levou à derrota de Batista. Essa apologia mostra, por outro lado, que a direção cubana, mais que temer o imperialismo, teme sua própria população, porque é a ela que estão dirigidas essas notícias mostrando o passado revolucionário de Raúl Castro.

Como dizíamos anteriormente, o imperialismo não quer desestabilizar o regime cubano, mas não pode garantir que as massas não o façam. Se isso vier a ocorrer, um novo cenário estará criado e com certeza o imperialismo vai tentar intervir, porque uma rebelião de massas, em sua dinâmica, não só vai questionar o regime como o próprio processo de restauração capitalista.

Se isso vier a ocorrer em Cuba, a esquerda mundial estará frente a uma nova disjuntiva: de que lado vai se colocar? Até agora, a maioria da esquerda (reformista e revolucionária) em função de seu apoio à suposta “Cuba socialista”, tornou-se cúmplice de uma ditadura capitalista e também dos planos de recolonização do imperialismo europeu. Quando começarem as mobilizações contra o governo cubano essa esquerda continuará com a mesma política ou estará do lado dos trabalhadores e do povo, lutando contra o regime ditatorial do Partido Comunista e contra os novos conquistadores europeus e norte-americanos? O futuro da esquerda, sobretudo da esquerda revolucionária, vai depender de como, na prática, responder a essa questão.

Direção castrista: Da expropriação à restauração

Houve muita resistência no interior das organizações de esquerda a reconhecer que o capitalismo fora restaurado na ex-URSS e no restante do Leste europeu. De certa forma, isso é lógico, porque o triunfo da Revolução Russa foi a maior vitória da história do proletariado mundial, e não é fácil reconhecer que ela tenha terminado em uma derrota. No entanto, hoje, vinte anos depois de iniciada a restauração, essa questão está deixando de ser polêmica. Quase ninguém se dispõe a negar a realidade. Mas em relação a Cuba a coisa é diferente.

Embora a realidade cubana não possa dar margem a dúvidas, tanto sobre a restauração quanto sobre o papel central de Fidel Castro nessa tarefa, são muito poucos aqueles que reconhecem esses fatos. A maioria do movimento trotskista, por exemplo, opina que Cuba continua sendo um Estado operário e que a direção cubana, com Fidel Castro à frente, continua, no mínimo, antiimperialista. Contudo, nem uma coisa nem outra é verdadeira.

Como falar de um Estado operário onde não há monopólio do comércio exterior, onde a economia não responde a uma planificação central e onde imperam as leis do mercado capitalista? E em relação à direção cubana: como afirmar que continua sendo antiimperialista no momento em que está entregando o país ao imperialismo europeu e justo quando Fidel faz elogios escancarados a seus governos, em especial ao rei da Espanha?

Seria possível dizer que Fidel não é antiimperialista, e sim antiamericano, mas isso tampouco é verdadeiro. Fidel Castro, como 80% das pessoas do planeta, é anti-Bush. É contra o governo dos EUA, mas atualmente não está contra o imperialismo americano. Um exemplo: não está contra o Partido Democrata dos EUA, pelo contrário, busca um acordo com ele. Por isso, em seu recente livro em forma de entrevista, “Fidel Castro. Biografia a duas vozes”, faz todo tipo de elogios aos seus dirigentes. Entre outras coisas, diz do ex-presidente John Kennedy (o mesmo que iniciou a Guerra do Vietnã, mandou invadir Cuba e ordenou dezenas de atentados contra o próprio Fidel):

O presidente Kennedy, realmente uma pessoa de talento, teve a desgraça de enviar essa expedição contra nós, a da Baía dos Porcos, e teve que assumi-la. Foi corajoso frente à derrota.[9]

Sobre a família do ex-presidente, afirma:

Depois do assassinato de John Kennedy, mantiveram contato conosco e travamos relações realmente amistosas. São provas de que não nos deixamos levar pelo ódio.[10]

Sobre Jimmy Carter,[11] ex-presidente pelo Partido Democrata, diz:

Carter era um homem ético. Sua política foi construtiva em relação a Cuba e ele foi um dos presidentes mais honrados dos EUA. Tinha uma ética, uma moral. Carter não era capaz de dizer sequer uma mentira. Era um homem bom, decente… Poderíamos ter discutido a Lei de Ajustes, mas não o fizemos porque não queríamos perder tempo e prejudicá-lo. Resolvemos até os seqüestros de aviões… Chegavam a Cuba aviões seqüestrados nos EUA.[12] Nós os devolvemos a Carter. Tenho a impressão de que os seqüestradores foram condenados a 40 anos de prisão… Tomamos a decisão de entregá-los às autoridades americanas.[13]

