A tragédia que se abateu sobre São Sebastião e Ubatuba, no Litoral Norte de São Paulo, foi mais do que anunciada. Foi um crime premeditado, cujos responsáveis são os governos de todas as três esferas (municipais, estadual e federal), que nada fizeram para evitar as 65 morte, além de 1.109 desalojados e 1.172 desabrigados somente em São Sebastião.

O imenso volume de chuva, o maior já registrado no país, foi o elemento deflagrador dos deslizamentos. Mas, a tragédia é social e escancara a imensa desigualdade socioeconômica no país. Por décadas, quase todos os anos, a tragédia das chuvas de repete. Inundações devastadoras, deslizamentos, destruição e mortes são cenas que, infelizmente, atravessam gerações. Depois vem a comoção, a dor e a revolta, junto com as promessas vazias dos políticos e a percepção de que nada muda. Nunca.

A novidade dessa vez, porém, é o aumento da frequência e da intensidade dessas tragédias. Sinal de que as mudanças climáticas vieram pra ficar (leia abaixo).

No caso dos deslizamentos do Litoral Norte de São Paulo, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) alertou o governo do estado de São Paulo e a prefeitura de São Sebastião, com dois dias de antecedência, sobre o risco de desastre na cidade em razão de fortes temporais. O alerta citava, inclusive, a Vila do Sahy, onde se concentra o maior número de vitimas. Mas nada foi feito.

Afinal, era Carnaval e ninguém queria atrapalhar a festa que proporcionaria muito dinheiro aos empresários da região. A maioria das mortes poderia ter sido evitada se os moradores tivessem sido avisados. Mas, o aviso chegou apenas às 7 horas da manhã do dia 19 de fevereiro, quando muita gente já estava enterrada na lama.

Sem dinheiro para evitar desastres

Outros indícios deste assassinato premeditado foram os constantes cortes de verbas para a prevenção de desastres naturais. Quanto mais tragédias ocorrem, ano após ano, menos dinheiro se gasta a área.

Em 2023, foi disponibilizado R$ 1,77 bilhão para o enfrentamento a tragédias deste tipo, segundo levantamento da ONG Contas Abertas. Para efeito de comparação, em 2013 eram R$ 11,6 bilhões, em valores atualizados. Em 2014, esse valor caiu para R$ 7,2 bilhões; em 2015, para R$ 4,4 bi; e, assim, sucessivamente.

No gráfico abaixo é possível ver a redução de verbas durante os sucessivos governos, de Dilma, passando por Temer, até Bolsonaro, que praticamente acabou com as verbas de prevenção e destinou, no ano passado, ridículos R$ 25 mil para atender tragédias provocadas por fortes chuvas.

Medidas do governo Lula-Alckmin são insuficientes

Face à tragédia, o governo Lula anunciou o envio de R$ 9 milhões para ajudar as vítimas, uma quantia absolutamente insuficiente para reconstruir a vida das pessoas, menor que o cachê de R$ 10 milhões que a modelo Gisele Bündchen recebeu para ficar três horas na Sapucaí.

Também prometeu casas populares do programa “Minha Casa, Minha Vida” para os desabrigados. Mas não detalhou como e quando elas serão construídas. E pior: se as próprias vítimas terão ou não que pagar por elas depois de perder tudo. Na verdade, para evitar novas tragédias é preciso investir massivamente em prevenção e, ao mesmo tempo, atacar as causas da profunda desigualdade social do país, como veremos a seguir.

Segregação socioespacial

Pobres são empurrados para as áreas de risco

A quase totalidade das vítimas morava nos bairros pobres, nas chamadas áreas de risco – encostas de morros e fundos de vale. O que demonstra que a vulnerabilidade e exposição das pessoas aumentam na mesma proporção em que crescem a desigualdade social e a segregação espacial.

Os moradores da Vila do Sahy (antiga Vila Baiana, devido a forte presença de nordestinos) foram empurrados para as encostas dos morros pela forte especulação imobiliária dos terrenos planos das faixas litorâneas que, num passado não tão remoto, eram habitados por muitos deles, que ganhavam a vida como pescadores. O limite da planície costeira é muito restrito e o metro quadrado em alguns bairros, como a Praia da Baleia, pode chegar a R$ 5.735, enquanto que na Vila do Sahy, no sopé da Serra, é de R$ 70.

Essa história começou com a construção da BR 101, a rodovia Rio-Santos, pela ditadura. A obra promoveu uma radical transformação de toda região. Com a estrada, vieram a especulação imobiliária, as mansões, os condomínios de luxo e “resorts” e a consequente expulsão da população tradicional das áreas próximas à praia.

Um exemplo é a Riviera de São Lourenço, um condomínio de luxo que ocupa uma das principais praias de Bertioga. Lá, os ricos passam férias, curtindo a praia e seu campo de golfe. Do outro lado da BR 101, vive a população pobre, em terrenos sujeitos a alagações.

