Governador de SP, Tarcísio Freitas. Foto Divulgação
Israel Luz, de São Paulo (SP)

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicamos) já tem uma chacina para chamar de sua. A busca dos responsáveis pela morte do soldado da famigerada Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA), da Polícia Militar, Patrick Reis, em 27 de julho, está servindo como pretexto para o governador e seu secretário de Segurança, Guilherme Derrite (policial militar, filiado ao Partido Liberal, de Bolsonaro) promoverem uma matança indiscriminada na periferia do Guarujá e de Santos, no litoral paulista.

Já são 16 mortes e inúmeras denúncias de abusos, invasão de moradias, torturas e repressão generalizada. E, apesar de quatros suspeitos já terem sido presos, a chamada Operação Escudo continuará por mais 30 dias. O anúncio do governo é uma verdadeira ameaça aos trabalhadores e suas famílias.

Operação não… É chacina!

O governo paulista repete o que se tornou padrão: após a morte de um policial, o Estado responsabiliza indiscriminadamente os moradores da periferia e as forças policiais agem como “vingadores” e não força de segurança. Foi assim nos ataques do PCC, em 2006; na Chacina de Osasco e Barueri, em 2015; e no baile da DZ7, em Paraisópolis, em 2019.

No episódio de 2006, que ficou conhecido como os “Crimes de Maio”, policiais e grupos de extermínio reagiram à morte de 59 agentes de segurança pelo PCC.  Nada menos que 505 pessoas foram assassinadas entre os dias 12 e 21 daquele mês.

Uma das vítimas, Ana Paula Gonzaga dos Santos, era moradora de Santos e estava grávida de nove meses. Ao sair com o marido, Eddie Joey de Oliveira, para ir à padaria, foram atacados por um grupo encapuzado. Eddie gritou que era trabalhador e Ana Paula se pôs à frente, talvez imaginando que não atirariam nela. Um tiro pegou no braço e ela caiu.

Em seguida, um matador a levantou do chão com uma gravata. Ela acabou tirando o capuz dele e o reconheceu como policial. Foi atingida por um tiro na cabeça. Ao se debruçar sobre o corpo da esposa, Eddie foi alvejado nas costas e na cabeça. Por fim, um dos assassinos atirou na barriga de Ana dizendo “filho de bandido, bandido é”. O casal não tinha qualquer envolvimento com o PCC.

Até hoje os “Crimes de Maio” não foram solucionados. Na época, o governador era Claudio Lembo, vice do hoje vice-presidente Geraldo Alckimin, que, então, havia renunciado para concorrer à Presidência.

Agora, na Baixada Santista, a história se repete com os mesmos requintes de crueldade. Exemplo disto foi a assassinato do vendedor ambulante Felipe Vieira Nunes, 30 anos, no dia 29, morto com nove tiros. Há inúmeros relatos de moradores que ouviram seus gritos durante uma sessão de tortura e seu cadáver foi encontrado com queimaduras de cigarro por todo o corpo, além de um ferimento na cabeça e um corte no braço.

Além disso, no domingo, dia 30, nove moradores da comunidade Pantanal denunciaram o assassinato de William, um conhecido morador de rua da região, encurralado em uma viela e executado com tiros de fuzil. No mesmo dia, Mateus, outro jovem em situação de rua, desapareceu.

Eles querem sangue. E, de preferência, sangue negro

Como se vê, toda a população periférica paga indiscriminadamente. O Estado não vai atrás de justiça, mas de pura e simples vingança. Obviamente, os governantes buscam esconder esta realidade e um dos procedimentos mais comuns, sempre, é apontar que os chacinados possuíam antecedentes criminais. Para isso, recebem a ajuda da imprensa empresarial, que repete à exaustão este dado como, se por si só, legitimasse as execuções.

Aí, temos o que pode ser chamado de “segunda morte” das pessoas. Não importa se é simplesmente inocente, se já respondeu por seus eventuais delitos ou se não deve mais nada e está tentando reconstruir a vida. Para a polícia, é um bandido. E, “bandido bom, é bandido morto”. Versão que acaba sendo legitimada pela imprensa.

É justamente o que relatos de moradores do Guarujá têm apontado:  “ter passagem” é um critério para ser alvo da vingança oficial. Este foi o caso de Felipe Vieira Nunes, mencionado acima.

Pai de uma menina de 6 anos, ele foi abordado na esquina de casa por soldados da ROTA, que o levaram para dentro de um barraco de onde não saiu com vida. Testemunhas afirmam que os policiais gritavam para Felipe largar a arma, enquanto ele respondia que não estava armado. O boletim de ocorrência na Delegacia da Polícia Civil de Guarujá, evidentemente, registra somente a versão dos agentes.

