Pedro Henrique Ferreira, da Juventude do PSTU e da Secretaria Nacional LGBT

No último dia 7 de julho, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) divulgaram os resultados de um estudo bastante promissor a respeito do tratamento do HIV, o vírus cuja infecção, em seu último estágio, pode provocar a chamada “Síndrome da Imunodeficiência Adquirida”, ou a Aids.

O resultado tem importante significado para o combate ao vírus e traz esperanças para as pessoas que convivem com HIV, na medida em que, pela primeira vez, no mundo, um paciente tratado com medicação específica chegou ao processo de remissão (ou seja, não foram mais registrados sinais da doença e/ou presença do vírus). Anteriormente dois pacientes haviam sido curados, mas o tratamento havia sido baseado em transplante de medula e o doador possuía uma mutação rara que o tornava resistente ao vírus.

Como o infectologista Ricardo Sobhie Diaz Apesar, coordenador da pesquisa, declarou em entrevista no site da Unifesp, ainda é cedo para falarmos em “cura”; no entanto, os resultados confirmam que isto é possível. Segundo ele, o próximo passo será, depois de uma série de análises neste paciente e outros seis que estão sendo estudados, “suspender todos os medicamentos de um deles e acompanhar como seu organismo irá reagir ao longo dos meses ou, até mesmo, dos anos (…). Caso o tempo nos mostre que o vírus não voltou, aí sim, poderemos falar em cura.”.

Essa é certamente uma notícia a ser comemorada por todos e todas, particularmente por quem vive com o HIV (leia a entrevista com nosso militante Felipe Fernandes), como também, um exemplo da importância da pesquisa e do estudo científico, principalmente nas instituições públicas. Contudo, antes de apresentarmos mais alguns detalhes sobre o estudo, vale lembrar contra o que os pesquisadores estão lutando.

No mundo, números de um genocídio ainda silenciado

Para se ter uma ideia do que estamos falando, é importante que se conheçam alguns números fornecidos tanto pela Unaids (o órgão da ONU que se dedica ao tema) quanto pelo Boletim epidemiológico HIV/AIDS 2019, do governo brasileiro.

Desde o surgimento da epidemia, no início dos anos 1980, o HIV já contaminou, mundo afora, cerca de 75 milhões de pessoas (número que pode chegar a 98 milhões, considerando-se a subnotificação). Calcula-se que, neste mesmo período, 32 milhões (ou 43 milhões) morreram em decorrência de doenças provocadas pela Aids, sendo que, somente em 2018, foram 770 mil mortes.

Hoje, existem entre 38 milhões e 44 milhões de pessoas vivendo com HIV, mas somente cerca de 25 milhões delas têm com acesso à terapia antirretroviral; ou seja, à combinação de medicamentos que inibe a multiplicação do HIV no organismo, permitindo que o/a portador controle a sua evolução.

Por trás destes números se esconde uma realidade constante em nosso mundo: o HIV tem como seu principal aliado a exploração capitalista, que nega até mesmo o direito básico ao tratamento e prevenção a 19 milhões de pessoas soropositivas, em sua esmagadora maioria trabalhadores e pobres.

Também vale ressaltar que, há muito distante do estigma de “câncer gay” (ainda que isto ainda contamine a cabeça de muitos e muitas, particularmente de figuras como Bolsonaro), o vírus tem se manifestado em absolutamente todos os setores da população, faixas etárias, condições sócioeconômicas, identidade de gênero ou orientação sexual, apesar de que, no mundo, 54% dos novos casos ocorram entre usuários de drogas, homossexuais, transgêneros, trabalhadores do sexo e prisioneiros.

O fato é que, evidentemente, a combinação de falta de acesso à informação e aos serviços de saúde, como sempre, faz com que a epidemia seja ainda mais letal dentre os mais explorados e oprimidos. Apenas para citar um dado, na África Subsaariana, quatro em cada cinco de novas infecções entre adolescentes de 15 a 19 anos acontecem em meninas.

No Brasil, também uma questão de raça e classe

Em nosso país, estima-se que, hoje, cerca de 900 mil pessoas vivam com o vírus HIV. Contudo, desde o início da epidemia (nos anos 1980) até 31 de dezembro de 2018, foram notificados no Brasil 338.905 óbitos tendo o HIV/Aids como causa básica E, lamentavelmente, segundo a Unaids, e na contramão da tendência mundial, entre 2010 e 2018, houve um aumento (de 21%) no número de novas infecções e, nos últimos cinco anos, o país tem registrado, anualmente, uma média de 39 mil novos casos de Aids.

E o perfil social da epidemia segue a mesma lógica perversa de um país cuja História se confunde com a opressão racial. Segundo o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan, que coleta dados gerados pelo Sistema de Vigilância Epidemiológica), entre os novos casos registrados no período de 2007 a junho de 2019, entre os homens, 42,6% ocorreram entre brancos e 48,1% entre negros (somando-se os que se declaram pretos ou pardos).