Os fatos, e muitas das declarações de Fidel, são categóricos. Por que então é tão difícil aceitar que em Cuba o capitalismo foi restaurado e sua direção, atualmente, não tem nada de anticapitalista e seja muito pouco antiimperialista? Porque, por um lado, Cuba foi, no continente americano, o mesmo que a Rússia no mundo: a maior vitória da história do proletariado, e, por outro, porque à frente de Cuba encontra-se Fidel Castro, o homem que dirigiu a luta contra o ditador Batista, a ruptura com o imperialismo, a expropriação da burguesia, e que justamente por ter feito tudo isso se converteu na direção de milhões de trabalhadores, camponeses e jovens não só de Cuba mas também da América Latina e do mundo. Justamente por isso, para milhões de seus seguidores, é inaceitável sequer pensar que o homem que dirigiu a revolução e expropriou os capitalistas possa ser agora o chefe da restauração.

Os argumentos usados para justificar o injustificável são os mais variados. A maioria opina que não há restauração porque Fidel e o povo cubano são contra. Muitos, possivelmente a maioria, consideram que Fidel, dado o isolamento da Ilha, se viu obrigado a fazer concessões ao capitalismo, mas consideram essas concessões inevitáveis para manter o caráter socialista da revolução. Também há os mais críticos, que opinam que as medidas restauracionistas estão crescendo, mas o responsável por isso não é Fidel, e sim aqueles que o rodeiam. Por fim, há uma importante minoria opinando que realmente o capitalismo está sendo restaurado e que Fidel é o principal responsável, mas chegam à nostálgica conclusão de que tudo seria diferente se Che Guevara estivesse vivo.

Os indivíduos na história

Para o senso comum é muito difícil acreditar que a mesma pessoa que dirigiu uma revolução que expropriou a burguesia possa chegar a dirigir a restauração do capitalismo. É verdade que esta é uma contradição, mas também é verdade que se trata de uma contradição muito freqüente.

Stalin, ninguém pode negar, foi um abnegado militante revolucionário, construtor do Partido Bolchevique e, como tal, em mais de uma oportunidade, colocou sua vida em risco. A esse respeito basta recordar que de todos os dirigentes bolcheviques ele foi quem passou mais tempo nas prisões do czarismo. No entanto, esse mesmo Stalin haveria de se transformar no coveiro da revolução e do Partido Bolchevique. Ninguém pode negar também que na Nicarágua, Daniel Ortega e seus companheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional foram heróicos militantes na luta contra a ditadura de Anastasio Somoza. Porém, hoje, o mesmo Daniel Ortega disputa as eleições presidenciais de seu país como candidato de uma aliança entre a FSLN e o PLN (Partido Liberal Nacionalista), fundado por Anastasio Somoza (pai), o assassino do general Augusto Cesar Sandino. A História está cheia desse tipo de situações. Por isso é impossível entender o que está ocorrendo em Cuba em função do passado revolucionário de Fidel Castro.

Para o senso comum, a história é a resultante da luta entre homens bons e maus. Para os marxistas, a história, desde que existe a sociedade dividida em classes, é a resultante do enfrentamento entre as classes sociais: A história da sociedade é a história da luta de classes. O marxismo não nega a importância dos indivíduos na história, como Hitler, Lenin, Perón, Lula, Fidel Castro, Francisco Franco ou Che Guevara. Mas para o marxismo esses indivíduos, mais ou menos talentosos, mais ou menos corajosos, nunca tiveram uma existência alheia à luta de classes. Por isso, para entender o comportamento dessas personalidades, nesse caso o de Fidel Castro, é necessário fazer não só uma análise política desses indivíduos e dessas direções, como também uma análise de classe. Qual é sua origem social? A que classes representam ou representaram? Em que classe se apoiavam ou se apóiam?

O caráter de classe da direção castrista e do Estado cubano

Se analisarmos a direção castrista do ponto de vista de suas propostas políticas encontraremos uma profunda contradição entre seu passado e seu presente. Mas se analisarmos essa mesma direção do ponto de vista social, tal contradição desaparece.

