Campanha do Ministério da Saúde

Se, por acaso, cruzarmos com uma propaganda da Campanha Nacional de Doação de Sangue deste ano, talvez fiquemos comovidos com as frases como “Doe sangue regularmente. Tem sempre alguém precisando de você”. E ao lermos “Doar sangue é um ato altruísta e de solidariedade” talvez já estejamos convencidos a irmos ao hemocentro mais próximo para fazer parte desta nobre ação.

O que pode nos pegar de surpresa, no entanto, é o mesmo que surpreendeu o estudante Matheus Pereira, o qual, indo doar sangue que ajudaria sua mãe, foi impedido na entrevista devido ao fato de ser gay. “O que posso dizer é que me senti humilhado, um lixo, porque estava ali por vontade própria para ajudar outra pessoa”, disse [1]. Mas apesar da confusão, se entrarmos no tema mais a fundo começamos a entender não só que não se trata de um caso isolado, mas também os verdadeiros motivos para esse tipo de impedimento.

O que alega a saúde
A Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde e a Resolução da Diretoria Colegiada/RDC nº 34/2014 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) estabelecem a “inaptidão temporária para indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo realizarem doação sanguínea nos 12 (doze) meses subsequentes a tal prática“. Isso na prática inviabiliza a doação de 18,9 milhões de litros de sangue (baseado em dados do IBGE) por um critério homofóbico.

Apesar de ambos os órgão já haverem se pronunciado contra a discriminação pela sexualidade na doação de sangue, entram em contradição ao defenderem a restrição por motivos de “estudos epidemiológicos” nos quais a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) se baseou para incluir homens homossexuais sexualmente ativos entre os “perfis de alto risco” de contaminação por HIV. Apesar de a taxa de homens gays com AIDS ser realmente maior que a de homens heterossexuais, isso é um dado que, isoladamente, não representa nenhuma ligação entre o comportamento homossexual e a presença da doença. O viés desse tipo de justificativa estatística se torna ainda mais evidente ao se considerar que se trata de um grupo muito grande para ser analisado como um todo genérico. E como a restrição na doação se baseia em dados brutos que levam em conta antes a orientação sexual e uma suposta “promiscuidade” inerente à comunidade gay do que realmente o engajamento em comportamentos de risco para a contaminação.

Para se ter uma noção, as restrições atuais permitem que heterossexuais que tenham feito sexo com apenas uma parceira nos últimos 12 meses, mesmo que sem camisinha, possam doar sangue. Enquanto que a restrição a homossexuais nem leva em consideração o uso ou não do que é sabido ser o maior instrumento de prevenção contra a AIDS: o uso de preservativos. Os relatos sobre homens gays que passaram pela triagem para a doação continuam se multiplicando e nos mostram como, no momento da entrevista, as regras usadas na prática para invalidar alguém como doador é a simples menção de ser homossexual. Além do mais, já existem procedimentos capazes de identificar a presença do vírus do HIV que tenha sido adquirido de até 10 a 14 dias antes da coleta (tempo assustadoramente menor do que os 12 meses previstos para a restrição da relação sexual entre homens). E oficialmente, é procedimento padrão e obrigatório realizar o teste com qualquer sangue coletado.

A promiscuidade dos homens gays
Esse tipo de situação nos mostra como a população gay (assim como a LGBT de forma geral) continua sendo vista como vetor de doenças, justificado exclusivamente pela sua orientação sexual. Esse tipo de concepção tem raízes históricas. Antes do capitalismo moderno, homossexuais eram vistos como doentes, cuja sexualidade era considerada uma forma de “punição divina” por grupos religiosos. E se até antes dos anos 1980 a opressão tinha justificativas religiosas, com a década do surto da AIDS a homofobia encontrou ainda mais força também nas justificativas pseudocientíficas para considerar a população gay enquanto doente.

Avanços?
A verdade é que, desde aquela época, pouca coisa mudou, e o Estado, principal órgão defensor da burguesia e do capitalismo, continua a legitimar a violência contra a população LGBT. Através de seus órgãos secundários (como a ONU e a OMS), ele continua encontrando formas de se adaptar às mudanças sem, no entanto, eliminar as opressões racistas, machistas e LGBTfóbicas. Se por um lado realiza alguns aparentes avanços (como a retirada da transexualidade do catálogo de doenças da OMS), por outro, mina a verdadeira chance de libertação das LGBT’s com medidas que cerceiam seus direitos, justificados não pela opressão que o capitalismo necessita para se sustentar, mas por motivos tidos como “científicos”.

