Rodrigo Ricupero, Professor Doutor do Departamento de História da Universidade de São Paulo.

A morte do historiador Boris Fausto ocorrida no último dia 18, com 92 anos de idade, ganhou destaque na grande imprensa brasileira. Professor aposentado da Universidade de São Paulo, filho de uma família de imigrantes judeus, formado em Direito e História e autor de diversos livros, Boris Fausto foi retratado como um dos mais importantes historiadores brasileiros.

Boris Fausto, como tantos intelectuais brasileiros nascidos na primeira metade do século XX, desenvolveu uma militância na esquerda brasileira, no caso no trotskismo, tendo posteriormente caminhado para a direita. Dessa forma, se tanto pela sua trajetória política, como pelo conjunto da sua obra, ainda que marcada por uma certa “herança marxista”, em maior ou menor medida, especialmente em seus trabalhos mais antigos, não permitem que Boris Fausto possa ser considerado um historiador de esquerda. No entanto, a leitura de seus livros continua sendo relevante para todos aqueles que, sob uma perspectiva de esquerda, buscam compreender a história do Brasil, especialmente durante a primeira metade do século XX. Neste sentido, aqui vamos destacar três livros que nos parecem mais significativos.

Revolução de 1930: a formação de um “estado de compromisso”

Em “A Revolução de 1930”, publicado em 1970, o autor vai apresentar uma visão distinta da interpretação até então hegemônica na esquerda brasileira, que apontava uma oposição entre um setor agrário conversador, até feudal, e, por outro lado, um setor industrial progressista. A partir desse dualismo, o PCB articularia sua política de apoio à burguesia, que formaria com os trabalhadores um campo progressista em oposição ao setor agrário e o imperialismo, era enfim a tese da revolução por etapas, em que uma revolução burguesa deveria ocorrer antes da revolução proletária. Anos mais tarde, essa política equivocada contribuiu para desarmar a esquerda brasileira, favorecendo o golpe de 1964.

Para Boris Fausto, ainda que a revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, tenha posto fim ao predomínio da “burguesia cafeeira”, tal fato não se devia a uma oposição do setor industrial, pois dada as características da formação brasileira, existia uma complementariedade entre os interesses dos dois setores burgueses, agrícola e industrial. Por outro lado, a incapacidade das diversas frações de classe burguesas de dirigir o país isoladamente teria levado a formação de um “estado de compromisso”, dessa forma o novo governo poderia ser definido como uma “transação no interior das classes dominantes”.

“Trabalho urbano e conflito social”: estudando a classe operária

Em 1976, Boris Fausto publicaria o livro “Trabalho urbano e conflito social”, no qual analisaria a formação da classe operária no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, entre 1890 e 1920, destacando a ação dos sindicatos e do movimento anarquista, que ao recusar a luta política, restringindo a atuação ao nível econômico, teria contribuído para o isolamento do proletariado urbano de origem estrangeira, impedindo uma aproximação com as massas rurais e com setores médios, favorecendo os interesses das camadas dominantes. O isolamento político, a fragilidade de um setor ainda minoritário, a estratégia adotada, combinadas com a ação repressiva estatal e a recusa do Estado em aceitar qualquer participação do movimento operário no “reino fechado das decisões” teria conduzido o movimento a uma derrota, pois os eventuais ganhos de um momento seriam perdidos em seguida, impedindo a consolidação das conquistas das greves.

“Crime e Cotidiano, a criminalidade em São Paulo (1880-1942)”: o controle social das classes dominantes

Em “Crime e Cotidiano, a criminalidade em São Paulo (1880-1942)”, publicado em 1984, o autor trata a questão em um momento de profundas mudanças sociais na cidade, marcado pela abolição da escravidão em 1888 e pela chegada de uma quantidade gigantesca de imigrantes, notadamente italianos, mas também espanhóis, portugueses, judeus, “turcos” entre outros. A análise da criminalidade, como roubos e furtos, homicídios e “crimes sexuais”, bem como da repressão à “vadiagem”, e dos valores sociais, hegemonicamente impostos pelas classes dominantes, na condenação ou na absolvição dos crimes e contravenções, nos permite perceber o papel da polícia e do judiciário no controle social de uma população que nem sempre se mantinha dentro dos quadros prescritos pelas classes dominantes. No caso dos “crimes sexuais” o autor também nos mostra a lógica machista que pautava a relação entre os sexos, cruzando os nexos de classe, raça e sexo, e que impunha uma relação de dominação masculina, imposta pela polícia e pela justiça, sancionada e legitimada pela sociedade da época.

O ponto alto do livro é a descrição de inúmeras situações concretas, que graças a pesquisa nos arquivos da justiça, nos permitem conhecer o cotidiano e as aventuras e desventuras de setores sociais que dificilmente aparecem individualizados nos trabalhos historiográficos, tais como trabalhadores pobres de ambos os sexos, negros e brancos, europeus e brasileiros.

Essa pequena apresentação da obra de Boris Fausto, busca registrar a importância dos trabalhos do autor para o estudo da história do Brasil, em especial nas primeiras décadas da República, destacando ainda a abordagem de temas e setores sociais até então pouco estudados, sem, contudo, apagar as profundas diferenças políticas e as críticas que podem ser feitas a obra de Boris Fausto.