O Movimento 26 de Julho, que levou adiante a luta contra o ditador Batista, era um movimento de origem e caráter pequeno-burguês, que se apoiou fundamentalmente nos camponeses pobres, no movimento estudantil e nas classes médias das cidades. Como tal, foi um movimento extremamente progressivo e teve um papel revolucionário, a tal ponto que avançou muito além de suas intenções originais, chegando a expropriar o imperialismo e a burguesia e dando origem assim a um estado de novo caráter, um estado operário, já que estava baseado em uma economia estatizada e planificada.

Entretanto, esse Estado operário nasceu com uma grave contradição: à sua frente não estava a classe operária com seus organismos e menos ainda havia qualquer vestígio de democracia operária. Por isso, do ponto de vista científico, era equivocado definir o estado cubano simplesmente como “operário”. O correto era defini-lo, desde seu nascimento, como um estado operário burocratizado. O caráter do novo estado cubano é uma continuidade do caráter do Movimento 26 de Julho, um “partido-exército”, cheio de corajosos lutadores, mas no qual não havia a menor democracia, nem operária e nem de nenhum outro tipo.

O caráter de classe da direção castrista deu origem a muitas controvérsias no interior do movimento trotskista. Muitos setores dizem que é verdade que o Movimento 26 de Julho e sua direção tinham caráter pequeno-burguês, mas ao efetuar uma ação revolucionária (expropriar a burguesia e o imperialismo e construir um estado operário) modificou seu caráter social, convertendo-se em uma direção operária revolucionária. Esse tipo de raciocínio nega o marxismo porque um indivíduo pode chegar a mudar de classe, mas um movimento social não pode fazer o mesmo. Como diz Nahuel Moreno:

Nenhum setor social privilegiado aceita perder seus privilégios e transformar-se em outro setor social inferior, diferente. Pelo contrário, todo setor social com privilégios tende a aumentá-los.[14]

A direção de um setor privilegiado, burguês ou pequeno-burguês, pode obrigada pelas circunstâncias objetivas, ir mais longe do que pretendia no terreno político para defender seus privilégios e aumentá-los, quando se vê ameaçada de perdê-los, mas nunca combaterá seus próprios privilégios unindo-se aos setores mais explorados que lutam contra eles.[15]

É justamente essa análise de Moreno que explica por que o Movimento 26 de Julho, contradizendo seus planos políticos originais, chegou a expropriar a burguesia e o imperialismo. Mas é também essa análise que explica por que essa direção foi incapaz de levar até o fim o processo revolucionário e a partir daí começou a retroceder até chegar à restauração do capitalismo.

O castrismo avançou além de suas intenções

A direção castrista foi muito mais conseqüente em sua luta contra a ditadura que a direção sandinista na Nicarágua. Por isso, não se conformou com a derrubada da ditadura, e procurou recuperar a economia destroçada pelo governo corrupto de Batista. Sua intenção não era expropriar o imperialismo e a burguesia, mas se viu obrigada a fazê-lo em função do boicote de ambos.

Assim, por exemplo, o novo governo cubano fez um acordo muito vantajoso com a URSS para importar petróleo. O governo dos EUA se opôs a esse acordo e as destilarias instaladas em Cuba, que eram todas americanas, negaram-se a processar o produto importado da URSS. Essa medida deixou o governo cubano sem alternativas, o que o levou a expropriar as destilarias americanas. Esse processo foi ocorrendo gradualmente e, em pouco tempo, atingiu o conjunto da economia.

A luta conseqüente por apoiar o novo governo surgido da luta contra Batista levou a direção do Movimento 26 de Julho não só a expropriar o capitalismo e a burguesia como também a diferenciar-se inclusive da URSS e do stalinismo em nível mundial. A direção castrista tinha consciência de que Cuba estava isolada e que para se defender precisaria atacar. Assim, no mesmo momento em que a URSS e todo o stalinismo mundial defendiam a “coexistência pacífica com o imperialismo”, Fidel Castro dizia que era necessário “transformar a Cordilheira dos Andes na Sierra Maestra do continente americano”[16] e Che Guevara clamava pela construção de “dois, três, muitos Vietnãs”. Essas não eram frases de efeito ao estilo daquelas pronunciadas atualmente por Hugo Chávez. Para concretizar seu projeto, Fidel Castro colocou Manuel “Barba Roja” Piñeiro, que era vice-ministro do interior, à frente do secreto Departamento de Libertação, encarregado de organizar o treinamento político e militar de centenas de guerrilheiros de vários países latino-americanos e coordenar as medidas de apoio a vários movimentos de libertação nacional, como foi o caso do movimento encabeçado por Ben Bella na Argélia.

