O presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, resolveu reescrever a História. Em palestra na USP, o ministro disse que prefere não usar o termo “golpe” para o Golpe cívico-militar de 1964. Disse preferir usar o termo “movimento de 1964”: “Eu não me refiro mais nem a golpe, nem a revolução de 1964. Eu me refiro a movimento de 1964”, disse.
Toffoli disse que citou o historiador Daniel Aarão Reis que supostamente apresentaria essa nova versão dos fatos. Mas o historiador rebateu: “Chamar o golpe de movimento é uma aberração. Rejeito categoricamente a paternidade dessa ideia, com a qual eu não concordo”, disse ao jornalista Bernardo Mello Franco, do jornal O Globo.
A declaração de Toffoli ocorre quase que simultaneamente a nomeação do general da reserva Fernando Azevedo e Silva, que vai assessorá-lo no Supremo. O nome do ex-chefe do Estado Maior, exonerado em julho, foi sugerido a Toffoli pelo general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército. Silva participou de um grupo formulador de propostas para a campanha de Jair Bolsonaro (PSL) e ofereceu almoço ao vice da chapa, general da reserva Antônio Hamilton Mourão, aquele que defendeu por duas vezes o fim do 13° salário.
Um golpe contra o povo pobre e a classe operária
A “versão” de Toffoli sobre o Golpe de 1964 é absurda e não tem nada a ver com os fatos históricos ocorridos naquele período.
Patrocinado por militares, empresários e pelos Estados Unidos, o golpe foi realizado em meio a uma grande efervescência das lutas da classe operária. Naquele momento a classe operária estava mobilizada, lutava e na maioria das vezes conseguia arrancar dos patrões aumentos salariais e direitos.
Entre 1961 e 1964 quadruplicou o número de greves econômicas nos serviços e na indústria. Os grevistas chegaram a 5,6 milhões, caracterizando o maior ascenso grevista da história do país até então. Em outubro de 1963 ocorreu uma grande greve, conhecida como a greve dos 700 mil, resultado da unificação de diversas campanhas salariais de diversos setores operários.
No campo as Ligas Camponesas organizavam os trabalhadores rurais em sindicatos e forçavam os proprietários de terras a respeitar os direitos trabalhistas ou conquistavam a posse da terra com sua luta.
Tudo isso assustava a burguesia e o imperialismo norte-americano, e a gota d´água foi a ruptura na cadeia de comando nas Forças Armadas. Em 12 de setembro de 1963 eclode uma rebelião promovida por cabos, sargentos e suboficiais da Aeronáutica e da Marinha do Brasil, motivada pelo STF em reafirmar a inelegibilidade dos sargentos para cargos legislativo, conforme previa a Constituição de 1946. A justa revolta dos sargentos obteve ainda apoio dos fuzileiros navais que, enviados para reprimi-los, se juntaram ao movimento.
A crescente mobilização dos “de baixo” representava uma ameaça ao andar de cima e ao regime de exploração capitalista. Por isso, em 1º de abril de 1964 o exército brasileiro, em conluio com os partidos de oposição ao presidente João Goulart, derruba um governo legalmente constituído, iniciando uma profunda contrarrevolução no país.
Os generais disseram na época, que a intervenção seria temporária, que era para restabelecer a ordem no país e que depois fariam novas eleições. Mas a ditadura duraria 21 anos. Obtiveram apoio do ex-presidente Juscelino Kubichek; do governador da Guanabara, Carlos Lacerda; e de Adhemar de Barros, governador de São Paulo. Todos tiveram seus direitos políticos cassados depois do golpe.
Mas o primeiro alvo do golpe foram os trabalhadores pobres que estavam lutando por seus direitos. O golpe os esmagou. A ditadura acabou com as liberdades democráticas, como o direito de greve, fechou sindicatos, impôs a censura, prisões, tortura e morte para os seus opositores.
O caso dos operários do Porto de Santos é bastante exemplar. Havia uma mobilização operária muito forte na Baixada Santista. Aos olhos dos capitalistas e militares era hora de acabar com a “baderna”, como eles chamam as lutas do povo. Não por acaso, a famosa operação Brother Sam, quando navios militares dos Estados Unidos foram enviados para apoiar o golpe em caso de resistência, desembarcaria justamente em Santos.
