Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Pra conhecer um pouco da realidade daqueles e daquelas que vivem com HIV e, inclusive, das expectativas diante das descobertas feitas pelos pesquisadores da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp) – leia o artigo –, conversamos com Felipe Fernandes, 25 anos, operador de telemarketing, estudante de História e Enfermagem e militante do PSTU há seis anos.

Felipe, natural de Volta Redonda (RJ), hoje, vive em Natal (RN), com seu companheiro, e milita no Coletivo Auroras pela Revolução e no Setorial LGBT Nacional da CSP-Conlutas.

Felipe, nos fale um pouco sobre quando e como você se descobriu portador do HIV?

Olha, foi por volta de 2017. Estava doente, com tosse, perdendo peso, vomitando, com muita febre. Minha prima desconfiou e pediu para eu fazer o exame.  Aceitei. Eu já era do PSTU nesse período. Falei com uma dirigente do partido e ela também me apoiou para que eu fizesse o teste. Numa tarde, fui a uma Unidade Básica de Saúde (UBS), em Volta Redonda. A enfermeira e toda a equipe me receberam muito bem. E, aí, ela disse: “Então…seu teste deu positivo e eu vou te encaminhar para o CDI (Centro de Doenças Infecciosas)”

Foi um baque, com certeza…

Sem dúvidas… Por acaso, naquele mesmo dia, eu já tinha um compromisso no meu terreiro de candomblé, porque tinha função à noite. E digo isso com orgulho, pois sabemos que as religiões de matriz afro, afro-brasileira ou afro-indígena sofrem muitos preconceitos e ataques diariamente, apesar de serem exemplares no acolhimento. Cheguei lá aos prantos e me perguntaram o que tava rolando e eu respondi que eu estava com HIV, que o teste deu positivo. Eles não me julgaram. Me acolheram e deram apoio. Depois, fui pra casa da mesma dirigente do partido. Ela não sabia ainda do resultado.  Cheguei normal, calmo, sentei com ela na mesa e disse “amiga, estou com HIV”. Ela ficou em choque, chorou. Mas, me confortou, não me julgou e super me apoiou. Na família, infelizmente, não foi bem assim… Alguns familiares, por parte de pai, falaram que isso era castigo de Deus.

E dá pra imaginar que os problemas não se restringiram à família, considerando, ainda, que você é um jovem gay…

Primeiro, não faltou quem me julgasse, dizendo que eu era promíscuo. Tive minha sorologia revelada por uma mulher que era da igreja do meu avô e trabalhava onde eu fazia o tratamento. Ela saiu falando para a igreja que eu tinha HIV.  Quando as pessoas me encontravam na rua diziam que tinham ficado sabendo que eu estava com “Aids”. E, logo depois, em uma entrevista de emprego, me perguntaram se eu tinha alguma doença pré-existente. Eu disse que sim, que era soropositivo. Disseram então que tinham medo de me contratar e eu adoecer no serviço.

Mas, infelizmente, a situação não é nada fácil mesmo dentro da comunidade LGBT. Depois da descoberta, no âmbito afetivo, sofri muita sorofobia [discriminação, marginalização e preconceitos em relação às pessoas chamadas de soropositivas]. As pessoas são muito sorofóbicas. E muitíssimo mal informadas. Se afastavam por medo de contrair o vírus através de um simples abraço.

Em 7 de julho, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) divulgaram resultados de um estudo considerado bastante promissor, já que um dos pacientes entrou num processo de “remissão”. Como você recebeu esta notícia?

Eu fiquei muito feliz, porque é um avanço na ciência e mostra a importância de investir em pesquisa, educação e saúde. E, ainda mais, porque essa pesquisa foi desenvolvida em uma universidade pública, que sofre tantos ataques do governo Jair Bolsonaro.Tenho expectativa de que os testes continuem tendo resultados positivos.

Gostaria que todo esse conhecimento produzido fosse voltado para as necessidades da nossa classe. Mas não tenho muita ilusão. Somente numa sociedade socialista isto será possível, de fato, já que indústria farmacêutica é um dos alicerces do capitalismo. Prova disto é que, hoje, mesmo com todos os medicamentos disponíveis, somente cerca de 25 milhões, das mais de 40 milhões pessoas vivendo com HIV no mundo, têm acesso aos tratamentos.

Coincidentemente, o anúncio foi feito no mesmo dia em que se completaram 30 anos da morte de Cazuza, que, infelizmente, se transformou num símbolo do enorme preconceito, nos anos 1980, quando epidemia da Aids ganhou as manchetes dos jornais como “a peste gay”? Como esta isto que, hoje, considerando, inclusive, que, desde 2014, há um artigo na Constituição define o crime de discriminação aos portadores do HIV?

Até hoje sofremos sorofobia porque a mídia burguesa e as instituições religiosas fundamentalistas e aliadas à burguesia ainda reforçam que o HIV é o “câncer gay” e que a doença só se propaga no meio LGBT. Uma lei não vai garantir a extinção desse preconceito, pois o judiciário não está a serviço da nossa classe, por isso devemos nos organizar e lutar por nossas pautas democráticas.

