Sem-tetos dormem em estação de metrô em SP Foto Gov/SP

A onda de frio que atingiu os estados do Sul, Centro-Oeste e Sudeste na última semana surpreendeu e assustou muita gente. Afinal, em Cuiabá temperatura abaixo dos 10ºC foi registrada. Dezenove de maio ficou marcado como o dia mais frio da história do Distrito Federal, com 1,4ºC. Goiânia registrou 5ºC, a temperatura mais baixa para o mês de maio desde que as medições começaram a ser feitas, nos anos 1960. E no Acre a temperatura mais baixa foi de 13,6ºC, um verdadeiro frio polar para quem está habituado ao calor tropical amazônico. No Rio de Janeiro a temperatura chegou aos 11ºC, e em São Paulo a sensação térmica ficou abaixo de zero em muitas partes da cidade.

Muito além dos feios bonecos de neve de Santa Catarina e a enxurrada de memes nas redes sociais, o fato é que a onda de frio foi extremamente cruel com a população mais pobre, que é obrigada a viver em condições de extrema precariedade. Pelo menos dois moradores de rua morreram de frio na Grande São Paulo. E o pior de tudo é que o inverno nem começou, e provavelmente sofreremos com novas ondas de frio até julho.

Um fenômeno natural?

A onda de frio foi provocada pelo deslocamento de uma massa de ar polar vinda do sul. Tal fenômeno estava acoplado à passagem de um ciclone extratropical, o que trouxe umidade e possibilitou a ocorrência de eventos como queda de neve.

O fenômeno em si não é algo novo e ocorre com bastante frequência. O que chamou a atenção, porém, foi a sua intensidade, incomum no outono. Segundo os meteorologistas, isso ocorre devido ao fenômeno La Niña, uma anomalia climática, que acontece, em média, com um intervalo de dois a sete anos e provoca alterações significativas nos padrões de chuva e temperatura ao redor da Terra.

La Niña é um fenômeno oceânico-atmosférico caracterizado pelo resfriamento anormal das águas superficiais do Oceano Pacífico Equatorial. Ninguém sabe ao certo o porquê desse resfriamento, mas o fenômeno provocou as fortes chuvas que ocorreram no início do ano no Sudeste do país. Também explica a forte onda de calor que se abate hoje na Índia.

A previsão era de que o La Niña perdesse a intensidade e terminasse em abril, mas não é o que está acontecendo. O fenômeno está com uma duração excepcional e mais intenso em décadas. O mais provável é que o La Niña se estenda ao logo do inverno, conforme divulgou em boletim a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA, na sigla em inglês). As chances são de 61%, segundo a agência norte-americana. O que significa mais frio intenso, agravando problemas sociais e até ameaçando cultivos agrícolas.

Esse comportamento tem surpreendido os cientistas. Muitos não descartam a influência das mudanças climáticas, cujo um dos resultados é exatamente a intensificação de fenômenos climáticos extremos, como ondas de calor, de frio, chuvas torrenciais etc.. No entanto, apenas a rigorosa observação e a metódica análise científica poderão confirmar essa associação no futuro.

Vulneráveis

O frio e a realidade social brasileira

Uma rigorosa onda de frio pode até ser considerada um “fenômeno natural”, ou seja, além do alcance do controle humano – embora, como salientamos, possa estar ligada às mudanças climáticas provocadas pelo capitalismo. Contudo, o que não é natural são pessoas morrendo de frio nas ruas das grandes cidades. Isso está relacionando à realidade do país e sua profunda desigualdade social. Se uma seca intensa pode ser provocada por um fenômeno natural, ao ponto de afetar a produção de alimentos, a fome, por sua vez, é um fenômeno social, relacionado à forma como uma sociedade produz seus meios de subsistência, aloca e distribui seus recursos, e sobre qual classe social se apropria do excedente produzido. Numa sociedade capitalista, onde uma pequena parte da sociedade se apropria da riqueza produzida pela maioria, as secas e a fome são uma grande oportunidade para alguns poucos venderem comida mais cara, pagar salários mais baixos, aprofundar a concentração agrária etc..

Morando nas ruas

A expectativa de frio extremo vai afetar um contingente de brasileiros que vivem em barracas nas avenidas, debaixo de marquises e viadutos, muitas vezes famílias inteiras com crianças. Em 2020, antes da pandemia, mais de 220 mil brasileiros viviam em situação de rua em todo o país, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Mas é visível aos olhos de todos que esse número explodiu com a crise e a pandemia. Só na cidade de São Paulo esse crescimento foi de 31%.

Moradias precárias

Além desses, há outro contingente de brasileiros que vive em moradias precárias. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), antes da pandemia, havia 5,1 milhões de domicílios em situação precária no país, o que compreende um universo de pouco mais de 20 milhões de pessoas, a maioria formada por mulheres (60%). Obviamente, esse número é hoje bem maior devido à crise social, com a explosão do desemprego, da inflação e da violência machista. São pessoas que não tiveram outra alternativa senão viver em favelas, barracões de madeira ou de lonas, com chão de terra batida que expõe seus moradores a temperaturas baixas e a doenças de inverno, tais como gripes, pneumonias e tuberculose, além da covid.

Toda essa população vai precisar de proteção imediata e medidas emergenciais para enfrentar o rigoroso inverno que se anuncia. É preciso exigir dos governos desde já! Sofrer ou morrer de frio não é algo natural. O frio só escancara ainda mais a nossa imensa desigualdade social.