Gustavo Machado do canal Orientação Marxista
Nem toda corrente de pensamento burguesa será adepta da religião liberal. Vimos, no artigo anterior, que a maior parte dos liberais considera o dinheiro como uma mera convenção e facilitador das trocas. A circulação da riqueza capitalista nada mais seria do que a troca de mercadorias de igual valor, umas pelas outras. Desse modo, jamais teríamos uma superprodução. O total de mercadorias produzidas seria sempre igual ao total de mercadorias consumidas, a oferta seria igual à demanda. Qualquer desajuste seria rapidamente resolvido pela concorrência: pela mão invisível do mercado. A ilusão liberal floresceu durante o fim do século 19 e nas primeiras décadas do século 20.
Nesse período, a indústria explorada de forma capitalista teve um desenvolvimento colossal. Países como Alemanha e Estados Unidos tornaram-se potências industriais. Os países dominados tornaram-se, cada vez mais, produtores de matéria-prima para a indústria europeia e consumidores de seus produtos manufaturados. Até 1929 o capitalismo europeu conheceu um processo de relativa prosperidade. As crises existiam, mas não foram tão gerais e fulminantes como outras verificadas no período anterior.
Foi nesse período que, por um lado, ocorreu grande difusão das obras dos economistas neoclássicos e marginalistas, apologistas extremos do liberalismo. O mercado parecia inabalável. Por outro lado, dentro do movimento dos trabalhadores, desenvolveu-se uma ampla tendência reformista. É possível ajustar o capitalismo, diziam. Corrigindo esse ou aquele problema ou descompasso, o capitalismo pode ser justo e igualitário. Na própria Social-Democracia Alemã, fundada sob orientação de Marx, emerge o grupo reformista liderado por Bernstein. Outras organizações reformistas são criadas, como a Sociedade Fabiana na Inglaterra. É a época marcada por uma visão otimista sobre o capitalismo e seu futuro. É a época das teorias do progresso contínuo, ininterrupto e sem fim. Toda essa euforia, otimismo e fervor chegaria rapidamente ao fim.
No início do século 20 temos a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Na base da aparente prosperidade europeia encontrava-se a colonização e o domínio político e econômico de todo o mundo pelas potências capitalistas do passado e as emergentes. O conflito entre elas dá origem a uma guerra com milhões de mortos. Mas não somente. Na sequência, temos a grande crise econômica de 1929. O dogma da mão invisível do mercado desaba. O desemprego é generalizado. Empresas, antes vistas como indestrutíveis, decretam falência. A inflação atinge índices tão elevados que uma anedota diz que os alemães prefeririam queimar o dinheiro que usá-lo para comprar lenha, tamanha a quantidade (física) necessária. O grande capital necessitava, agora, de outro ninho para chocar seus ovos. Ganham notoriedade as elaborações do economista inglês John Maynard Keynes.
Keynesianismo
O braço (visível) do Estado
Keynes foi menos original do que parece. No século anterior, vários economistas perceberam a tendência do capitalismo de elevar sem parar a produção de mercadorias, mas não necessariamente a capacidade do conjunto da população de consumi-la. Curiosamente, essa era uma abordagem assumida, principalmente, pelos conservadores, cujo principal expoente foi Thomas Malthus.
Malthus colocou-se como defensor dos interesses dos aristocratas. Segundo ele, o capitalismo, de fato, possui uma superprodução crônica oriunda do fato de que os trabalhadores podem comprar apenas uma porção das mercadorias produzidas por seu trabalho. Um exemplo é o desenvolvimento tecnológico que simplifica o trabalho existente e reduz relativamente os trabalhadores empregados. Temos, assim, mais mercadorias e menos trabalhadores com salários mais reduzidos para comprá-las. A capacidade de consumo da sociedade era sempre inferior a sua capacidade de produção, dizia Malthus. Para corrigir esse desajuste, seria necessário agregar uma demanda extra à sociedade: uma demanda agregada.
Daí Malthus conclui pela necessidade da existência de classes improdutivas: os aristocratas. Aristocratas que vivem apenas da renda oriunda da propriedade de suas terras, que alugam aos capitalistas. Eles fariam um enorme favor para a sociedade: consumiriam toda produção excedente sem entregar nada em troca. Os coitadinhos iriam se sacrificar exercendo a nobre e solene função de parasitas sociais. Eles consumiriam o excedente que capitalistas e trabalhadores não seriam capazes de consumir, excedente que seria o responsável pelas crises de superprodução.
Keynes apenas recicla Malthus. Quem salvará a pátria, agora, não seriam aristocratas parasitas que apenas consomem sem nada vender, mas o Estado. Vejamos.
Para fundar uma teoria da intervenção estatal, Keynes necessita recorrer a outra teoria do dinheiro. Diferente daquela dos liberais. Ele destaca o fato de o dinheiro atuar como meio de conservação do valor. Quando há insegurança e crise, a tendência das pessoas e empresas é poupar a maior parte do dinheiro como uma espécie de porto seguro diante das incertezas futuras. Ao fazê-lo, temos menos investimentos das empresas e, assim, desemprego. Na medida em que uma fatia cada vez maior da renda é destinada à poupança, e não à aquisição imediata de mercadorias, temos superprodução. E uma sucessão de efeitos em cascata: a crise leva todos a pouparem. A poupança, ao não ser usada no consumo do que foi produzido, eleva a crise.
