Dr. Ary Blinder, médico do SUS em São Paulo (SP)

A CPI do Senado sobre a Covid trouxe à tona vários temas, desde a corrupção na compra das vacinas pelo Ministério da Saúde, passando pelas “fake news”, promovidas por blogueiros bolsonaristas, chegando às graves denúncias contra a Prevent Senior, um plano de saúde privado focado no atendimento de pessoas com idade mais avançada.

Todos os fatos levantados pela CPI têm uma coisa em comum: a política desenvolvida pelo governo Bolsonaro e seus seguidores, que desde o início da pandemia traçaram um roteiro que não tem outro qualificativo que não seja o de genocídio consciente.

A verdade é que, se este governo tivesse aplicado uma política correta de combate à pandemia, o Brasil não teria uma média de casos e mortes 4,61 vezes maior do que a média mundial. No lugar dos 600 mil mortos por Covid, oficialmente registrados, teríamos algo como 130 mil óbitos.

Políticas propositalmente genocidas

Podemos estimar, apenas baseados nas estatísticas oficiais, que, desde o início da pandemia, 470 mil pessoas morreram em função de políticas governamentais como as seguintes: subestimar a Covid, lutar ativamente contra as medidas de distanciamento social, boicotar o uso obrigatório de máscaras, ter uma baixíssima disponibilização de testagem, resistir à concessão de auxílio financeiro para permitir que trabalhadores e trabalhadoras ficassem em casa, demorar e usar da corrupção na compra de vacinas, se negar em lutar na Organização Mundial do Comércio (OMC) pela quebra das patentes das vacinas e apelar à grosseria xenofóbica contra a China para tentar desqualificar a Coronavac, dentre muitas outras ações.

O objetivo de Bolsonaro era atingir a famosa “imunidade de rebanho”; ou seja, deixar os casos se espalharem na população que “naturalmente” alcançaria um ponto de saturação, fazendo com que a epidemia abrandasse e, talvez, desaparecesse. Isso resultou em milhares de mortes desnecessárias, mas também em outro problema grave: as sequelas físicas e mentais, deixadas pela Covid, que, agora, milhões de pessoas que foram contaminadas estão apresentando.

Lucro acima da vida

Kit-Covid para diminuição de custos

“Kit Covid” distribuído pela Prevent Senior

Uma das bases de aplicação destas políticas genocida foi o uso das “fake news” para divulgar um pretenso tratamento precoce da Covid-19. Foi criado até um “Kit-Covid”, composto por Cloroquina, Ivermectina e Azitromicina, e feita uma extensa propaganda nas redes sociais bolsonaristas de sua suposta eficácia.

Até hoje, há defensores do uso deste “kit”, por mais que ele tenha sido fortemente desaconselhado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por diversos trabalhos científicos ao redor do mundo. Além de não protegerem ou curarem, os medicamentos que compõe o “kit” possuem potenciais efeitos colaterais que podem ser danosos aos usuários. No caso da Cloroquina, preocupam os efeitos cardiológicos; no caso da Ivermectina, os efeitos tóxicos sobre o fígado; e, no que tange à Azitromicina, o desenvolvimento de resistência bacteriana pelo uso excessivo deste antibiótico.

Negacionismo e falta de ética a serviço do lucro

É aí que entra a Prevent Senior, um plano de saúde privado que teve crescimento intenso nos últimos anos. Bem no início da pandemia, ocorreram várias mortes em um dos hospitais da Prevent. Logo em seguida, a direção da empresa promoveu uma política de pressionar seus médicos a usarem o Kit-Covid e chegaram ao cúmulo de enviar o “kit” para a casa dos pacientes com Covid-19. Para piorar, fizeram uma suposta “pesquisa” (sem critérios científicos sérios) para provar a eficácia deste tratamento precoce.

Essa pesquisa foi muito divulgada pelas redes sociais bolsonaristas, com o objetivo de retardar a compra de vacinas e de boicotar as políticas de distanciamento social promovidas por estados e municípios. Esse levantamento foi uma total quebra de qualquer paradigma científico, pois metade dos participantes sequer foi consultada se queria ou não fazer parte do experimento.

O boicote ao distanciamento social se dava para garantir que a economia funcionasse normalmente, à custa do adoecimento e da morte de centenas de milhares de brasileiros. É claro que, havendo remédios que pretensamente combatessem ou atenuassem a gravidade da Covid-19, os trabalhadores poderiam ir trabalhar normalmente, usar os meios de transporte públicos sem medo de aglomerações, consumir tranquilamente nos supermercados e frequentar estádios de futebol ou espetáculos musicais.

