Marina Cintra, de São Paulo (SP)
Marina Cintra, da secretaria Nacional de Mulheres do PSTU e do Rebeldia
O último 30 de julho foi o dia mundial de combate ao tráfico de pessoas. A data foi instituída pela ONU e é considerada um marco importante por ajudar a gerar mais visibilidade sobre o tema. Nesse artigo, abordaremos a relação entre o tráfico de seres humanos, especialmente de mulheres e meninas para fins de exploração sexual e o capitalismo, evidenciando que não se trata de uma excepcionalidade, mas que esse tipo de crime é inerente ao próprio sistema, por sua tendência em transformar tudo em mercadoria.
Um grande “negócio”
Primeiro, é importante ressaltar que esse é um tema extremamente invisibilizado. Os poucos dados que existem são subnotificados e, infelizmente, a realidade é muito mais dura do que se pode imaginar. Ainda assim, é um consenso que o tráfico de pessoas é um “empreendimento” extremamente rentável, sendo considerado o terceiro negócio ilegal mais lucrativo no mundo, perdendo apenas para tráfico de drogas e de armas. A maioria das vítimas do tráfico humano são mulheres e meninas para fins de exploração sexual, sendo grande parte são mulheres pobres de países periféricos. Mas também há casos de tráfico de pessoas para trabalhos forçados, transplante de órgãos, entre outros.
A falta de uma política consciente e eficiente dos governos para combater o tráfico e os criminosos, desde os aliciadores até “os cabeças”, é evidentemente o maior problema, sendo que nesse terreno a impunidade é muito alta. Mas é importante também dizer que isso é assim porque, em muitos casos, o tráfico de pessoas está ligado a políticos e/ou grandes empresários burgueses, que lucram alto com esse tipo de crime e tem conexões por vários países e com gente poderosa.
Como o caso do empresário Wissam Nassar, dono de um dos maiores shoppings no Paraguai, que agora está sendo investigado numa operação policial internacional, a chamada “Operação Harem BR”, que revelou um esquema de aliciamento e prostituição em 15 países e diferentes continentes, ou então a do ex-diretor gerente do FMI, Strauss Khan, que em 2015 foi acusado de integrar uma rede de prostituição que atuava em vários países.
A questão do turismo sexual é um dos principais motivos para o tráfico para fins de exploração sexual. Não é de hoje que diversas redes de grandes hotéis são investigadas por possível envolvimento com mulheres traficadas. Em 2019 diversas luxuosas e grandes redes de hotéis nos Estados Unidos foram denunciados por vítimas resgatadas do tráfico. Entre os grupos hoteleiros estavam Hilton Worldwide Holdings, Red Roof Inn, Intercontinental Hotéis and Resorts, etc. Uma das vítimas, inclusive, relata que foi mantida em cativeiro em vários lugares do Wyndham Hotels e relatou que “só desejo que as pessoas percebam o que realmente se passa aqui nos EUA. Acontece em todos os hotéis”. Sendo assim, o lucro dessa exploração sexual é gigantesco para quem está por trás.
Com a pandemia, especialistas afirmaram que a situação se agravou, tanto pela diminuição da vigilância pela pouca prioridade e relevo desse tema, mas sobretudo pelo aumento da miséria, que deixa tanto mulheres e meninas, além de muitos trabalhadores pobres em uma situação de vulnerabilidade para se tornarem vítimas de aliciadores. O Brasil, pra variar, é um dos países com alta incidência de tráfico de mulheres, com números elevados especialmente no Norte e Nordeste do país, possuindo uma rede de tráfico interno, ou seja, de um estado para outro, e também uma rede de tráfico externo, para outros países, geralmente da Europa, Estados Unidos e Oriente Médio.