Para se conseguir acesso ao acompanhamento pelo SUS para os tratamentos e cirurgias relacionados ao chamado “processo transexualizador” (e até mesmo para a mudança do nome social), ainda é preciso conseguir laudos psicológicos e psiquiátricos alegando se tratar de um(a) “verdadeiro(a) transexual”. Aqui entram todo o tipo de definições arcaicas sobre o que é o feminino e masculino, além de questões sobre sexualidade, que continuam sob o poder e supervisão do “conhecimento” médico. Além disso, a homofobia persiste também na psicologia, que ainda permite os tratamentos de “conversão” e “cura gay”. Isso acontece porque, ao contrário do que costumam alegar, a medicina não é uma ciência “neutra” e, como um braço do Estado, expressa as ideias dominantes do capitalismo, e aplicando suas concepções e práticas. Desde os históricos tratamentos para a histeria – a “loucura” feminina – e castrações químicas para “perversões” homossexuais, até aos constrangimentos médicos e controle sobre as noções de gênero que continuam ainda hoje.

Capitalismo e homofobia
Aqui é preciso abrir um parênteses sobre a ligação das opressões com o surgimento e o ápice do sistema capitalista. Sabe-se que é proveitoso para o atual sistema a existência de setores que possam ser usados como mão-de-obra de reserva. Os quais, por seu status de grupo oprimido, são forçados a trabalhar sob condições superexploratórias. Mas por que o grupo LGBT em específico se tornou um deles sob a égide do capitalismo?

Antes do sistema capitalista, havia uma cisão entre o comportamento e a identidade homossexual propriamente dita. É claro que já existiam pessoas que tinham relações sexuais com outras do mesmo sexo antes da emergência do capitalismo. Mas como notou John D’Emilio em seu ensaio “Capitalismo e Identidade Gay”, ao estudar o sistema colonial na américa anglo-saxônica (pré-capitalista), não havia sequer a possibilidade ou o espaço social para assumir uma identidade gay/lésbica. Isso porque o sistema produtivo operava sobre a base da estrutura familiar nuclear.

A partir da segunda metade do século XIX, com o advento do capitalismo moderno e seu sistema baseado na “mão-de-obra livre”, abriu-se o espaço para a formação de comunidades homossexuais, visto que o trabalho já não era mais estritamente realizado dentro da família nuclear, e sim por qualquer pessoa disposta a vender sua própria força de trabalho numa fábrica. Quando os indivíduos passaram a viver de seus próprios salários ao invés de serem necessariamente apenas uma parte da estrutura familiar heterossexual, surgiu uma forma de vida autônoma, na qual morar longe da família, e mesmo formar famílias homossexuais se tornaram possibilidades viáveis. A própria instituição da família deixou então de ser central na produção de bens materiais. E é aí que o capitalismo cria uma nova contradição: por um lado seu próprio sistema produtivo é o que possibilita o surgimento da identidade gay/lésbica, por outro, a instituição da família heterossexual precisa ser mantida como forma de reprodução de mão-de-obra. E por isso surge a opressão, com o capitalismo criando simultaneamente a identidade gay, mas também as suas formas de controle da sexualidade.

Doente é o capitalismo!
Essa contradição continua a se expressar nos mais variados meios. No político, por exemplo, vemos agora a possibilidade de eleger LGBT’s por um lado (como se elegê-los fosse a solução para o fim da opressão), ao mesmo tempo em que candidatos desse grupo se colocam à mercê dos empresários e banqueiros que os elegem, impedindo na prática uma real perspectiva de avanço. No meio profissional, se por um lado surgem empresas que permitem (quando não incentivam) a presença de LGBT’s, por outro as usa como forma de conseguir trabalho ainda mais explorado, como uma compensação pela contratação dessas pessoas. Não é surpresa então que isso se expresse no meio médico e da saúde, que continua seguindo uma política homofóbica e discriminatória para a participação, não só de gays, mas de todas as LGBT’s. Esses são também os primeiros a sofrerem com os cortes feitos ao orçamento destinado à saúde, inviabilizando na prática acesso aos tratamentos que necessitam.

Por isso nós, do PSTU, exigimos o fim da homofobia na coleta de sangue. Defendemos o atendimento digno e sem constrangimentos à população LGBT por meio do SUS. Queremos o fim de qualquer tentativa de “cura” ou de patologização da homossexualidade. Tentam dizer que nós temos uma doença, que somos vetores de tudo o que há de pior. Mas doente é o capitalismo! Para nos libertarmos desse sistema não podemos confiar nas eleições nem nas empresas que se reivindicam “LGBT friendly”, precisamos de uma rebelião socialista que permita que a saúde seja um direito reservado a todos, sem restrição de classe, gênero ou orientação sexual!

[1] http://www.agenciadenoticias.uniceub.br/?p=11573