Fábio Bosco, de São Paulo (SP)

Um levante social toma as ruas, fábricas e escolas em toda a França. O dia 28 de março foi o nono dia nacional de manifestação convocado pelas centrais sindicais

Três milhões e meio de manifestantes tomaram as ruas de todas as grandes cidades, e inclusive de várias pequenas. Isso equivale a 5% de toda a população do país. Várias vias públicas foram bloqueadas pelos manifestantes. A polícia reprimiu duramente: prendeu e feriu centenas de pessoas. Mas não impediu que a classe trabalhadora demonstrasse quem é que manda nas ruas do país.

Categorias importantes realizaram greves recorrentes desde janeiro, quando a primeira-ministra, Élisabeth Borne, apresentou a proposta de reforma da previdência. E enfrentam governo e patrões que usam as requisições para obrigar os grevistas a retornarem ao trabalho.

A greve nas refinarias de petróleo deixou 20% dos postos de gasolina desabastecidos total ou parcialmente em todo o país. Nas ruas de Paris, nove toneladas de lixo se acumulam devido à greve dos coletores. Nos transportes, 25% dos ferroviários paralisaram em todo o país, e o principal terminal do aeroporto internacional Charles de Gaulle foi bloqueado por ativistas sindicais. A paralisação de professores e professoras é fundamental para massificar os protestos. Também os estudantes universitários paralisaram 50 universidades e ocuparam algumas delas.

Cadê a democracia?

Setenta por cento da população rejeita a proposta de reforma da previdência. Ela prevê aumento da idade mínima para aposentadoria de 62 para 64 anos, do tempo de contribuição de 42 para 43 anos, além do fim do regime especial dos ferroviários, eletricitários e outros setores de funcionários públicos. Os militares ficam fora da reforma, e poderão se aposentar antes dos demais servidores públicos.

A proposta tem que ser aprovada pela Assembleia Nacional (Câmara dos Deputados de lá) e pelo Senado. Este último aprovou a reforma em 16 de março. Mas o impopular presidente Macron não tinha maioria para aprová-la na Assembleia Nacional e por isso a impôs por decreto.

A maioria da população francesa entendeu a“canetada” como um golpe contra a democracia e a soberania popular, e pressionou a Assembleia Nacional a votar a moção de censura para anular a reforma e derrubar o governo da primeira-ministra Borne. Para surpresa geral, faltaram apenas nove votos.

Isso demonstrou o fracasso da estratégia parlamentar da esquerda burguesa liderada pelo senador Mélenchon, que é seguida pela maioria das forças de esquerda do país. O caminho para defender o direito à aposentadoria é o da ação direta nas greves operárias, ocupações, bloqueios de vias e manifestações gigantes, construindo organismos de poder operário e popular.

Uma estratégia revolucionária

Em paralelo ao levante social contra a reforma da previdência, os imigrantes, em passeata, enfrentaram a polícia em Paris, e manifestantes contra a privatização da água foram violentamente reprimidos em Sainte-Soline, a 400km a sudoeste do país, com 250 feridos, sendo 40 em estado grave.

Está em curso uma unificação espontânea de diversas lutas sociais contra o presidente Macron e o capitalismo francês.

Surpreendentemente, não há nenhum partido revolucionário que levante a proposta de unificar todas essas ações em uma greve geral para derrubar Macron, formar organismos de poder operário e popular, e lutar para colocar os trabalhadores e as trabalhadoras no poder.

Não dá para esperar que a Intersindical – que reúne centrais sindicais conservadoras como a CFDT e a FO, juntamente com a CGT (que está totalmente dividida) e a combativa União Solidaires – convoque a greve geral por tempo indeterminado. Esse passo terá que ser dado em ação coordenada de delegados sindicais e sindicatos de base sintonizados com a radicalização da luta.

Decadência

A crise do imperialismo francês

Essa mobilização extraordinária ocorre em meio a uma crise do imperialismo francês. Exemplo disso é o crescimento de protestos anti-imperialistas nas ex-colônias. Os governos do Mali e Burkina Fasso deram o prazo de um mês para a retirada das tropas francesas que estavam presentes em seus territórios desde 2014. Para substituí-las, estão contratando a milícia privada russa Grupo Wagner.