E entre as mulheres, a diferença é ainda mais gritante: 37,2% dos casos se deram entre brancas e 53,6% entre negras. E quando analisamos os casos em que o vírus evolui para a “síndrome de imunodeficiência adquirida” os números são ainda mais reveladores sobre como a opressão potencializa a epidemia. No mesmo período, observou-se queda de 20,0% na proporção de casos entre pessoas brancas; enquanto entre as negras, a redução foi de apenas 1% e, de forma assustadora, dentre os indígenas houve um aumento de 100%.

E como não poderia deixar de ser, os casos fatais acompanham o mesmo perfil. Nas mortes notificadas no ano de 2018, observaram-se 59,8% entre negros e 39,5% entre brancos, sendo que a taxa de óbitos entre mulheres negras foi superior à observada em homens negros: 61,5% e 59,0%. O que, insistimos, não tem nada a ver com “características” desta camada da população, como discutiremos abaixo; mas, sim, a localização social e econômica do povo negro.

Avanços da ciência, obstáculos do sistema

Os pacientes voluntários que participaram da pesquisa passaram por tratamento que combinou novas medicações antirretrovirais (conhecido como “coquetel”). Dentre os 30 voluntários que participaram do experimento, como comentamos no início, um entrou no processo chamado de remissão, ou seja, os exames específicos não identificam mais o vírus nem marcadores imunológicos de sua presença no organismo.

Apesar de que a descoberta da cura ainda pode levar anos, com certeza, esses novos estudos significam um avanço importante e são resultado de um longo processo de busca por um tratamento ou cura de uma doença que, inicialmente, implicava num rápido desenvolvimento de todos os sinais e sintomas da imunodeficiência e reduzia drasticamente a expectativa de vida dos portadores do vírus.

Desde então, diversos protocolos de tratamento foram desenvolvidos e são efetivos tanto para o controle da infecção quanto para adiar ou evitar o desenvolvimento da imunodeficiência. E graças à luta constante e, muitas vezes, radicalizadas daqueles e daquelas que, no início da epidemia, foram estigmatizados como “grupos de risco” (com destaque para as LGBTs), não só houve avanço na produção de medicamentos, como também, no caso de vários países, em sua distribuição gratuita na rede de saúde.

Contudo, como vimos, estamos muitíssimo longe de uma situação ideal mesmo neste campo. E não é à toa, como os dados indicam, que quanto maior a marginalização e menor a renda, maior seja a incidência do vírus. Isso se dá justamente pela falta de acesso aos meios de prevenção, aos serviços de atenção básica à saúde e às informações sobre o tema.

E, junte-se a isso o fato de que, ainda hoje, na tentativa de justificar essas desigualdades em relação a maior incidência e prevalência do vírus, governos e instituições continuam pregando concepções preconceituosas, opressoras e pseudocientíficas que tentam apontar grupos sociais específicos (seja pela nacionalidade, raça, identidade de gênero ou orientação sexual) como sendo mais propensos a contrair e disseminar o vírus.

Os interesses dos ricos e poderosos  no HIV

Essas “teorias” tentam esconder o verdadeiro motivo desses dados: a profunda desigualdade socioeconômica no capitalismo, a total ausência de direitos mínimos e a opressão às quais estão submetidos, por exemplo, mulheres, negros e LGBTs da classe trabalhadora.

A ciência, assim como todas as práticas humanas nesta sociedade, está sob influência e controle do capital. Descobertas científicas como a da Unifesp são raras e demonstram a necessidade de investimento público em pesquisa cientificas que possibilitem que avancemos na busca pela cura.

Grandes conglomerados farmacêuticos controlam boa parte da pesquisa e da produção de medicamentos, lucrando com a doença e a morte da classe trabalhadora e seus setores mais oprimidos. Para se ter uma ideia, para quem não tem acesso gratuito às medicações específicas para o controle do HIV, somente uma ampola de Imunoglobulin (que deveria ser tomado várias vezes por alguns pacientes), custa cerca de R$ 920,00.

Não bastando o controle absoluto sobre o tratamento, a indústria farmacêutica, hoje, encampa uma grande campanha pelo uso da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) como maneira prioritária de prevenção à infecção pelo HIV. Esta medida, na prática, é a utilização de medicações antirretrovirais por pessoas que não estão infectadas e se utiliza dos conceitos preconceituosos e LGBTfóbicos de “grupos de risco” sob o novo nome de “população chave”.

No Brasil, a política do governo Bolsonaro e Mourão é de desmonte do SUS e dos programas específicos de combate e prevenção ao HIV. Esta política se resume na declaração dada por Bolsonaro de que pessoas com HIV significariam “despesa para todos os Brasileiros”.

Por isso, também na luta pela cura do HIV, também não podemos confiar na burguesia e seus governos, que colocam o lucro e a “saúde da economia” à frente da vida dos trabalhadores e trabalhadores. Devemos, sim, exigir mais verbas e melhores condições de trabalho para os cientistas e pesquisadores das universidades e laboratórios públicos.

A luta pela cura (e, até lá, pelas condições dignas de vida para os portadores) deve ser também a luta contra o capitalismo. Para garantir o direito a saúde pública, gratuita, universal e de qualidade precisamos construir uma sociedade socialista onde os trabalhadores tenham suas necessidades atendidas e onde suas vidas valham mais que o lucro!