O governo Bolsonaro, além de não ter política para o combate ao tráfico de pessoas e ter cortado verbas do combate à violência contra mulher, ainda naturaliza essa situação toda, por meio de declarações machistas e absurdas, inclusive fazendo apologia ao turismo sexual, como quando disse que “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”. Dessa forma, a realidade hoje é que o tráfico de mulheres está mais próximo do que imaginamos e que a invisibilidade e a impunidade reinam no Brasil e no mundo.
Violência contra mulher, mercantilização e lucro
O tráfico de pessoas, incluindo o tráfico sexual de mulheres e tráfico para outras finalidades (adoção, casamento forçado, venda de órgãos) é a expressão máxima da natureza alienante da sociedade capitalista, cujas relações sociais são mediadas pelas mercadorias e pelo dinheiro. Nesse caso, a vítima se torna a própria mercadoria e é vendida como tal, no que chamamos de escravidão moderna. Infelizmente, enquanto estivermos no capitalismo, histórias como essas se repetirão inequivocamente, pois é perfeitamente compatível com a lógica da sociedade em que vivemos, baseada na exploração e no lucro, basta ver os exemplos que trouxemos e a estreita ligação desse tipo de crime com os grandes empresários (isso nos casos que sabemos, que dirá aqueles que não saíram nas grandes mídias).
Mais especificamente sobre o tráfico para fins de exploração sexual é ainda uma das várias formas que assume a opressão e a violência contra mulheres, sendo que nesse caso, o grau de objetificação é absoluto. O valor de uma “venda” pode atingir dezenas ou milhares de dólares e por trás desse lucro todo existe uma realidade de violação e estupro. Como as mulheres ali são consideradas mercadorias, seus proprietários se acham no direito de fazer o que bem entendem, ou seja, toda e qualquer violação de direitos é permitida.
Essa situação é possibilitada pela ideologia machista extremamente enraizada e naturalizada, na qual a cultura do estupro cumpre um importante papel, pois atribuem às mulheres a culpa pela violência sofrida. Assim como nas violações que ocorrem todos os dias e que são justificadas com argumentos como “ela estava pedindo”, “estava bebâda”, “estava sozinha”, “estava se mostrando”, com as vítimas de exploração sexual não é diferente, muitas inclusive são acusadas de se colocarem nessa situação por querer.
Não ao tráfico humano
Ao demonstrar a relação entre o tráfico de pessoas e o capitalismo não estamos, evidentemente, querendo dizer que não possamos lutar aqui e agora contra esse crime e as violações aos direitos humanos que dele derivam, pelo contrário, não apenas precisamos como sabemos que é fundamental exigir dos governos ações que coibam o tráfico, com investimento em operações para desbaratar organizações criminosas, punição exemplar para os envolvidos com esse tipo de “negócio”, desde os “peixe pequeno” até “os cabeças”; uma política de apoio e suporte às vítimas, incluindo medidas sócio-econômicas que tirem as mulheres e outros setores vulneráveis da situação de pobreza e miséria que muitas vezes é o motivo pelo qual acabam nas mãos dos aliciadores, tudo isso combinado com campanhas de visibilidade e conscientização sobre o tema. Nesse sentido, achamos que é fundamental que as organizações da classe trabalhadoras, como os sindicatos e movimentos sociais sejam vanguardas nesse tema, incorporando esse programa e essas exigências na lutas quotidianas.
Entretanto, sabemos que para ser consequente nessa luta, é preciso inverter a lógica de exploração do sistema e a mercantilização das mulheres. Nesse sentido, é o contrário das agências internacionais da burguesia e do imperialismo, como a ONU, que até denunciam esse tipo de crime, mas servem de sustentáculo para que sigam acontecendo, por serem sustentáculo do próprio sistema. O fim do tráfico humano está condicionado a um outro tipo de sociedade, uma sociedade sem exploradores e nem explorados, sem desigualdade e sem opressão, uma sociedade socialista. Por isso nossa luta não para no imediato, mas se combina com a luta para derrotar o capitalismo e construir as bases materiais para a libertação humana e o fim da alienação.