O presidente do Sindicato dos Servidores do Poder Judiciário do Rio e militante do PSTU, Amarildo Silva, faz a sua avaliação sobre a recente e histórica greve dos servidores da Justiça, que durou 65 dias.A Campanha Salarial deste ano, que resultou na greve de 65 dias, começou em janeiro, mas a categoria não respondia ao chamado de se organizar feito pela diretoria do sindicato. Qual o motivo?

É preciso avaliar que tínhamos a visão de que era necessário fazermos uma campanha salarial diferente da que foi a do ano passado, justamente por causa do seu insucesso, que acabou trazendo um descrédito do sindicato e da luta junto a uma boa parcela da categoria. E uma campanha perdida necessita de tempo para que você possa recuperar os ânimos da classe. Isso dificultou que pudéssemos ter uma maior participação logo de início.

Desde o início do ano, foi defendida a necessidade de se unificar as campanhas salariais dos servidores estaduais. Qual a sua avaliação sobre isso?

A experiência de 2007 também nos fazia apostar com tudo na unificação das lutas do funcionalismo, pois sabíamos que essa unidade nos faria mais fortes para enfrentar um inimigo comum e forte, que é o governo estadual — Sérgio Cabral Filho (PMDB) e aliado de Lula. Perseguimos esse objetivo contribuindo para a consolidação do Movimento Unificado dos Servidores do Estado, o Muspe. Infelizmente, a unidade não aconteceu, inviabilizada quando Sérgio Cabral Filho autorizou o pagamento do reajuste de 8% para o pessoal da Educação e da Segurança, o que fez com que o movimento se dividisse.

Quando é que os serventuários começaram a se mobilizar com maior intensidade?

Foi no final de julho, quando o Tribunal enviou ao Legislativo a proposta de reajuste salarial, os 7,3% retroativos a maio, mês da nossa data-base prevista em lei. E, segundo o próprio presidente do TJRJ, este percentual, bem inferior aos 30% que reivindicávamos, era possível, já que havia um acordo com o Executivo, o que acabou levando muitos a acreditarem que a mensagem seria aprovada sem maiores problemas na Assembléia Legislativa (ALERJ). Mas, como palavras o vento leva, isso acabou não se concretizando, com o Executivo negando este acordo e querendo impor 0% de reajuste. A campanha começou a tomar corpo, pois já estava claro para todos que sem luta sofreríamos uma imensa derrota. As assembléias começaram a ficar ‘concorridas’, além de começarmos a retornar a mobilização no interior, através das suas caravanas, que vinham à capital. Daí é que surgiram as condições para deflagrarmos a greve.

Dá para dissociar a mobilização da categoria da crise que atravessa a economia brasileira?

Isso seria impossível. A disparada dos aumentos dos preços dos alimentos e dos serviços estoura quando a campanha salarial está nas ruas. Isso influencia os serventuários, pois se os salários já estavam ruins, ficam piores com a alta inflacionária. A necessidade de lutar para, pelo menos, minimizar as perdas salariais já é algo que se faz presente no dia-a-dia da categoria. Garantir a comida na mesa serviu como motor para a mobilização. O seu agravamento, com a quebra da maior economia do mundo, a norte-americana, explode quando nos encontrávamos no auge da nossa greve. Aí, já não é mais segredo para ninguém que os governantes vão tentar fazer com que os trabalhadores paguem o preço dessa crise, utilizando-a como desculpa para arrochar os salários.

Ao final da greve de 2007, você já apontava o papel harmônico que havia entre os Poderes. Isso se aprofundou?

Agora isso se deu de forma muito mais aguda, até porque uma greve longa também desmascara com maior facilidade essa realidade que, em outros momentos, ficaria nas entrelinhas. O que vimos nesse ano foi uma atuação conjunta dos três Poderes no sentido de derrotar os servidores, dificultando a conquista do nosso reajuste. O Executivo dizia não a tudo, o Legislativo funcionava como seu suporte e o Judiciário sucumbia aos ditames do governador e, diretamente, atuou para rebaixar a proposta de reajuste de sua própria autoria. A magistratura decidiu, de uma vez por todas, que a Justiça não é mais autônoma ou independente, se transformando em um departamento do Palácio Guanabara.

Além do reajuste salarial e da pauta interna, os serventuários insistentemente bateram na tecla de que era preciso recuperar a dignidade da categoria. Como se pode avaliar este sentimento tão generalizado?

É claro que o fator econômico foi o mais importante, mas a luta pela dignidade foi o segundo para que muitos aderissem à greve. Esse desejo, esse sentimento, pode parecer, a princípio, como se fosse algo subjetivo, mas não é. Ele só se fez tão presente porque está ligado ao dia-a-dia dos serventuários, que sofrem com o assédio moral, com as precárias condições de trabalho, a terceirização e a opressão do Poder. O resgate da dignidade tem a ver, exatamente, em negar o sucateamento e privatização do Judiciário. Fica claro, então, que a categoria também mostrou firmeza para combater a política da Fundação Getúlio Vargas, a mesma que é ditada pelo Banco Mundial. E não tenha dúvida: para destruir o serviço público é preciso subjugar quem nele trabalha. A categoria mostrou que não está disposta a aceitar isso. Essa consciência vai se fazer presente já na próxima Campanha Salarial, pois a disputa de projeto de Estado continua em aberto.