Prova disto é que, depois de décadas de lutas, o Supremo derrubou, somente em maio passado, uma norma criminosa que impedia que homens gays doassem sangue. Primeiro, não foi um “presente” do STF. E mais: sabemos muito bem que nada garante que os hemocentros, principalmente os da rede privada, não continuem criando restrições.

Você faz parte de uma geração que cresceu tendo acesso aos medicamentos e tratamentos garantidos pelo Programa Nacional de DST e Aids e oferecidos pelo SUS. Como tem sido sua experiência com estes serviços? Houve mudanças com a chegada do Bolsonaro ao poder?

O tratamento é uma vitória para nossa geração, que consegue receber a medicação gratuitamente. No entanto, a saúde das trabalhadoras e trabalhadores não é prioridade para o sistema capitalista. Faltam investimentos nessa área social. Bolsonaro só aprofunda o desmonte do SUS. Além disso, ajuda a reforçar preconceitos contra pessoas soropositivas. Exemplo disso são suas políticas em relação ao HIV/Aids no Brasil. Ele rebaixou o Departamento de HIV/Aids a uma Secretaria e, se não bastasse, afirmou, em fevereiro, que somos “uma despesa para o País”. Mais um exemplo de que ele não passa de um genocida.

Uma “despesa” fundamental para preservar a vida de centenas de milhares, certo?

Exato. No Brasil, a cada ano, são detectados cerca de 40 mil novos casos de contaminação por HIV. E calcula-se que dos 900 mil brasileiros com HIV, só 766 mil foram diagnosticados e somente 594 mil fazem tratamento com antirretroviral. Eu, felizmente, iniciei o tratamento assim que descobri minha sorologia. Tomo o Tenofovir +  Lamivudina e Dolutegravir. No meu caso, foi fácil ter acesso ao tratamento, mas há cidades em que falta a medicação. Tenho um amigo em Manaus, por exemplo, que não tem acesso aos medicamentos.

Como militante LGBT, fale-nos um pouco sobre como a história do movimento foi marcada pelo advento da epidemia e como ele influenciou os avanços que conseguimos no acesso ao tratamento.

Todos os avanços que temos, até hoje, são fruto de muita luta. Muitas LGBTs e pessoas de outros setores da sociedade também soropositivas tombaram para que pudéssemos estar aqui. Alguns dos avanços que estamos tendo estão vindo pelo Supremo Tribunal Federal, como já disse, mas não podemos nutrir esperanças nessa instituição. Por outro lado, sabemos que ao se colocarem na linha de frente nas campanhas de prevenção, nos 1980, muitas entidades LGBTs se deixaram cooptar por instituições governamentais e privadas. Um problema que se reflete até hoje.

O HIV/Aids continua um tabu para a maioria dos brasileiros. Como é isto na nos movimentos? Tem algo que você gostaria de dizer pra quem milita cotidianamente contigo?

A discussão sobre o HIV/Aids deve ser fortalecida dentro dos movimentos. É uma tarefa, também, para todos os militantes revolucionários lutar contra toda forma de opressão, inclusive a sorofobia. E é preciso avançar na discussão. As pessoas, inclusive nossos companheiros e companheiras, ainda confundem HIV com Aids. Temos que desconstruir o estereótipo de que as LGBTs são as únicas pessoas que podem contrair o vírus. Além disso, devemos alinhar o debate contra as opressões à luta de classes.

É preciso que todo mundo se informe melhor. Viver com HIV NÃO é a mesma coisa que ter Aids. Fazendo uso dos antirretrovirais corretamente, temos uma vida normal com a carga viral indetectável, não transmitimos o vírus, e fortalecemos nosso CD4 (células do sistema imunológico, os linfócitos, capazes de combater agentes infecciosos) e não desenvolvemos a Aids. A medicação é que nos mantém vivos.

O que é, pra você ser portador do HIV e um militante pela revolução socialista?

Ser portador do HIV me impulsiona ainda mais a lutar pela revolução socialista. Incluindo, também, o combate às opressões e à sorofobia, porque, como discutimos sempre, a luta contra as opressões deve estar lado a lado da luta da nossa classe. Pessoas ainda morrem por não terem acesso ao tratamento e acabam desenvolvendo a etapa mais avançada do vírus, a síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids), e, com o sistema imunológico fragilizado, podem contrair doenças oportunistas e morrer.

Viver com HIV não impede de eu ser igual aos outros. É importante que lutemos pelo fortalecimento do SUS e de políticas de prevenção e combate ao HIV/Aids, e contra toda forma de opressão, e mais, fortalecer nas lutas contra esse sistema que nos oprime, explora e nos mata. É importante reforçarmos a construção de uma nova sociedade, uma sociedade socialista.