Marcos Margarido, de Campinas (SP)
Apenas 48 horas após anunciada, a Superliga de Futebol da Europa desmanchava-se no ar. Os principais times da Europa fariam parte deste novo campeonato, entre eles os três grandes da Espanha – Real Madrid, Barcelona e Atlético -, os seis da Inglaterra – Liverpool, Manchester United, Manchester City, Chelsea, Arsenal e Tottenham –, e três da Itália – Milan, Internacional e Juventus. Outros supertimes, como o Bayern e o PSG, preferiram ficar de fora.
A ideia de criar um campeonato dos times europeus de elite não é nova, mas nunca foi levada à frente. Dessa vez, porém, a queda de arrecadamento dos clubes devido à pandemia e as dívidas milionárias de alguns clubes, principalmente Barcelona e Real Madrid, forçaram a tomada de decisão.
A Superliga seria composta por 15 clubes permanentes e mais 5 seriam convidados a cada ano. Não haveria ascenso nem descenso, e o grande atrativo seria a renda vinda dos contratos de transmissão e patrocínios. Isso provocaria o esvaziamento financeiro da Liga dos Campeões da Europa (a Champions League), pois estes clubes não participariam, e dos campeonatos nacionais, mesmo que eles participassem. Seria o colapso da vasta rede de clubes menores que dão sustentação a estes campeonatos, e que dependem das verbas de transmissão e de publicidade.
O anúncio oficial de criação da Superliga foi feito simultaneamente nos sites dos 12 clubes, no domingo, 18 de abril, às 11 horas da noite. Mas, como disse o diretor de um dos clubes, às 11h10 da noite ela tinha morrido afogada. O plano já era conhecido pelos dirigentes do futebol, como a Fifa e a Uefa, e a ideia de que o projeto era motivado pela ganância dos clubes mais ricos já estava na boca do povo.
Futebol e oligopólio
Mas, a ideia não era dos dirigentes dos clubes, e sim de seus donos. Surgiu uma aliança improvável entre fundos de investimentos norte-americanos (JPMorgan), oligarcas russos, magnatas industriais europeus e a realeza árabe com o objetivo de criar um oligopólio de futebol. Já não bastava a concentração do capital vindo do esporte mais lucrativo do mundo. Estava na hora de sua centralização, isto é, mais capital nas mãos de menos capitalistas.
Esta aliança estava personalizada no italiano Andrea Agnelli, presidente do Juventus da Itália e herdeiro de uma das maiores famílias de industriais da Europa; Joel Glazer, dono do Manchester United e também do Tampa Bay Buccaneers, time campeão de futebol americano da última temporada; Roman Abramovich, dono do Chelsea e oligarca russo; Stan Kroenke, dono do Arsenal e de uma dúzia de times profissionais; o Xeique Mansour bin Zayed al-Nahyan, dono do Manchester City e membro da família real de Abu Dhabi; e o bilionário John Henry, do Liverpool.
O plano, na verdade, havia sido escondido de jogadores, equipes técnicas, funcionários e até dos altos executivos dos clubes (sempre com exceções, é claro). Como um deles disse, “isso é coisa dos proprietários”. E, obviamente, das torcidas.
Por isso, a explicação dada por Florentino Pérez, presidente do Real Madrid e um dos “cérebros” da ideia, em entrevista arranjada na TV espanhola, não enganou ninguém. Segundo ele, o futebol é como uma pirâmide, onde o dinheiro feito pelos grandes clubes, no alto da pirâmide, espalha-se para baixo e toda a base da pirâmide se aproveita. Era tudo feito para “salvar o futebol”. Só não conseguiu explicar como isso aconteceria, pois os grandes times teriam contratos exclusivos com as transmissoras e patrocinadores. E dinheiro garantido para dar o pontapé inicial do campeonato, que seria financiado pela consultoria espanhola Key Capital Partners e pelo banco norte-americano JPMorgan. Todo mundo de olho nos lucros que tal campeonato poderia dar.
Cortes para os mágicos da bola
Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar, Lewandovsky… ganham fortunas com sua arte. Mas isso é apenas um sintoma da transformação de um esporte que era uma mercadoria de consumo popular para outra de consumo de luxo. Pagar ingresso para ver seu time jogar é, hoje, um privilégio para poucos.
Porém, os clubes da extinta Superliga queriam resolver isso à maneira capitalista. No contrato assinado entre eles havia uma cláusula de limite de gastos que iria, é claro, resultar em cortes de salários dos jogadores (se é que se pode chamar assim o que eles recebem) e em negociações de contratação com valores bem mais baixos. Isto é, enquanto reduziam custos, aumentavam as receitas com publicidade em geral, venda de direitos de transmissões e, certamente, aumento dos preços dos ingressos.