Outro elemento de crise é o regime político da Quinta República cujo desprestígio aumenta ao ritmo dos ataques às conquistas operárias e populares. Partidos políticos tradicionais – gaullista [direita] e socialista [reformistas] – tiveram votação ínfima nas eleições presidenciais. Macron, considerado o candidato dos super-ricos, venceu as eleições contra a candidata da extrema-direita Marine Le Pen, recorrendo à xenofobia e à islamofobia para ganhar votos e dividir a classe trabalhadora. Hoje o impopular presidente Macron tem o apoio de apenas 28% do povo francês. A extrema-direita e a esquerda burguesa de Mélenchon se fortalecem eleitoralmente, o que acaba por reincidir na crise do regime como um todo.

Por fim, a invasão da Ucrânia por Putin catapultou a crise do imperialismo francês. Por um lado, a invasão fortaleceu a hegemonia norte-americana sobre o imperialismo europeu e, ao mesmo tempo, provocou uma inflação de alimentos e energia e uma crise de milhões de refugiados espalhados em todo o continente. Além disso, tanto a extrema-direita de Marine Le Pen e Zemour como a esquerda burguesa de Mélenchon são aliadas de Putin.

Mélenchon  lidera a sórdida campanha contra o envio de armas para a Ucrânia, dando as costas à heroica resistência do povo ucraniano que luta, de armas na mão, contra a invasão de Putin. Curiosamente, a organização trotskista ao redor do jornal “Révolution Permanente”, que rompeu com o Novo Partido Anticapitalista (NPA) em junho do ano passado, aderiu à Fração Trotskista (FT), organização que faz a mesma campanha de Mélenchon contra o envio de armas à Ucrânia.

Brasil

Lula, revogue a reforma da previdência já!

O levante do proletariado francês em defesa do direito à aposentadoria está no centro das atenções da classe trabalhadora em todo o mundo, inclusive no Brasil.

Em 2019, o governo Bolsonaro e o Congresso Nacional  impuseram uma reforma da Previdência, proposta ainda durante o governo Temer, na qual foi extinta a aposentadoria por tempo de serviço e elevada a idade mínima para homens (65 anos) e mulheres (62 anos). Além disso, a nova forma para cálculo dos benefícios reduziu drasticamente o valor destes. Os militares ficaram fora da reforma e continuaram tendo a idade mínima de 55 anos.

A equipe de transição do governo Lula sugeriu manter a reforma de Temer/Bolsonaro e melhorar apenas dois benefícios: pensão por morte e aposentadoria por invalidez. Mas manter a reforma de Temer/Bolsonaro é inaceitável.

Mais da metade da classe trabalhadora está sem carteira assinada, fruto da reforma trabalhista de Bolsonaro. A maioria nunca terá o tempo mínimo de contribuição para se aposentar. E a maioria das aposentadorias é de apenas R$ 1.302,00. Como sobreviver com esse valor?

A classe trabalhadora deve exigir que Lula revogue as reformas da Previdência e trabalhista, a qual legalizou todo tipo de precarização.

Outra medida necessária é a ampliação dos fiscais do Ministério do Trabalho para multar todas as empresas que contratem sem carteira assinada. A fiscalização deve ser dirigida às grandes e médias companhias. Além disso, toda empresa envolvida com trabalho escravo deve ser imediatamente expropriada, estatizada e colocada sob controle dos trabalhadores.

Por fim, é necessário aumentar o salário mínimo de verdade. A proposta de reajustá-lo de acordo com a inflação e com o crescimento do PIB é insuficiente. É necessário dobrar o salário mínimo rumo ao valor calculado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de aproximadamente R$ 6.600,00.

Em janeiro, a previdência social completou 100 anos. Representa o maior programa de distribuição de renda do país, muito maior que o Bolsa Família. São 22 milhões de aposentadorias no valor mínimo de R$ 1.302,00, além de 20 outros importantes benefícios como o auxílio-acidente e o auxílio-doença. Precisamos torná-la acessível a toda a classe trabalhadora.

É preciso estar consciente de que o governo Lula-Alckmin, de amplíssima aliança com os capitalistas, infelizmente não tem qualquer intenção de tomar qualquer uma das medidas propostas aqui.

É preciso ir à luta, como na França, para impedir que os que governam o sistema capitalista arranquem todos os direitos que nós, da classe trabalhadora, conquistamos a duras penas.

Por isso, é preciso exigir que os sindicatos mantenham independência política do governo e da patronal e organizem e unifiquem a luta da classe trabalhadora. É preciso exigir o mesmo das centrais sindicais, que em vez de se atrelarem ao governo e, por tabela, ao grande empresariado, deveriam fazer como a CSP-Conlutas: assumir uma posição de independência perante o governo Lula-Alckmin. E assim, assumir a organização da luta pela revogação das reformas.