Rebeca Andrade, Simone Biles e Shilese Jones no primeiro pódio 100% negro da história dos Mundiais de ginástica artística | Foto: Ricardo Bufolin/CBG
PSTU-PA

Otávio Aranha, de Castanhal (PA)

Há cerca de um mês, viralizou nas redes sociais um vídeo com crianças dispostas lado a lado num evento de ginástica, no qual se observa todas recebendo medalhas, com exceção de uma, a única criança negra ali presente foi simplesmente desprezada pela dirigente esportiva que distribuiu as premiações. O evento, chamado GymSTART, ocorreu em março de 2022, em Dublin, capital da Irlanda, promovido pela Federação de Ginástica daquele país. A entidade esportiva enviou um pedido de desculpas à família da criança ignorada, contudo, em entrevistas recentes, a família afirmou que a entidade não realizou nenhuma retratação pública pelo ocorrido e não consideraram o pedido de desculpas como “sincero”.

Infelizmente, o episódio não é um fato isolado no mundo da ginástica. Daiane dos Santos, ex-atleta olímpica e uma das poucas negras que fez parte da equipe nacional, já relatou diversas vezes os episódios de racismo e segregação que sofreu ao longo de sua trajetória como atleta. A Ginástica Artística é um esporte elitizado, historicamente dominado por pessoas brancas. Porém, essa história pode estar próxima do fim.

Um mês depois do vídeo do episódio racista de Dublin circular no meio virtual, entre 30 de setembro e 8 de outubro deste ano, ocorreu o Campeonato Mundial de Ginástica Artística, na cidade de Antuérpia, na Bélgica. O evento é a maior competição internacional desta modalidade e qualifica atletas e equipes para participar dos próximos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024. No Mundial de Ginástica deste ano, para a surpresa de muitos, o principal destaque foi justamente o desempenho inédito que as atletas negras obtiveram.

Simone Biles e Rebeca Andrade

Simone Biles fez um dos saltos mais difíceis que um ser humano já executou sob uma “mesa de salto”, aparelho com uma pequena plataforma horizontal a 1,25m do solo, que ela deve passar por cima, em plena fase do “voo” e bater com as mãos. Numa velocidade absurda, após um duplo mortal carpado, ela acabou tendo o seu corpo projetado na aterrissagem, o que a fez cair de costas ao chão. Após se levantar sem sofrer qualquer lesão física (o que já é, em si, extraordinário para o grau de dificuldade de um salto desses), caminhou sorridente em direção a marca da pista para o seu segundo salto.

De qualquer modo, esta jovem negra de 26 anos e 1,42m de altura, já tem plena confiança de si a ponto de saber que possui um lugar no pódio, a única dúvida seria, portanto, que posição. Seu segundo salto foi excelente, mas a penalidade sofrida pela queda do primeiro retirou-lhe a tão almejada medalha de ouro. Simone quase conseguiu o primeiro lugar, mas foi desbancada por uma outra jovem negra, concorrente dela na competição, mas não sua adversária.

Rebeca Rodrigues de Andrade, com 24 anos e 1,55m de altura, nascida no interior de Guarulhos (SP), filha de Dona Rosa, mãe solo que criou mais seis filhos, executou dois saltos sobre a mesa, o nível de dificuldade dos saltos foi menor que o realizado por Simone Biles. Porém, saltos muito bem executados! O resultado final foi que a média dos pontos obtidos pela nossa Rebeca (14.750) ficou acima dos pontos de Simone (14.549). Com um resultado apertado de 0,2 de diferença, uma jovem negra da periferia de São Paulo subiu novamente ao pódio mais alto para receber a medalha de ouro, enquanto outra negra – Simone Biles – recebeu a prata. A sul-coreana Yeo Seo-jeong ficou com o bronze.

A norte-americana Simone Biles é maior atleta de ginástica do mundo e com certeza uma das maiores atletas quando se fala em esportes em geral. Neste Mundial, ela recebeu o ouro no individual geral (soma de todos os aparelhos da ginástica feminina), por equipes, na trave de equilíbrio e na apresentação do solo, somando 4 medalhas de ouro e mais 1 de prata. Seu resultado é inédito: ela é a primeira atleta desta modalidade a receber seis títulos no individual geral, nos mundiais de ginástica.