As limitações do castrismo

Quando os bolcheviques dirigiram a tomada do poder, buscaram a todo o momento, por intermédio dos Soviets e dos sindicatos, e com base na democracia operária, assegurar que a classe trabalhadora tomasse em suas próprias mãos a construção do novo estado. Por outro lado, a direção bolchevique aproveitou o prestígio adquirido por sua revolução para chamar a construção do Estado-Maior da revolução mundial, a III Internacional, em que os bolcheviques se integraram como parte minoritária da direção.

Revolucionários de muitas partes do mundo procuraram, depois do triunfo da Revolução Russa, sem levar em consideração a realidade da luta de classes, construir soviets e tomar o poder. A direção bolchevique, Lenin em particular, combateu duramente esses falsos bolcheviques e chamou-os a respeitar o movimento real da classe operária e das massas.

Com a direção castrista aconteceu o oposto e, por isso, tudo o que fez de progressivo acabou se transformando em seu contrário. Expropriou a burguesia e o imperialismo, mas em nenhum momento lutou para que a própria classe operária e o povo, por intermédio de suas organizações, estivessem à frente do novo estado.

A direção castrista buscou impulsionar a revolução em outros países mas, ao contrário da direção bolchevique, nunca viu a revolução cubana como algo tático em função da revolução latino-americana e mundial. Encarou a revolução nos outros países como uma tática para defender a revolução cubana; isso significa que a direção cubana sempre viu a revolução mundial desde uma ótica nacional.

A máxima expressão do caráter nacionalista dessa direção foi o fato de que nunca defendeu, apesar de seu prestígio no mundo inteiro, a construção de uma direção internacional da qual ela deveria fazer parte. Assim, o caráter nacionalista e pequeno-burguês da direção castrista acabou afetando o conjunto da política internacional do castrismo e fazendo com que a Revolução Cubana se isolasse cada vez mais.

Por toda a América Latina surgiram jovens, na maioria das vezes provenientes da pequena-burguesia, dispostos a repetir a experiência cubana em seus países. A direção cubana, longe de orientá-los em direção à classe operária, suas organizações e suas lutas, os convocou a organizar focos guerrilheiros, sem levar em conta a situação da luta de classes, para “criar” as condições para a revolução.

Essas posições da direção castrista penetraram profundamente entre muitos lutadores, especialmente na vanguarda estudantil latino-americana e, como não poderia deixar de ser, essa experiência terminou em tragédia. Processos revolucionários foram abortados. Golpes sangrentos foram provocados. Milhares de honestos militantes morreram nessa aventura. Entre eles o próprio Che Guevara, assassinado na Bolívia. Frente a esses desastres, a direção cubana, dada sua natureza de classe, foi incapaz de fazer um balanço e reorientar sua política em direção à classe operária e suas lutas. Pelo contrário, acabou se integrando de forma definitiva ao bloco dirigido pela URSS e sua política de “coexistência pacífica” com o imperialismo.

A nova política de Cuba passou por sua maior prova em 1979. Nesse ano, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, depois de destruir a Guarda Nacional de Somoza, tomou o poder na Nicarágua. As simpatias que existiam na Nicarágua pela Revolução Cubana eram muito grandes. Por outro lado, os dirigentes sandinistas se consideravam discípulos de Fidel Castro. Depois de tomar o poder, a direção da FSLN viajou a Cuba para conversar com Fidel, que os felicitou e lhes deu um conselho: “Não façam da Nicarágua uma nova Cuba”. O conselho foi claro. Em outras palavras, Fidel disse aos sandinistas: não avancem além da derrubada da ditadura, não expropriem o imperialismo e a burguesia, não construam um estado operário. Com esse conselho o destino da Nicarágua estava selado, e o de Cuba também.

Da “coexistência pacífica” à restauração capitalista

A teoria utópica e reacionária de Stalin do “socialismo em um só país” levou à política contrarrevolucionária da “coexistência pacífica com o imperialismo” e esta, como não poderia deixar de ser, conduziu à restauração do capitalismo no conjunto dos ex-estados operários. A coexistência pacífica com o imperialismo significou, na prática, permitir que as maiores potências econômicas do planeta não apenas mantivessem sua superioridade, e com isso seu domínio sobre a economia mundial, como também ampliassem esse domínio em detrimento dos estados operários. Esse fato levou os novos estados a uma crise crescente, do ponto de vista econômico e social, de tal forma que terminaram frente a duas alternativas: ou retomavam, mediante a luta pela revolução mundial, a batalha por recuperar suas economias, ou se entregavam, mediante a restauração do capitalismo, aos braços do imperialismo. A crise era tão grave que não lhes restava mais do que essas duas alternativas. A história é bastante conhecida. Por razões de classe, as burocracias governantes não estavam dispostas a pôr em risco seus privilégios, por isso, de conjunto, caminharam em direção à segunda opção.