A Chacina do Guarujá acontece no momento em que os dados oficiais mostram um aumento da letalidade policial em São Paulo. De acordo com a própria Secretaria de Segurança Pública do Estado, houve um aumento de 26% no número de mortes provocadas por policiais militares em serviço durante o primeiro semestre deste ano. Esse cenário não é surpreendente, já que o Secretário de Segurança já demonstrou ser a favor da política do confronto.

Anos atrás, Derrite, aliás, ficou conhecido por um áudio em que afirmava ser “vergonhoso” para um policial não se envolver em pelo menos três mortes em cinco anos. Outro episódio que marca a trajetória do ex-policial da ROTA foi a calúnia contra o encanador Ismael Moreira, morto em fevereiro de 2020, em uma ação irregular da PM na favela do Flamenguinho (Osasco).

O trabalhador tinha ido comprar leite, próximo de casa, quando foi atingido no olho por um policial que perseguia um suspeito. Derrite tuitou na época “um criminoso acaba de trocar tiros com a PM e vai curtir o CARNAVAL NO INFERNO”. Mesmo depois de comprovado que se tratava de uma mentira, o hoje Secretário jamais se retratou publicamente e chegou a ser condenado a indenizar a família do trabalhador por calúnia e difamação.

Já no cargo atual, o Secretário questionou o uso das câmeras corporais e afirmou no programa “Roda Viva” que a polícia não é racista, se utilizando de um argumento deplorável: “A polícia combate o crime. Agora se dentro do número de criminosos detidos pela polícia ou que acabam lamentavelmente entrando em confronto com a polícia, a maior parte deles pertence a um determinado grupo […] isso foge da alçada da polícia”.

Ou seja, se a polícia enquadrou ou matou, para o Secretário, com certeza são criminosos. E se por pura coincidência (!) essas pessoas são negras, o Estado nada tem a ver com isso. É o tipo de raciocínio cinicamente racista.

Uma política de Estado

O genocídio racista é uma política do Estado brasileiro. É isso o que explica porque diferentes governos, sejam mais à esquerda, sejam mais à direita, não mudam, fundamentalmente, o padrão de atuação das forças repressivas.

Na Bahia, por exemplo, governada pelo PT há 16 anos, os dados apontam a existência da polícia militar mais letal do Nordeste. Segundo relatório de 2022 da Rede de Observatórios de Segurança, a cada 100 mortos pelas forças baianas, 98 são negros e, lá, somente no ano passado, a PM matou 1.464 pessoas, representando 22,7% do total das 6.430 mortes registradas no país.

Quem governava o estado até o início de 2023 era Rui Costa, atual Chefe da Casa Civil da gestão Lula, que, quando questionado sobre a ação policial conhecida como “Chacina do Cabula”, em 2015, na qual 12 pessoas negras morreram com tiros na nuca, afirmou: “É como um artilheiro em frente ao gol”.

Uma lógica burguesa que se repete, agora, sob o governo do também petista Jerônimo Rodrigues. Basta lembrar que somente entre a sexta-feira (28) e a segunda (1°), o estado registrou 19 mortes causadas por intervenções policiais em Salvador, Itatim e Camaçari.

Em São Paulo, a operação no litoral será uma peça de propaganda para o Governo Tarcísio. Para ele, quanto mais sangue periférico melhor: mais o bolsonarismo poderá apresentar tudo isto como um grande sucesso na suposta guerra às drogas, como o governador vem repetindo à exaustão, dizendo que está “extremamente satisfeito” com o que está ocorrendo no Guarujá e qualificando as denúncias como “narrativas” elaboradas por bandidos.

E isto até que o cálculo político do governo indique ser necessária uma nova chacina, algo que podemos esperar com certeza, já que, completamente protegidos nos seus gabinetes, Tarcísio e Derrite arriscam as vidas das populações periféricas e até mesmo dos policiais.

A violência sistemática do Estado, que, invariavelmente tem um viés racista, é consequência direta da concentração de poder nas mãos de uma minoria rica e branca. Enquanto os membros da elite tiverem a caneta e o gatilho nas mãos, a próxima chacina será questão de tempo.

Por isso a Segurança Pública precisa ser controlada pela classe trabalhadora e pelo povo pobre e oprimido, com medidas que devem começar pela desmilitarização das polícias militares (inaceitáveis entulhos da ditadura) e incluírem a eleição democrática de comandantes civis nos bairros, por exemplo.

E mais: temos certeza que só haverá segurança e justiça, de fato, quando os trabalhadores e trabalhadoras tiverem o poder econômico e político em suas mãos, numa sociedade socialista, em que conselhos populares deliberem como e com quem a segurança pública deve ser organizada.

O assassinato coletivo, que mata corpos e reputações, também visa matar a coragem de resistir e lutar por uma sociedade como esta. Não poderia ser diferente em um país e num sistema nos quais a classe trabalhadora e o povo pobre, periférico e negro sofrem com condições de vida absurdas. O recado é: “Engulam suas reclamações, aceitem a vida como ela é, ou morram”.

Já não chegou a hora de perder a paciência?