A falta de ética na Prevent (e também na Hapvida, uma das maiores empresas de saúde, com principal base na região Nordeste do Brasil) chegou ao ponto de não colocarem o diagnóstico de Covid-19 nos atestados de óbito de vários pacientes que morreram devido ao vírus. Procedimento adotado até mesmo com conhecidos bolsonaristas, como no caso da mãe do empresário Luciano Hang (o véio da Havan) e do médico Antony Wong.

Alta por mortes

Este emaranhado de fatos foi denunciado à CPI pela advogada Bruna Morato e ratificado pelo médico Valter de Souza Neto e por um ex-cliente da Prevent, Tadeu de Andrade. O médico reafirmou a acusação de obrigatoriedade do uso do “kit”, além da falta de materiais de proteção para os trabalhadores da saúde no início da pandemia. Foi relatado, inclusive, que profissionais doentes foram obrigados a atender pacientes.

No caso do ex-cliente, a acusação é de que a Prevent tentou fortemente induzir a família a autorizar a colocá-lo em cuidados paliativos; ou seja, o tratamento deixava de ter como objetivo curar o paciente e passava a ser só para aliviar os sintomas de sofrimento, aguardando sua morte. A família não aceitou o tratamento paliativo (que chegou a constar no prontuário do paciente) e Tadeu de Andrade sobreviveu para contar a história.

Falácia

Não era autonomia médica, mas assassinato premeditado

Na CPI, também foram narrados alguns mecanismos de gestão de pessoal da Prevent, inclusive um hino da empresa com clara inspiração fascista. Tudo para criar um ambiente de alta produtividade e a obediência cega dos profissionais. O curioso é que, agora, a empresa se defende usando o argumento da “autonomia médica” para explicar o uso indiscriminado do Kit-Covid. Segundo este argumento, o médico pode prescrever o que quiser se, em sua experiência, tiver tido bons resultados com determinados procedimentos.
Este argumento é claramente falacioso, pois não se trata de uso de procedimento inofensivo (sem efeitos colaterais) e, sim, de procedimento condenado pela OMS e renomados centros de pesquisa do mundo todo. E o argumento é ainda mais falacioso porque, na realidade, quem perdeu claramente sua autonomia foram os médicos obrigados, pela Prevent, a prescrever o Kit-Covid contra sua vontade. Neste caso especifico, o Conselho Federal de Medicina (CFM) deixou de zelar pela autonomia médica e de zelar pela saúde da população brasileira, descumprindo claramente suas funções determinadas legalmente.

Bolsonaro e Queiroga

O que está ruim sempre pode piorar

Por fim, não é possível deixar de citar mais algumas novidades do universo Bolsonarista. Queiroga, cada vez mais ameaçado de perder o cargo de ministro, passou a defender a posição contrária ao uso de máscaras, para agradar o presidente. Chegou a comparar o uso de máscaras com o de preservativos, o que beira o ridículo.

A Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) também denunciou como grave infração ética a pesquisa clínica feita com a Proxalutamida, medicação usada no câncer de próstata. Esta substância foi usada em um experimento feito na Amazônia, com portadores de Covid, novamente sem critérios éticos e científicos e foi patrocinada pela rede de hospitais privados Samel. Entre os vários procedimentos duvidosos, o que chama mais atenção foi o de continuar recrutando voluntários para a pesquisa apesar do grande número de óbitos constatados. É importante assinalar que esta medicação também foi exaltada por Bolsonaro em suas “lives” e, finalmente, teve seu uso proibido em pacientes de Covid pela Anvisa.

O que fazer?

Punição aos responsáveis, expropriação e estatização da Prevent Senior

Frente a todos estes escândalos, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aventou a possibilidade de uma intervenção para “acompanhar” os procedimentos da Prevent e sua forma de gestão. É obviamente muito pouco frente aos fatos escandalosos denunciados. É necessária uma intervenção mais firme, que caminhe para uma auditoria rigorosa da forma de funcionamento e gestão desta empresa e culmine na sua expropriação, estatização e gerenciamento através do Sistema Único de Saúde, para o bem da saúde de seus usuários. Durante a auditoria, os direitos dos clientes devem ser integralmente garantidos.
É preciso, também, que, se forem comprovadas as acusações, os proprietários e gestores da alta cúpula da empresa sejam encaminhados para julgamento e punidos exemplarmente.

As conclusões que podemos tirar destes verdadeiros absurdos são de que, em primeiro lugar, a verdadeira ciência não pode ser influenciada por ideologias ou vertentes políticas. Ela tem seus métodos próprios que foram forjados em centenas de anos de experimentos. Em segundo lugar, a ideologia de que o capitalismo traz progresso científico graças à competição é de uma falsidade atroz. Os donos da Prevent Senior e da Hapvida, que fazem parte da nata da burguesia brasileira e enriqueceram muito no decorrer da pandemia, estão aí para mostrar que capitalismo não rima com saúde pública.

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