Como os demais Estados operários, Cuba estava diante dessas mesmas alternativas, e é evidente que não optou por expandir a revolução. Basta ver a experiência da Nicarágua que citamos anteriormente. Dessa forma, frente ao isolamento que ela mesma havia contribuído para criar, só lhe restava a restauração como opção. E assim, por essa razão, estamos presenciando o triste fim de uma direção que por suas limitações políticas e especialmente de classe foi incapaz de levar sua própria experiência às últimas conseqüências.

As direções russa e cubana diante da restauração

No decorrer desse texto mostramos a diferença qualitativa entre a direção bolchevique, de Lenin e Trotsky, e a direção cubana de Fidel Castro e Che Guevara. No entanto, uma leitura superficial poderia nos levar a pôr um sinal de igual entre o comportamento de ambas as direções frente à restauração. Em ambos os processos houve uma direção que encabeçou a expropriação do imperialismo e da burguesia e ambos terminaram com a restauração do capitalismo.

Entretanto, a diferença é qualitativa, já que a ex-URSS só pôde chegar à restauração com a destruição prévia do Partido Bolchevique pelas mãos do stalinismo. Pelo contrário, em Cuba não foi necessário destruir a antiga direção para restaurar o capitalismo. A mesma direção que dirigiu a expropriação da burguesia foi a que, sem crises, encabeçou a restauração. Isso demonstra que sempre houve uma profunda unidade de classe entre a direção russa e a cubana, mas não entre a direção de Lenin e Trotsky com a de Fidel, e sim entre a direção stalinista e a de Fidel, unidade que existiu mesmo nos momentos em que a direção castrista tinha posições políticas diferentes das posições stalinistas.

O balanço da direção castrista e a construção da direção revolucionária

Em meio a uma situação revolucionária como a que se vive atualmente na América Latina, a batalha por construir uma direção revolucionária é a “mãe de todas as batalhas”, mas essa construção não começa do zero. Trotsky, fazendo o balanço da Revolução Russa, dizia:

Sabemos com certeza que qualquer povo, qualquer classe e mesmo qualquer partido se instruem principalmente por experiência própria; mas isso não significa, de modo algum, que seja de pouca monta a experiência dos demais países, classes e partidos. Sem um estudo da grande Revolução Francesa, da revolução de 1848 e da Comuna de Paris, jamais teríamos levado a cabo a Revolução de Outubro.[17]

É impossível chegar à vitória no continente americano se não formos capazes de estudar e extrair todas as conclusões da única revolução socialista vitoriosa do continente, a Revolução Cubana. Essa é a importância desse balanço histórico da direção castrista, não só para o presente, mas sobretudo para o futuro.

Há conclusões fundamentais a extrair da grande Revolução Cubana que iluminam nossa batalha no continente, tanto no terreno objetivo como no subjetivo. Em primeiro lugar, a Revolução Cubana mostrou que é possível enfrentar e derrotar a burguesia e o imperialismo. Se isso foi possível em um pequeno país situado a poucos quilômetros dos EUA, por que não seria possível em países muito mais importantes do continente, como Argentina, Brasil, Colômbia, Chile ou México?

Em segundo lugar, as conquistas da Revolução Cubana na eliminação da pobreza, e na melhoria da saúde e da educação, mostram que esses temas, que pareciam endêmicos do continente, podem ser resolvidos com a expropriação da burguesia e do imperialismo.

Em terceiro lugar, a realidade mostrou que sem a extensão da revolução ao resto do continente e do mundo, o caminho de toda revolução vitoriosa que exproprie o capitalismo é inevitavelmente a restauração do próprio capitalismo.

Em quarto lugar, a realidade também mostrou que a direção cubana, que apareceu em seu momento aos olhos de milhões de lutadores de todo o mundo como uma alternativa de direção revolucionária frente à decadente burocracia stalinista, sucumbiu vítima de suas graves contradições políticas e de classe.

Em quinto lugar, e a título de conclusão: é inegável que a Revolução Cubana potencializou no mundo inteiro as energias revolucionárias da classe operária e dos povos, mas, contraditoriamente, em relação à superação da crise de direção revolucionária, o castrismo cumpriu um papel nefasto.

