Dr. Ary Blinder, médico do SUS em São Paulo (SP)

A cepa Delta do coronavírus foi inicialmente detectada na Índia, que viveu uma onda gigantesca de casos e óbitos nos últimos meses. Os números indianos são certamente subnotificados massivamente, como denunciaram cientistas e ativistas sociais, mas ainda assim levaram a Índia a ocupar o terceiro lugar mundial no número de mortos e segundo lugar no número de casos de Covid.

A cepa Delta já se espalhou para 111 países e tem como característica uma transmissibilidade 50% maior do que outras variantes, ainda que não necessariamente isso se traduza em mais hospitalizações ou óbitos. Por exemplo, nesse momento o Reino Unido vive um novo aumento de casos de Covid com dominância da cepa Delta, porém ainda não acompanhado de aumento de hospitalizações e óbitos. A pergunta que fica é se estes óbitos vão aumentar por lá, pois o país já tem uma boa taxa de vacinação.

Nos EUA, após vários meses de queda, também está havendo um crescimento de casos de Covid e, em menor monta, de hospitalizações e mortes. Segundo as autoridades sanitárias americanas, 97% dos casos de hospitalizações são de pessoas não vacinadas. Isso é um problema sério de saúde pública por lá, pois existe uma parcela minoritária da população recusando a vacinação, devido à doutrinação feita pelos negacionistas.

Na América Latina, apesar da queda de casos novos e óbitos no Brasil e México, que são dois países populosos que concentraram parcela significativa dos óbitos, o continente de conjunto preocupa. O Peru é, de longe, o recordista mundial no número de mortos por cem mil habitantes e, por lá, circulou mais a variante Lambda, que não está sendo muito comentada, mas continua no radar da OMS e dos virologistas. Aliás, tudo indica que esta variante Lambda começou a circular no Brasil graças à realização da Copa América. A Argentina e Colômbia também tem apresentado muitos casos e mortes. Cuba, que tinha conseguido ficar muito bem no ano de 2020 com poucos casos, está apresentando um aumento substancial de casos e óbitos. Em 19 de julho, Cuba teve 6 mil novos casos e 62 óbitos, que equivale, respeitando a população do país, a algo como 120 mil casos e 1200 mortes por dia no Brasil.

No resto do mundo começa a chamar a atenção a Indonésia, país muito populoso e que tem superado o Brasil em quantidade de mortes diárias nos últimos dias. Este país de 276 milhões de habitantes tinha apenas 15% da população vacinada com a primeira dose e 6% com a segunda dose até 18 de julho.

O caso da Indonésia ilustra bem o problema que o mundo enfrenta. Estamos diante de uma variante (Delta) mais transmissível, com a maior parte do mundo com taxas baixas de vacinação. É possível prever que, provavelmente, teremos um aumento de casos e mortes nos próximos meses a nível mundial, ainda que isso não necessariamente se reflita tanto nos países ricos, aqueles que são a fonte da maior parte das notícias que recebemos pela mídia.

Se esta hipótese se confirmar, haverá um caldo de cultura enorme para o surgimento de novas cepas do vírus, alguma das quais pode vir a ser resistente às vacinas que temos hoje. Como a economia e o trânsito de pessoas e mercadorias pelo mundo é gigantesco, a possibilidade desta nova cepa resistente se espalhar pelo mundo também é muito grande. Por isso é um erro evidente a rapidez com que os governos dos países ricos estão promovendo a volta da “normalidade” e o fim de várias medidas sanitárias como o uso de máscaras. É possível e provável que várias destas medidas apressadas de normalização tenham que ser revistas.

Num mundo com a economia globalizada não há como resolver uma pandemia deste porte apenas com medidas nacionais. Só uma rápida e massiva vacinação nos países mais pobres, acompanhada de medidas de distanciamento social e garantia de renda pode deter rapidamente a pandemia. A alternativa é esperar o esgotamento natural da pandemia, que só acontecerá com uma quantidade elevada de casos e óbitos nos países mais desprotegidos.

Neste sentido, é lamentável que as iniciativas por quebra da patente das vacinas não tenham avançado, apesar de declarações de Biden neste sentido. As declarações de Biden não se transformaram em ação prática de quebra de patentes. Ou se oferecem bilhões de vacinas para o conjunto da população mundial ou seguiremos neste cenário de indefinição quanto ao término da pandemia.

Há um outro agravante em relação a esta indefinição, que é a questão da chamada Covid Longa. Ainda está sendo estudada, por ser uma doença nova, mas está ficando claro que uma porcentagem dos indivíduos que foram contaminados desenvolve sintomas muito variados por meses após a cura. São sintomas que vão do cansaço crônico, problemas neurológicos, respiratórios, cardíacos e muitos outros, que não necessariamente estão relacionados à gravidade do caso de Covid. Até indivíduos que foram assintomáticos durante a infecção aguda podem desenvolver a Covid longa. Então, isso traz consequências ainda pouco definidas até para a economia, tanto do ponto de vista das dificuldades de trabalho que estas pessoas apresentam como de gastos médicos que países e empresas terão de dispender. O maior custo é em sofrimento humano, ou seja, quanto mais tempo dura a pandemia, mais gente pode vir a desenvolver a Covid longa.

O resumo da situação é que, graças ao surgimento das vacinas, vitória evidente da ciência sobre o negacionismo, houve melhora no cenário da pandemia, porém, as pressões que o sistema capitalista mundial impõe na distribuição absurdamente desigual das vacinas entre os países e populações coloca em risco, em primeiro lugar, as populações não vacinadas e em risco potencial as populações já vacinadas, pela possibilidade de surgimento de uma nova variante resistente às atuais vacinas. Estes riscos são aumentados pela incapacidade do capitalismo de oferecer garantia de renda digna e distanciamento social para a maioria da população do globo. Ainda está cedo para se decretar o fim da pandemia.