Uma das características mais marcantes dessa greve foi a constante realização de atividades nas portas dos Fóruns, além das vigílias e passeatas. Isso também ajudou para que a mobilização fosse tão forte?

Essa foi uma das táticas utilizadas para você manter o fôlego de uma greve longa. Sabíamos que esta luta não seria resolvida com uma ação isolada aqui ou acolá, pois o seu resultado viria com a resistência a um longo prazo. É lógico que estas atividades mantinham a greve viva, além de demonstrarem muita criatividade e solidariedade.

Você afirmou recentemente que a greve de 93 dias, a do início da década de 1990, apesar de sua maior duração, não foi maior que esta última. Explique isso.

A de agora teve mais presença, maior participação e adesão. Na greve de 93 dias, não fizemos assembléias ou passeatas com duas, três mil pessoas, como fizemos na deste ano. E tudo isso dentro de um marco superior que é o de que ela faz parte da reconstrução nacional do movimento sindical de luta, de combate, que busca a sua independência diante dos governos e dos patrões. É isso que explica o surgimento de tantas lideranças nessa greve, que não vão limitar o seu papel a este enfrentamento. Acredito que elas vieram para ficar e que vão cumprir um papel decisivo na futura condução do nosso sindicato.

Como você avalia a condução da greve?

Foi radicalmente democrática, num processo que foi construído no dia-a-dia. Lembro de que tínhamos a visão de que essa greve seria longa e dura e, portanto, precisaria incorporar o maior número de lutadores em sua direção, dando à base todo e total espaço para que pudesse cumprir o seu papel. Com a instalação generalizada de comandos de greve e a constituição do Comando Geral, a condução do movimento já não estava mais nas mãos da diretoria do sindicato, pois seus membros eram mais alguns dos que compunham os comandos. Na verdade, o sindicato serviu à paralisação como um suporte logístico, dispondo recursos materiais e humanos através de seus funcionários. Não quero aqui desmerecer o papel da diretoria do sindicato, mas apenas enfatizar que esta ampla democracia, que serviu para que garantíssemos a unidade do movimento, foi a que prevaleceu.

Fale mais sobre essa unidade…

Foi ela que nos tornou mais fortes e coesos, possibilitando que pudéssemos superar as dificuldades que surgiram. Se não conseguimos cicatrizar as feridas deixadas pela greve de 2007, até porque isso geralmente leva um tempo, pelo menos avançamos muito neste sentido. O fato de a recente greve ter sido dirigida pela base fez com que chegássemos a esta unidade de ação, fazendo com que as várias opiniões existentes na categoria, inclusive as de oposição à atual diretoria do sindicato, atuassem como um único exército. Um exemplo é que, no auge da crise com a diretoria da OAB-RJ, quando a direção do Sind-Justiça teve que ir para a ‘clandestinidade’, o movimento não se perdeu, continuando a ser conduzido por esta frente de luta, pela base. E, quando ela participa, como fez, das decisões, ela também se torna responsável pelo destino do movimento. Foi isso que fez a base, através do Comando Geral, ao propor a criação do Fundo de Greve quando as contas do Sindicato foram bloqueadas pela Justiça, bem no meio da greve. Mantendo este exemplo, estaremos ganhando anos de organização da categoria, inclusive na presença destes lutadores na próxima gestão sindical.

Qual foi o papel da imprensa do sindicato nesta mobilização?

Ela foi importantíssima para a greve. Com a atualização diária das notícias em nosso site, que passou a ser o principal veículo de divulgação, e com os informativos também diários, entre outros recursos, conseguimos levar, principalmente aos colegas do interior, os fatos e convocações. Foi também um momento de muita criatividade da nossa imprensa, que contribui muito para dar uma dinâmica superior à paralisação. Cito aí o Diário da Greve, que socializava o que acontecia nas Comarcas, e a vinculação em nossa página na Internet das imagens de cada local.

O que você tem a dizer sobre o papel da diretoria da OAB-RJ em relação à justa e legítima luta dos serventuários?

Foi lamentável. A OAB fluminense retrocedeu anos em sua história e vai pagar um preço alto por isso. O seu papel foi o de ‘dedo-duro’ do movimento, se submetendo aos interesses dos inimigos dos trabalhadores, fazendo o que nem o governo teve capacidade de fazer, que era o de desmoralizar e desacreditar uma greve justa. Guardadas as devidas proporções, se o que os dirigentes da Ordem fizeram agora tivesse sido na época da ditadura militar, muitos dos nossos poderiam ter sido presos ou até mesmo perdido a vida. Tudo isso não será esquecido pela categoria, pode ter certeza, até mesmo porque sequer eles fazem uma autocrítica quanto ao triste papel que cumpriram.