Como esses clubes formariam um oligopólio do futebol mundial, ocorreria uma desvalorização geral. Os rebaixamentos “salariais” e de negociações de contratação seriam estendidos a todos os países. Os “preços” dos jogadores estrangeiros cairiam ainda mais e seria muito mais barato levar nossos jogadores para a Europa. A situação do futebol brasileiro e de outros países semicoloniais da América do Sul, ainda uma das principais fontes de craques do mundo, seria a de terra arrasada.
Da mesma forma, os salários locais seriam menores, aumentando a terrível situação em que a maioria dos jogadores vive. Segundo uma pesquisa realizada pela consultoria Esporte Executivo, em maio de 2020, 75% dos jogadores brasileiros recebem salários abaixo de R$ 7 mil mensais. Destes, a maior parte (38% do total) ganha até R$ 2 mil reais, e 37% entre R$ 2 mil e R$ 7 mil mensais. Apenas 10% dos atletas do futebol brasileiro recebem mais de R$ 40 mil mensais. Tudo muito longe do mundo futebolístico que vemos pela TV.
A reação veio logo
Os presidentes dos atuais “donos” do futebol mundial, Uefa e Fifa, já sabiam dos planos dos clubes e moveram-se rapidamente para destruí-los. Ceferin e Gianni Infantino não podiam permitir que sua galinha de ovos de ouros fosse roubada pelos clubes “traidores”. Afinal, milhões (ou bilhões, nunca saberemos) de dólares estavam em jogos e precisavam defender o futebol mundial da ganância de poucos. É meio como deixar a raposa cuidar do galinheiro.
Mas, utilizaram os mesmos métodos daqueles que combatiam, tudo foi feito em segredo, em seus confortáveis escritórios na Suíça. Conversaram com políticos, como Boris Johnson da Inglaterra e Macron da França, com os presidentes dos outros clubes, a Fifa ameaçou os clubes envolvidos com o banimento de seus jogadores das seleções nacionais, inclusive os estrangeiros. Mas a resposta foi que os contratos que os clubes assinaram para a formação da Superliga eram vinculatórios, milhões de euros em multas seriam aplicados aos desistentes e que, com o tempo, tudo se arranjaria, pois era um bom negócio para todos.
A reação definitiva e que enterrou a Superliga veio de baixo, veio dos torcedores, principalmente na Inglaterra. Os torcedores do Liverpool e do Chelsea começaram a se reunir em frente a suas arenas, pendurando faixas nos muros e portões de entrada de jogadores e funcionários, que denunciavam a Superliga. Um deles dizia: “Somos torcedores, não clientes”. Quando o ônibus do Liverpool deixava o local para jogar em Leeds, foi cercado pela torcida. Para nós, um fato corriqueiro, mas raro na Inglaterra.
No estádio do Chelsea, centenas de torcedores protestaram quando o time saiu para jogar com o Brighton. Bloquearam ruas e cercaram o ônibus dos jogadores. E isso quando a Inglaterra passa por uma pandemia e por uma onda de protestos populares contra um projeto de lei que… proíbe protestos.
Muitos jogadores e técnicos, provavelmente encorajados pela torcida, começaram a se manifestar. Pep Guardiola, técnico do Manchester City, disse que “não é esporte se você não pode perder”. Um atacante do Manchester United, Rashford, tweetou que “futebol não é nada sem os torcedores”. Todo o time do Liverpool escreveu uma mensagem desaprovando o projeto.
Lágrimas de crocodilo
Um a um, os clubes começaram a se retirar do projeto, esquecendo-se do tal contrato vinculatório. E vieram os pedidos de desculpas, algo como chorar em leite derramado.
O bilionário dono do Liverpool afirmou: “Desculpem-me, sou o único responsável pela desnecessária negatividade ocorrida nos últimos dois dias; é algo que não vou esquecer”. O igualmente bilionário dono do Manchester United disse que “fizemos tudo errado e queremos mostrar que podemos consertar” mesmo sabendo que levará um bom tempo para cicatrizar as feridas. E para “mostrar” isso, demitiu Woodward, seu executivo-chefe, que deixará o clube no fim do ano. A corda arrebentou no lado mais fraco…
Até o porta-voz do JPMorgan, o banco financiador do projeto, desculpou-se, dizendo que: “Nós claramente julgamos erroneamente como este acordo seria visto pela comunidade mais ampla do futebol e como poderia afetá-la no futuro. Vamos aprender com isto“. Ou não entendem nada de futebol (o que é verdade), ou não entendem nada de planejamento (o que também deve ser verdade). Nós, trabalhadores, sabemos muito bem como os bancos fazem seu dinheiro. São como vampiros chupando nosso sangue e nosso suor.
A Superliga europeia está morta, mas não enterrada. Pode surgir como os mortos-vivos no futuro, como zumbis tentando se alimentar do esporte mais popular do planeta e que é, para a maioria dos trabalhadores e trabalhadoras, seu único passatempo, sua única possibilidade de viver com emoção, sua única porta para um mundo, mesmo que ilusório, de alegria pelas vitórias e tristeza pelas derrotas. Não deixemos que meia-dúzia de vampiros roubem nossos sonhos.