É assim que o Estado deveria se integrar à dinâmica interna do capitalismo, sendo um agente tanto de produção como de consumo. O Estado, por um lado, gastaria e consumiria todo excedente gerado pela superprodução capitalista e, por outro, investiria quando os capitalistas tendessem a poupar seu capital no lugar de reinvesti-lo produtivamente. Daí um termo que keynesianos como Guido Mantega, entre outros, adoram: contra as crises cíclicas do capital, medidas estatais anticíclicas. Daí a palavra de ordem de Dilma quando estourou a crise no Brasil: não poupem, gastem. A ação estatal seria regida por uma nova ciência destinada exclusivamente a esse fim: a macroeconomia.
Keynes é o pai da macroeconomia. Com ele, a economia deixa de pensar unicamente na administração das unidades produtivas isoladas, deixando ao “Deus impessoal mercado” atuar sozinho na distribuição da riqueza produzida. Com Keynes, de maneira sistemática, a ciência econômica deve dar uma mãozinha à mão invisível. O Estado deve ser integrado e converter-se em agente interno da economia capitalista, corrigindo os defeitos da ordem natural que o “Deus mercado” conferiu ao mundo quando da sua criação. Seria essa ciência possível?
De saída a obstáculo
A barca furada do keynesianismo
Como sempre, a economia burguesa substitui um unilateralismo por outro. No fundo, Keynes está chamando atenção corretamente para o fato de que na troca de mercadoria por dinheiro e dinheiro por mercadoria, o dinheiro não pode ser retirado fora da equação. Não é mero facilitador das trocas. Enquanto reserva de valor, a operação pode se paralisar no dinheiro por longo tempo, evitando assim que novas mercadorias sejam compradas. No entanto, que condições sociais são essas que fazem com que a situação seja ora mais segura e ora insegura? Que ora as empresas queiram investir e as famílias, gastar sua renda em mercadorias e ora ambos prefiram manter seus recursos na forma de dinheiro sem investir ou comprar?
O problema do keynesianismo é querer agregar uma razão e uma ciência de Estado a um mercado que não é regido por nenhuma razão e por nenhuma ciência. Todas as medidas estatais, responsáveis por salvar o capitalismo em um primeiro momento, no momento seguinte são sua cova. Quando há superprodução, os gastos estatais são bem-vindos. Quando ela deixa de existir, esses gastos se convertem em um estorvo. Afinal, o Estado arrecada valor por meio de impostos que fazem baixar a taxa de lucro dos capitalistas, direta ou indiretamente. Diretamente quando o imposto incide diretamente sobre o lucro. Indiretamente quando incide sobre o produto, elevando seu custo.
Da mesma forma, nos momentos de crise, os capitalistas colocam cada vez mais o seu capital na mão do Estado, comprando títulos da dívida pública. O Estado gasta todos esses recursos procurando reduzir o abismo que separa a capacidade de produção e de consumo da sociedade no seu conjunto. Nesse momento, os capitalistas se tornam, em sua maior parte, keynesianos. No momento seguinte, no entanto, o Estado deverá devolver todo esse capital com juros e correção monetária. Perde, assim, sua capacidade de investir produtivamente seus recursos, bem como de gastá-los comprando mercadorias da produção privada. Uma fatia cada vez maior dos recursos estatais aflui de volta ao bolso dos capitalistas. O Estado deve gastar o menos possível, e a maior parte dos capitalistas se volta ao liberalismo.
A macroeconomia keynesiana não passa de um cachorro que corre eternamente atrás de seu próprio rabo. Keynesianos e afins querem controlar, centralmente por meio da demanda e da renda dos consumidores, um sistema que se estrutura tendo como norte a produção pela produção, a produção como meio de ampliá-la ainda mais, independentemente do consumo e da satisfação das necessidades humanas. Um casamento cujo divórcio é certo. Tal saída pode ser útil ao capital nos momentos de aguda crise econômica. Ao se atingir um “equilíbrio” após a crise, esta saída se converte em obstáculo.
Para os trabalhadores, significa uma estratégia a mais para mantê-los no mesmo sistema que os submete e os faz mergulhar em um oceano de insegurança. Um sistema que suga, dia após dia, suas energias vitais em prol de um processo infinito de autovalorização que se desenvolve às suas custas e alheio aos seus interesses, preferências e necessidades.
Quando Marx escreveu O Capital, colocou como subtítulo: crítica da economia política. Este subtítulo quer dizer que a ciência que Marx elaborou não foi uma ciência econômica marxista. Não existe ciência do capitalismo. Ele próprio é irracional, incontrolável e insubmisso a qualquer planejamento e ciência. A única ciência que comporta é aquela da sua crítica, da sua superação.
Nesse sentido, veremos, no próximo artigo, mais uma tentativa de administrar o capitalismo fadada ao fracasso: aquela do fazer dinheiro elevando o endividamento público, atualmente conhecida como Teoria Monetária Moderna, ou MMT.
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