Do governador Sérgio Cabral Filho e da sua base parlamentar ninguém esperava nada de bom. Mas alguns ainda nutriam uma esperança quanto ao presidente do Tribunal, desembargador Murta Ribeiro. Como avalia a sua conduta?

O nosso movimento foi tão poderoso que nós tivemos a coragem de enfrentar todos os tipos de ameaça que foram feitas pelo Judiciário. A sua capitulação ao Executivo foi desmascarada, através das denúncias de diversos deputados aliados da categoria, que nos disseram que a proposta final de reajuste aprovada na ALERJ foi articulada pela presidência do TJRJ. E aqui é importante deixar claro que não houve greve consentida. Se não houve o desconto dos dias parados é porque a nossa força falou mais alto, além da conjuntura política em que vive o Tribunal, por conta das eleições da sua próxima Administração.

Vamos falar agora da ALERJ. Era possível imaginar que os serventuários iriam conseguir dividir o Legislativo?

Olha, isso era quase inimaginável há alguns meses, pois o governador já tinha dado inúmeras provas de que a sua base na ALERJ era maioria. De forma guerreira, incansável, compramos essa briga para valer. Começando com os ‘cercos’ implacáveis ao governador e aos seus candidatos às eleições para prefeitos, fomos invadindo a sua base parlamentar. Foram muitos os grupos de servidores que se dirigiram aos gabinetes dos deputados, uma enorme quantidade de e-mails enviados a eles e as vigílias em frente ao Palácio Tiradentes. O resultado foi que perdemos por uma diferença mínima de dois votos as votações do reajuste salarial, seja quanto ao índice, de 7,3% para 5%, seja quanto à sua retroatividade, onde em lugar de se respeitar a nossa data-base em maio, a ALERJ aprovou a incidência do aumento a partir de setembro. Mostramos aos demais servidores estaduais que não é fácil, mas não é impossível, derrotar Cabral dentro do Legislativo.

Você já falou sobre os acertos da greve. Mas quais foram os seus erros?

O primeiro deles, que a gente tem que tirar como lição para a próxima campanha, é que a greve precisa começar logo no início do ano. E aí não se pode ficar esperando que a Administração do Tribunal determine unilateralmente qual será o percentual de reajuste, por exemplo. A categoria precisa incidir diretamente nisso, enfrentando desde cedo o próprio Tribunal. Felizmente, já foi aprovado um calendário que nos permite criar as condições para lutarmos com muita disposição já no primeiro semestre, após estar em vigor a nossa data-base. O segundo erro foi de não termos avançado mais na discussão política da greve, preparando melhor e antecipadamente a vanguarda para os duros embates que lhe aguardava, além do conjunto da categoria, de que greve é mesmo para ser feita na porta do seu Fórum, sem assinar ponto ou aproveitar o momento para resolver questões pessoais. Outro aspecto que precisa ser dito é o de não termos tido o fundo de greve desde o início. Ele é fundamental para garantir a existência do movimento ou para garantir corte de salários que possam acontecer, por exemplo. Para todas estas falhas existem soluções, bastando somente que as apliquemos.

E qual é resultado econômico da greve?

Foi uma vitória parcial. Quanto ao reajuste, se não conseguimos aprovar o projeto na íntegra, também não ficamos sem nada. Conseguimos inclusive retirar o reajuste da pauta de votação da ALERJ no momento em que Cabral conseguiria aprovar a retroatividade a partir de novembro. É claro que temos que localizar o que foi aprovado no marco da atual situação econômica, de muita dureza para os assalariados. Sobre a pauta interna, existem itens dela que foram encaminhados ao TJRJ há quatro anos, mas que nunca foram apreciados. Retorno do Visa-Vale nos afastamentos legais e das promoções, além da concessão do auxílio-locomoção, estão na agenda da Administração do Tribunal exclusivamente pela força do nosso movimento. Fazendo uma analogia, diria que precisaríamos fazer três gols para ganhar o campeonato, mas só fizemos um. Não perdemos a partida, somos campeões morais, estamos de cabeças erguidas e provamos para nós mesmos que a categoria, quando quer, pode enfrentar tudo e todos que se colocam contra ela.

Deixe agora a sua mensagem final…

A greve foi um momento de muita aproximação dos servidores. Colegas que sequer se conheciam, apesar de trabalharem tão próximos, se tornaram solidários entre si. Ela conquistou ainda as mentes e corações de um incontável número de servidores, fazendo de todos pessoas mais humanas. Não é à toa que muitas amizades foram iniciadas, e olha que amizade de greve é algo que não se acaba de uma hora para outra. As dificuldades que atravessamos e que conseguimos, unidos e fraternos, superar, me dão a confiança em afirmar que, daqui em diante, nada será como antes!