Ricardo Ayala, de São Paulo (SP)

A morte tece seu fio de vida feita ao avesso
O olhar que prende anda solto,
O olhar que solta anda preso
“Desenredo”
(Dori Caymmi/Paulo C. Pinheiro)

A propaganda burguesa mente quando diz que o vírus atinge todas as classes sociais da mesma forma. O desemprego aumenta de forma vertiginosa, e os trabalhadores autônomos perdem o sustento de cada dia. Cenas de barbárie são transmitidas pela TV, corpos empilhados, gente morrendo na porta dos hospitais. Enquanto isso, o maior acionista da Amazon, Jef Besos, acrescentou US$ 26 bilhões à sua fortuna durante a pandemia. Agora ele é o sujeito mais rico do mundo. Para gente de sua classe, não faltam leitos de UTI.

Essa irracionalidade está presente não só em tempos de pandemia. Agora o capitalismo se revela como ele é: um sistema social que se alimenta da morte. O bilionário ficou mais bilionário como consequência direta da morte de mais de cem mil pessoas até agora.

A segunda grande lição é que são os trabalhadores que constroem todas as riquezas no mundo capitalista. Por isso as empresas não podem parar. A eles, o capitalismo reserva nada mais que a escravidão assalariada e a morte.

Mesmo com esse choque na vida e na consciência do proletariado, a propaganda burguesa promete um “novo capitalismo” depois da pandemia, com mais intervenção do Estado. Os partidos reformistas, como carpideiras, anunciam “a morte do neoliberalismo”, afirmando que podemos ter uma vida digna sob esse sistema.

A casa-grande desconhece o número de seus escravos

O presidente da Caixa, em entrevista coletiva, disse estar perplexo com a quantidade de pessoas que estão tentando receber os míseros R$ 600. Diante do colapso premeditado do sistema de informática da Caixa, planejado para atender a uma demanda de 20 milhões de pessoas, reconheceu que os pedidos podem chegar a 50 milhões.

Se esse digno representante da escravocrata classe dominante brasileira tivesse lido o Anuário do Ilaese, saberia que os pedidos podem chegar a mais de 77 milhões de pessoas, dividas entre desempregados e subempregados, isso antes da pandemia. Escravos que devem se virar como podem para levar o pão de cada dia para suas famílias. Se acrescentarmos o desemprego atual, não seria surpresa se cem milhões de pessoas perdessem sua renda.

Segundo o próprio FMI, não estamos somente diante de uma queda brutal nos lucros de algumas empresas. Com um desemprego estimado de 56 milhões de pessoas na União Europeia, a catástrofe atinge não somente o coração do imperialismo – Estados Unidos e Europa Ocidental –, mas será ainda mais brutal nos chamados países pobres. A conclusão imediata: a desigualdade entre os países e no interior dos países aumentará.

E daí?

Para a grande burguesia, a catástrofe social é somente um detalhe. Vai morrer gente, mas “e daí?”, no Brasil sobra força de trabalho. O grande problema para eles é se essa catástrofe social produzir um choque na consciência do proletariado, se preparar as grandes batalhas.

Por isso, a campanha pela “unidade nacional” – “todos juntos contra o vírus” – ganha a imprensa. Preocupado com a frágil posição do imperialismo dos Estados Unidos, epicentro da pandemia, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado (1973) e da Segurança Nacional (1969) deste país, notório assassino de vietnamitas, articulador do golpe de Augusto Pinochet no Chile, falou sobre as dificuldades para enfrentar esta crise: “Agora, como em 1944, há uma sensação de perigo incipiente, direcionado não a qualquer pessoa em particular, mas atacando aleatoriamente e com devastação. Mas há uma diferença importante entre esse tempo distante e o nosso. A resistência americana foi então fortalecida por um objetivo nacional final. Agora, em um país dividido (…) Manter a confiança do público é crucial (…).”

Kissinger escreveu isso antes que Trump mandasse os americanos ingerir detergente e água sanitária para combater a COVID-19. Mas a campanha do imperialismo vai além de detergentes. De Kissinger ao FMI, passando pelos principais jornais e revistas imperialistas e pela imprensa brasileira (com o Solidariedade S.A., do Itaú-Globo), todos desenvolvem uma forte campanha ideológica. Alguns prometem um “novo capitalismo mais humano” pós-pandemia.

ESTADO É PARA SALVAR CAPITALISTAS
O falso debate sobre mais ou menos “Estado”

Um dos porta-vozes do capital financeiro, o Financial Times diz: “Reformas radicais – invertendo a direção política predominante nas últimas quatro décadas – precisarão ser colocadas na mesa. Os governos terão de aceitar um papel mais ativo na economia (…) a redistribuição estará novamente na agenda.”

Com a dinheirama distribuída aos bancos para que irriguem a economia e realize a magia redistributiva do Financial Times, o ministro da Indústria britânico deu uma ordem bem assertiva: “Seria totalmente inaceitável (…) se os bancos rejeitarem empréstimos (…) para as boas empresas.”

Então, o novo capitalismo funcionaria assim: o Estado enche os bancos de grana, e os bancos emprestam essa grana para as empresas se, e somente se, essas empresas forem “boas”. Por “boas”, devemos entender as empresas que possam explorar seus trabalhadores, gerar lucro suficiente para o capitalista e para os juros do banco. Caso não possa dividir a exploração dos trabalhadores em lucros e juros, essa empresa não seria boa.