Após o golpe militar os sindicatos da baixada sofreram intervenção e suas combativas lideranças foram aprisionadas e torturadas num navio prisão da marinha. Em pouco tempo, as conquistas históricas da categoria foram dizimadas. Até mesmo um acordo sobre pagamento de horas extras de 1937 foi extinto. Como resultado, a Companhia Docas, que administrava o porto, obteve um aumento extraordinário dos lucros, enquanto os trabalhadores do porto trabalhavam de cuecas, seminus, sem direitos e em silêncio. Outro exemplo foi a greve operária de Osasco em 1968 que terminou quando tropas do Exército cercaram os grevistas e prenderam mais de 400. Só dez anos mais tarde os operários fariam uma nova greve no Brasil. No campo, o exército agiu rápido. Prendeu, torturou e executou os líderes das Ligas Camponesas poucos dias depois da deposição de Jango.
Tudo isso não foi um “movimento” como diz o supremo idiota Toffoli. Foi a imposição de um novo regime político ao país que visava, sobretudo, esmagar as lutas populares e produzir um ambiente favorável aos grandes negócios capitalistas, baseados na superexploração do trabalho e no fim de qualquer liberdade democrática. Quem desafiasse o regime era preso, assassinado ou submetido a covardes torturas. Aliás, não há nada mais covarde do que defender torturadores, como faz Bolsonaro. O torturador é uma figura covarde e asquerosa que violenta outro ser humano que está amarrado ou algemado e não tem a menor condições de se defender.
Por tudo isso, quem defende a ditadura ou a minimiza, dizendo que ela foi um “movimento”, é um canalha que está contra a classe trabalhadora e os setores oprimidos, a favor dos grandes empresários e banqueiros, submisso às multinacionais.
Forças Armadas foram preservadas no Brasil
Infelizmente, toda a verdade sobre a ditadura, da tortura à toda corrupção que a envolveu nos tempos em que promovia grandes obras faraônicas, foi para debaixo do tapete. Nenhum governo, mesmo os do PT, atuou decisivamente para abrir os arquivos do regime. O resultado é que as Forças Armadas saíram incólumes em meio a tantos crimes e sangue. Algo que é muito diferente do que ocorreu com os nossos vizinhos latino-americanos. A Argentina, o Uruguai e o Chile também viveram sanguinárias ditaduras militares nos anos 1970. Tais regimes implodiram com a mobilização popular. Com a queda dessas ditaduras, toda a sujeira, corrupção e carnificina ficaram expostas para todo mundo ver. A maioria dos generais foi julgada e presa pelos seus crimes. O resultado é que as Forças Armadas nestes países são profundamente desmoralizadas e mal vistas pela população, o que é muito diferente da realizada brasileira, na qual as elites durante o processo de redemocratização pactuaram a preservação das instituições militares – essa é a essência da Lei de Anistia. É por isso que até hoje os arquivos da ditadura não foram abertos e nenhum torturador ou assassino foi preso. Hoje, se sabemos da responsabilidade dos generais por todo o horror daquele regime é graças a abertura dos arquivos do governo norte-americano.
Desde a Guerra do Paraguai as Forças Armadas brasileiras interferem na vida política do país. A abertura dos arquivos da ditadura, o julgamento e a prisão dos responsáveis pelas atrocidades do regime poderiam ter dado um ponto final nessa história. Mas isso não aconteceu, e agora o presidente do STF, não só passa a mão da cabeça dos criminosos da ditadura, como nomeia um general para ser seu assessor.
É lógico que tais ações apenas possibilitam maior interferência dos militares na vida política do país. Possibilitam o envio de tropas militares nas favelas do Rio de Janeiro, algo que seria absolutamente impensável na Argentina, Uruguai ou Chile.
Lula e Dilma tem a sua responsabilidade. Quando decidiram pela intervenção militar brasileira no Haiti apenas catapultaram figuras como o General Augusto Heleno, apoiador de Bolsonaro.
A presença dos generais na vida política está cada vez mais evidente. Nas eleições presidenciais ficaram conhecidas as “sabatinas” aos candidatos à presidência da República promovidas pelo comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Delas participaram Alvaro Dias (Podemos), Jair Bolsonaro (PSL), Manuela D´Ávila (PCdoB), Geraldo Alckmin (PSDB), Henrique Meirelles (MDB), Marina Silva (Rede), Fernando Haddad (PT) e Ciro Gomes (PDT). Trata-se de uma clara interferência no processo eleitoral. Um tipo de tutela militar sobre a política realizada por alguém que considera possuir poderes especiais. Aliás, Bolsonaro já deixou explicito que vai nomear militares para o seu governo, caso vença as eleições.
É preciso repudiar a presença dos militares na vida política do país. Mais do que nunca é preciso abrir todos os arquivos da ditadura para escancarar todos os crimes e a covardia daquele regime odioso. Ditadura nunca mais! Ditadura é trevas para o povo e o trabalhador pobre.