Mas como a vida de uma mulher negra não é fácil, este resultado extraordinário ocorreu após uma pausa de dois anos em sua carreira. Simone Biles interrompeu a vida profissional para cuidar de sua saúde mental, afetada após vir a público as denúncias de assédio, abuso sexual e estupro, realizado pelo predador Sérgio Nassar, médico da equipe nacional de ginástica na época, do qual ela foi uma das vítimas, junto a outras 300 ginastas. No depoimento de Biles contra Nassar, ela deixou claro que “todo o sistema que o permitiu” também deve ser responsabilizado, referindo-se à Federação de Ginástica dos Estados Unidos e ao Comitê Olímpico e Paraolímpico deste país, que sabiam das acusações, mas nada fizeram para retirar o médico de seu posto, sendo, portanto, cúmplices destes atos.

Os abusos sexuais e psicológicos que Biles foi submetida poderia ter quebrado qualquer um. Quando ela desistiu dos Jogos Olímpicos de Tokio para “enfrentar seus demônios internos”, foi muito criticada, principalmente pelo estadunidense médio e conservador. Mas como uma guerreira negra, o grito de seus antepassados que correm em suas veias não a deixou esmorecer. Hoje, Simone Biles é a atleta mais condecorada da história da ginástica artística (masculino e feminino), vencedora de 34 medalhas em campeonatos mundiais e a maior vencedora de medalhas de ouro.

Além de Biles, outra jovem negra segue em seu encalço, nossa querida Rebeca Andrade. No individual geral, logo atrás de Biles, Rebeca levou a prata; que se repetiu na apresentação de solo, com Flávia Saraiva ficando com o bronze (um pódio duplo brasileiro no solo, algo inédito); já na trave de equilíbrio, Rebeca ficou com o bronze, atrás da chinesa Zhou Yaqin e de Biles, novamente com ouro; além da prova por equipes, no qual a seleção brasileira conseguiu feito histórico com o segundo lugar, atrás somente dos Estados Unidos. No total, Rebeca recebeu 5 medalhas, sendo 1 ouro, 3 pratas e 1 bronze. Apesar da concorrência entre as duas, não se estabeleceu um clima de rivalidade ou adversidade, muito pelo contrário, as imagens e as falas demonstram respeito e carinho mútuo entre estas gigantes da ginástica.

Rebeca Andrade bate recorde de medalhas no Mundial de Ginástica Artística com 5 pódios | Foto: Ricardo Bufolin/CBG

Um pódio inédito

Em contradição ao ocorrido no evento de ginástica na Irlanda, neste Mundial de Ginástica ocorreu um pódio inédito. No individual geral, além do ouro de Simone Biles, a prata de Rebeca Andrade, tivemos um bronze para outra jovem negra, Shilese Jones, dos Estados Unidos. Um pódio formado totalmente por mulheres negras num Campeonato Mundial de Ginástica Artística foi a melhor resposta contra o racismo que ainda impregna não só o mundo da ginástica ou dos esportes em geral, mas a toda a sociedade.

Em 1936, o corredor Jesse Owens desafiou Hitler nos Jogos Olímpicos de Berlim ao quebrar, na prática, a tese eugenista de supremacia física da raça ariana, com a conquista de 4 medalhas de ouro. Assim como a pequena ginasta de Dublin, Owens foi desprezado em seu pódio pelo ditador alemão. Anos depois, o atleta negro declarou que há dez segundos da chegada, quando o corredor deve atingir a sua máxima potência, não estava preocupado com o que Hilter pensava. Owens tinha razão! Os atletas negros não precisam se preocupar com as ideias eugenistas e racistas, pois no limite de condicionamento físico do corpo humano, a existência ou não de melanina na epiderme não faz a menor diferença, mas a garra, a superação da dor, a vontade de vencer, sim!

Basta de racismo!

Quando soube do caso de racismo com a jovem ginasta de Dublin, Simone Biles enviou-lhe um vídeo de solidariedade no qual afirmou que o racismo não deve ter lugar no esporte. Nem no esporte e nem no mundo, afirmamos! Mas, ainda que um mundo sem racismo esteja distante, Simone e Rebeca o tornaram mais próximo com o seu desempenho ginástico! Provaram ao mundo, assim como Owens a Hitler, que as mulheres negras podem tudo!