Opa! Mas não é assim que funcionava antes da pandemia? Em tempos de crise, há outra leitura sobre as boas empresas que se resume à pergunta: quem sobreviverá? E o lambe-botas não entendeu bem o recado: agora o Estado deve entrar com tudo para assegurar as relações sociais capitalistas.

Intervenção estatal e liberalismo são duas faces da mesma moeda, a moeda da acumulação de capital. A demanda por emprego de economistas liberais e de estatistas nos governos dança de acordo com a necessidade do ciclo político e econômico do capitalismo. O estatistas investem a grana do Estado, e os liberais dizem que o Estado cresceu e deve entregar a empresa para a livre iniciativa, num jogo de cartas marcadas.

Quem vai pagar a conta

Esse jogo é pesado, porque nem todos sairão vivos. Na recessão aberta em 2007, a General Motors, um dos símbolos do capitalismo dos EUA, estatizou seus prejuízos e por isso não fechou as portas. Provavelmente a Tesla, produtora de carros elétricos, teria preferido que a GM fechasse as portas. A quem se destinará a derrama de dinheiro sem juros para aguentar a profunda queda nos lucros? A resposta abrirá uma luta de morte entre os grandes monopólios. A conta será paga em primeiro lugar pelo proletariado e pelos pequenos e médios negócios.

Em tempos de COVID-19 e China, liberais e estatistas dirão que não importa a cor do gato, desde que cace os ratos. Assim, o ultraliberal presidente francês Emmanuel Macron soltou essa: “Existem bens e serviços que devem ser colocados fora do mercado.” O capitalismo mais humano no qual alguns setores ficam de fora do processo de acumulação do capital também foi visto depois da grande depressão de 1929. Toda a teoria econômica liberal foi para as cucuias, e o Estado entrou para assegurar a acumulação capitalista com seus planos de resgate das empresas.

O mais famoso foi o New Deal impulsionado pelo presidente estadunidense Franklin Roosevelt, pelo qual o Estado não só financiou empresas, como atuou no investimento direto, construindo suas próprias empresas para impulsionar a acumulação de capital no conjunto do sistema.

A crise de 2007 não obrigou o Estado a esse nível de intervenção. Ele comprou as ações da GM e limpou os prejuízos dos bancos. Agora, o Financial Times diz que as regras do jogo mudaram. A intervenção do Estado burguês terminou com os 85 milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial. Em seguida, o período liberal conviveu perfeitamente com os 20 milhões de mortos das revoluções pela libertação das colônias destes escravistas.

O que interessa ao proletariado no próximo período não é se o Estado vai ou não intervir para impulsionar a economia, mas sim a serviço de quem está o Estado.

QUE REVOLUÇÃO É ESSA?
Neoliberalismo e revolução solidária

Quando o capitalismo mostra sua verdadeira face, a principal tarefa das organizações que defendem o socialismo é contribuir para que o proletariado possa transformar o choque da catástrofe numa luta consciente. Em última instância, é a luta pela superação do capitalismo.

Essa luta é contra a propaganda burguesa também, que frente à barbárie promete um novo capitalismo. Nós propomos auto-organização. Em que pese os inúmeros embriões de auto-organização dos bairros populares para minorar os efeitos da pandemia, demonstrações incríveis de solidariedade, ela deve caminhar com passos mais firmes. Entender a necessidade da auto-organização para superar o Estado burguês e a propriedade privada será o grande desafio do próximo período.

Nessa batalha, causou-nos perplexidade o artigo “Por uma revolução solidária”, de Guilherme Boulos e Luiza Erundina. O ex-candidato a presidente pelo PSOL afirma que “as tragédias têm o poder de nos colocar diante de nossas escolhas como sociedade”. Mas a qual escolha se refere Boulos?

Para ele, não é o capitalismo que empurra a humanidade para catástrofes – seja a pandemia, seja a catástrofe climática. Em sua opinião, a superação do neoliberalismo é a única escolha possível. De capitalismo, não fala. Fala em transitar para um novo modelo que permita ao Estado burguês realizar investimentos.

Os socialistas não são simples estatistas. Toda nossa luta se resume à auto-organização dos operários e das massas populares para que controlem a produção e a distribuição dos bens necessários à vida. Podemos até lutar pela estatização de uma empresa contra o imperialismo, mas isso não se confunde com o nosso programa, que é a expropriação da propriedade privada e o controle pelos trabalhadores.

Como a superação do neoliberalismo parece que será o próprio sistema que talvez mude para nada mudar. Como Boulos integra um partido que se diz socialista, talvez tenha ficado sem bandeira. Então tira da manga uma revolução. Em suas palavras, o “momento exige uma revolução solidária”.

Revolução é ruptura e superação. Sem indicar nenhuma ruptura com nada, a revolução proposta por Boulos parte da premissa de que “hoje, podemos dizer que estamos ‘condenados’ a ser solidários. Para sobreviver, precisamos contar uns com os outros…”

Não é de hoje que o capital conta com a força de trabalho para gerar seus lucros numa relação nada solidária. No mundo invertido do capitalismo, a palavra solidariedade se massifica, enquanto reina o desespero das famílias nas cidades brasileiras.

O vírus revela a miséria da qual padece a maioria da população e a miséria moral dos meios de comunicação, que tentam vender que há esperança sob o capitalismo, transmitindo uma odiosa propaganda “Solidariedade S.A.” Querem demonstrar como os senhores tratam bem os escravos da “casa”. Atuam no sentido que diz o poeta, para manter preso o “olhar que solta”. E esse olhar é a consciência de que o mundo capitalista é uma imensa máquina de destruição da humanidade. A luta pela consciência é liberar “o olhar que solta”.