Esse padrão se repete em toda a região. A esmagadora maioria que ocupa as encostas da Serra do Mar do Litoral Norte trabalha para condomínios e casas de luxo que foram sendo construídos em praias badaladas.

A forte especulação urbana e o crescimento da construção civil também trouxeram mais gente para a região, que buscava trabalhar no setor, na estrutura de serviços, no trabalho doméstico, na zeladoria das casas etc. O resultado foi a acelerada urbanização. Dados extraídos do MapBiomas mostram que, em São Sebastião, onde houve a maior parte das vítimas das chuvas, a área urbanizada aumentou em 345,8%, desde 1985.

Discriminação de raça e classe

Essa mancha urbana se espalhou para a Serra do Mar. A situação se repete em Ilhabela, com um aumento de 6.400% no mesmo período; em Ubatuba, com acréscimo de 419,6%; e, em Caraguatatuba, que teve um crescimento de 348,7% da área urbana

Esse processo produziu uma imensa segregação espacial que fragmenta as classes sociais em espaços distintos. Tudo isso temperado com um forte preconceito de classe e racismo. Em São Sebastião, o atual prefeito Felipe Augusto (PSDB) revelou que moradores da praia de Maresias, “incluindo empresários e famosos” se mobilizaram para impedir a construção de 400 casas populares na praia, considerada a “meca do surfe brasileiro”. Não queriam que os pobres – negros em sua maioria – “invadissem a sua praia”.

Cabe notar, ainda, que a construção irregular de casas em as áreas de risco ou de proteção ambiental também é realizada pelos ricos que construíram mansões de alto padrão, subornando autoridades locais e políticos. O atual secretário do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), Guilherme Afif Domingos, por exemplo, tenta, há anos, construir um condomínio com 50 mansões na Praia da Baleia, uma das regiões mais valorizadas de São Sebastião, em plena área nativa da Mata Atlântica.

Capitalismo é o maior risco para a humanidade

Eventos extremos estão ligados ao aquecimento global

A enorme quantidade de chuvas foi o que deflagrou os deslizamentos das encostas. O volume que caiu em Bertioga, 683 milímetros acumulados no período, é o maior já registrado. Na tragédia de Petrópolis, em 2022, foram registrados 534,4 milímetros.

Os registros da meteorologia mostram que as tempestades no Brasil ficaram muito mais fortes e frequentes nos últimos anos. Desde outubro de 2021, foram registrados, oficialmente, 11 desastres causados por temporais no país e quase 500 pessoas morreram. Além de Petrópolis, ainda estão frescas na memória da população as tragédias no Recife, Minas Gerais e Sul da Bahia.

Isso indica que já estamos lidando com as consequências do aquecimento global, que provoca eventos meteorológicos extremos, mais frequentes e mais fortes. O aquecimento foi provocado pelo capitalismo que promoveu o uso generalizado dos combustíveis fósseis (petróleo, gás etc.) e a destruição dos ecossistemas.

Em todo planeta, fortes e frequentes inundações, grandes secas e perdas de safras agrícolas já estão se generalizando e, possivelmente, a situação vai piorar quando a temperatura global exceder 1.5° Celsius, aumentando drasticamente o risco de eventos climáticos extremos e imprevisíveis.

A irracionalidade do capitalismo levará a humanidade à catástrofe. Mais do que nunca, o dilema entre socialismo e barbárie se apresenta como vital para a sobrevivência da civilização.

Combater novas tragédias

No Brasil, pobres estão mais vulneráveis

No Brasil, segundo o Cemaden, há aproximadamente 40 mil áreas de risco, onde vivem mais de 10 milhões de brasileiros. Esse número equivale às populações (somadas) de Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza e Manaus.

Todas estas áreas já foram identificadas e mapeadas. Mas a população pobre e trabalhadora continua sendo vulnerável a novos desastres. É preciso atacar a desigualdade social que faz com que o povo viva em áreas de riscos. Isso exige enfrentar os ricos, os banqueiros, os grandes empresários, os ruralistas e as grandes construtoras, para gerar empregos, salário e renda.

Além disso, é preciso um amplo programa de construção de moradias dignas, expropriando a especulação imobiliária, proibindo a construção de novos empreendimentos milionários e promovendo uma revolução urbana. De imediato, é preciso criar um Plano de Desocupação Voluntária das encostas, de âmbito estatal e público, que garanta moradia digna, fora de áreas de risco e com custo zero nas moradias.

Também é preciso desapropriar condomínios de luxo – desfrutados pelos ricos apenas no Verão – para assentar emergencialmente os desabrigados da tragédia de São Paulo.

Por fim, é urgente criar sistemas de monitoramento e alerta para desastres, tal como existem em países imperialistas para furacões e tornados, e que, comprovadamente, salvam muitas vidas. É preciso investir massivamente em medidas contra os eventos extremos provocados pelas mudanças climáticas.