O prestígio adquirido pela direção castrista por haver dirigido a revolução foi tão grande que atrasou por décadas a grande tarefa de superar a crise da direção revolucionária. O castrismo cumpriu um papel objetivo de afastar a vanguarda das duas grandes tarefas estratégicas dos revolucionários: a relação com a classe operária e a construção do partido da revolução a nível nacional e mundial.

O castrismo influenciou e confundiu não só várias gerações de lutadores como também organizações inteiras e importantes dirigentes marxistas revolucionários. Nahuel Moreno, sem dúvida o mais importante dirigente do trotskismo latino-americano, não conseguiu escapar da pressão do castrismo nos primeiros anos da revolução. Assim, por exemplo, em um texto de polêmica com Che Guevara, expressava idéias como esta:

Fidel e Che demonstraram nos fatos e popularizaram várias questões políticas e teóricas de fundamental importância, que nos permitem dizer deles, parafraseando o que Sartre disse da filosofia de Marx, que não há hoje em dia outra corrente revolucionária na América a não ser o castrismo.[18]

Nahuel Moreno, ao contrário da ampla maioria dos outros dirigentes do trotskismo, manteve-se fiel à classe operária e ao marxismo e, por essa via, foi rompendo qualquer tipo de relação com o castrismo. Prova disso é que as reflexões que expusemos neste artigo estão inspiradas nas elaborações de Moreno das décadas de 70 e 80. No livro Conversando com Nahuel Moreno, ele faz uma reflexão muito profunda sobre esse processo de sua relação e ruptura com o castrismo, que deve ser levada em conta por todos aqueles que lutam pelo poder da classe operária. Moreno diz:

Ao longo de minha vida política, depois, por exemplo, de observar com simpatia o regime que surgiu da Revolução Cubana, cheguei à conclusão que é necessário continuar com a política revolucionária de classe, ainda que atrase nossa chegada ao poder em vinte ou trinta anos, ou quanto tempo for necessário. Nós desejamos que a classe operária chegue ao poder verdadeiramente, por isso queremos dirigi-la.

 

[1] Fonte: Ministério de Inversão Estrangeira e Cooperação.

[2] Trotsky, L.: A Revolução Traída (Fontamara, Espanha, 1977), p. 192.

[3] Andrés Oppenheimer, jornalista e escritor argentino, trabalhou para a Associated Press e Miami Herald. É autor do livro La hora final de Castro. Em 1987 ganhou o prêmio Pulitzer.

[4]Andrés Oppenheimer, “La sucesión cubana en el mundo”. Nuevo Herald, 10 de agosto de 2006.

[5] Idem.

[6] Jon Lee Anderson é autor do livro Che Guevara. Una biografía.

[7] “Balseros” – movimento de milhares de pessoas que, devido à penúria econômica, se lançaram ao mar em embarcações improvisadas para chegar aos Estados Unidos.

[8] “A última batalha de Fidel Castro”, Jon Lee Anderson. “Caderno Mais”, jornal Folha de S. Paulo, 6 de agosto de 2006.

[9] “Fidel Castro. Biografia a duas vozes.” Entrevista de Ignacio Ramonet, Editorial Boitempo, São Paulo, Brasil, p. 272

[10] Idem.

[11] Jimmy Carter, convidado por Fidel Castro, visitou Cuba entre 12 e 17 de maio de 2002. Realizou uma conferência na Universidade de Havana, transmitida ao vivo para toda a Ilha, em que desferiu um duro ataque contra a Revolução Cubana. Posteriormente, Fidel fez uma homenagem a Jimmy Carter diante de milhares de pessoas em um estádio de beisebol.

[12] Depois do triunfo da revolução houve muitos casos em que ativistas antiimperialistas seqüestravam aviões nos EUA e os levavam a Cuba e pediam asilo político.

[13] “Fidel Castro. Biografia a duas vozes.” pp. 370/371

[14] Moreno, N.: Teses para a atualização do Programa de Transição, (CS Editora, São Paulo, Brasil), p. 61.

[15] Idem, pp. 61/62

[16] Discurso de Fidel Castro, 21 de julho de 1961, Santiago de Cuba.

[17] Trotsky, L.: Lecciones de Octubre (El Yunque Editora, Buenos Aires), p. 15.

[18] Moreno, N.: Dos Métodos Frente a la Revolución Latinoamericana.