Foto: reprodução de redes sociais
Maria Costa

Dezenove horas, saí de um plantão extenuante numa emergência na Zona Oeste, eu e uma colega olhamos o aplicativo para ver qual dos caminhos para o Centro tinha menos trânsito: Avenida Brasil sem engarrafamento. Sem pensar duas vezes, escolhemos esse caminho, desejando chegar o mais rapidamente possível em casa e descansar o corpo cansado de 12 horas de trabalho.

Já quase no meio do caminho, poucos quilômetros depois de Guadalupe, vejo um carro virando na contramão numa saída da Brasil, comento com a minha colega: “a quantidade de loucos que dirige é impressionante, não sei como não tem mais acidentes”. Mal terminei de fechar a boca, vi a cena que me fez entender que não era nenhum tipo de loucura o que fez alguém tentar sair na contramão na Avenida Brasil, mas desespero. Na minha frente, todos pararam, várias pessoas saíam rapidamente dos carros e procuravam abrigo na mureta da estrada. Escuto aquele estalido seco, que parece o estouro de uma pipoca, mas muito mais alto, bem perto. Estávamos no meio do tiroteio entre polícia e traficantes na Avenida Brasil, à noite, no escuro.

Nos agachávamos o máximo possível dentro do carro, enquanto ouvíamos as sequências de tiros cada vez mais perto. A minha colega começou a chorar e a dizer repetidamente “eu não quero morrer”. “Não vamos morrer” – eu respondia –, vai ficar tudo bem”. Não que eu acreditasse firmemente nisso, mas não queria eu mesma entrar em pânico.

Houve uma breve suspensão do som de tiros, levantei cuidadosamente a cabeça para ver o que estava acontecendo. Então, entendi por que muita gente tinha saído do carro. Um moço jovem se esgueirava entre os carros com um fuzil na mão, parou atrás de um deles e apoiou o fuzil apontando para o outro lado da avenida. Me abaixei imediatamente, no mesmo momento em que o som de tiros recomeçou. Passaram intermináveis minutos de tiroteio intenso. Até que veio o silêncio, as pessoas que estavam na mureta começaram a se levantar com medo e depois correram rapidamente para os carros. “Vamos! Vamos meter o pé rápido!”

Cheguei em casa viva e sem ferimentos, algo que deveria ser normal e inquestionável, mas, em meio ao Estado de Exceção do Rio, não é. Fui procurar notícias para entender o que tinha acontecido. “Avenida Brasil é fechada durante tiroteio; ação da PM destruiu estrutura de baile na rua em Vigário Geral. Ocorrência policial ocorreu no fim da tarde de sexta na altura de Parada de Lucas. Segundo investigação, festa comemoraria 15 anos de ocupação da região por facção criminosa.”

A PM achou por bem colocar centenas de pessoas, que voltavam do trabalho, em risco num tiroteio no meio da Avenida Brasil, ao final do dia, numa sexta à noite para destruir uma estrutura onde teria um baile. É de uma irracionalidade sem limites. O suposto governo que supostamente deveria proteger a população é o que deliberadamente a coloca em risco em nome de uma guerra inglória. Uma guerra que decorre há mais de 30 anos e nem de longe acabou com o tráfico de drogas, e com certeza a destruição de um baile de favela também não vai mudar nada.

E o que fizeram na Brasil é o que fazem todos os dias nas periferias e favelas do Rio, colocam em risco milhares de pessoas, trabalhadores, idosos e crianças. Fora dos cartões postais da Zona Sul, o Rio vive uma guerra, o Estado demonstra a sua verdadeira e sangrenta face, a do gendarme que protege os interesses dos bilionários da Zona Sul à custa da vida dos trabalhadores pobres.

Como escrevi num artigo anterior, Bolsonaro e Cláudio Castro são os atuais mandantes dessa política de terror nas periferias. Mas a história não começou agora: “essa política oficial de extermínio encontrou solo fértil no Rio por conta das políticas de “segurança” dos últimos 20 anos que na prática tornaram as favelas do Rio num território de Estado de Exceção. A aprovação da Lei Antidrogas e do uso recorrente da Garantia da Lei e da Ordem no Rio e da ocupação militar sancionadas constantemente pelos governos do PT consolidaram a ideologia da criminalização da pobreza e da autorização do Estado para matar na favela.” Bom, como eu mesma testemunhei ontem, não só na favela.

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