Maria Costa, médica do SUS

Atendemos mais de cem crianças, disse-me o João, meu colega de plantão… Bizarro, como se diz por aqui, mas não foi a quantidade de crianças atendidas que me esgotou neste plantão em particular, foi a barbárie espelhada nessas 12 horas.

Hoje de manhã, ao deslizar a minha timeline, vejo um post da prefeitura do Rio: “o maior espetáculo da Terra está de volta”. Alegria, exuberância e folia é a cara que os governantes do Rio querem mostrar para os turistas, na Sapucaí e nos luxuosos bairros da zona Sul. Na zona oeste, onde trabalho, a cara do Rio é outra, é degradação, desespero, fome, revolta.

Normalmente o movimento nas emergências começa a aumentar mesmo só depois das 9h30-10h da manhã; ontem, em plena sexta, feriado de Carnaval, as crianças começaram a pipocar cedo, 8 horas e a tela não ficava vazia. Comentei com o João: “Quem disse que o plantão hoje seria tranquilo?”

Quando cheguei, a sala de internamento estava vazia. Às 10 da manhã, já tínhamos internado uma criança. Esforço respiratório grave, tinha sido diagnosticada com bronquiolite havia dois dias, mas não fez o tratamento em casa. “Por quê?” – perguntamos – “não tinha a bombinha na UPA nem na Clínica da Família e não consegui comprar.”

Os casos foram se sucedendo, incontáveis bebês chegavam com falta de ar e de atenção. Mas não me refiro à atenção dos pais, mas à atenção do Estado, dos seus governantes. Trabalho há vários anos no SUS na Zona Oeste do Rio, o “falta de” sempre foi uma constante. Falta de emprego, falta de transporte, falta de serviços de saúde, falta de escolas, falta de comida. Mas nesses anos nunca tinha visto tanta “falta” como nos últimos meses.

No “que falta”, quero ressaltar algo, que noto mais pela área em que estou, as Clínicas da Família. O serviço sempre esteve longe de ser maravilhoso. Na verdade, sempre esteve longe de ser razoável. Mas tudo pode piorar. A contrarreforma da atenção básica do Crivella desestruturou por completo a atenção básica e, claro, Paes não fez nada para sequer voltar ao ruim que era antes do prefeito-bispo. A falta de acesso às Clínicas da Família deixou milhares de crianças sem acesso a acompanhamento adequado nos dois primeiros anos de vida, e o resultado vemos no espetacular aumento no número de atendimentos nas emergências. Não só em quantidade, em gravidade também.

Hora do almoço, a duras penas conseguimos nos dividir para almoçar. Deslizo de novo a tela das redes sociais enquanto como apressada o frango com arroz e feijão com sabor do molho de pimenta que generosamente coloquei na comida, para sentir algum sabor. Raquel morreu.

Raquel, a menina de 11 anos que teve as pernas esmagadas por um carro alegórico no momento da dispersão. Depois, uma sucessão de notas de pesar e solidariedade, entre elas da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA) e do prefeito Eduardo Paes. “Vamos acompanhar de perto a investigação policial que apura as responsabilidades(…), disse Paes. Li, reli, “apurar responsabilidades” pela morte de uma criança negra, no Rio de Janeiro?

Ágatha, João Pedro, e as mais de 80 crianças mortas em operações policiais desde 2005 são testemunhas de que, quando se trata da morte de crianças negras, por ação direta ou omissão do Estado, a culpa morre solteira. Já é categórico o quão insignificante é a morte desta criança para a prefeitura e também para os grandes chefes das escolas de samba. Os desfiles continuam mesmo estando claramente demonstrado que não existem condições de segurança absolutamente nenhuma. “The show must go on”¹.

Recomponho-me, não tenho outra alternativa, João precisa almoçar e temos mais de 10 crianças na fila de espera.

Chego no consultório, abro a porta estabanada, na pressa de deixar João ir para o desejado intervalo de almoço. Vejo uma criança sentada na maca, escuto-o falar: “ela está muito magra”, e demoro alguns segundos para me conscientizar do que está acontecendo, não por raciocínio lento, mas pelo olhar daquela criança, um olhar que me paralisou, um olhar vago, de uma tristeza sem fim, a tristeza da fome.

Podia ver as costelas delineadas na pele emagrecida, a barriga distendida. A imagem das crianças dos anúncios dos médicos sem fronteiras me veio à cabeça. Perguntei a idade e o peso: 4 anos e o peso de um bebe de 1 ano. Arrastei-me até o final do plantão. O olhar triste e vago daquela criança não me saiu da cabeça, até agora.

Terminamos o plantão com a sala de internação da pediatria lotada e o forte sentimento de que poderia ser diferente. Pode ser diferente.

No Rio de Janeiro, 11 bilionários nadam em mais de 400 bilhões de reais. Uma fortuna suficiente para resolver todos os grandes problemas do Rio, uma fortuna que podia tornar os plantões na Zona Oeste mais tranquilos. Não por causa da minha quantidade de trabalho, mas para resolver as condições sociais que tornam os plantões tão difíceis. 400 bilhões de reais para os luxos de 11 bilionários e mais meia dúzia dos seus familiares de um lado e quantas crianças passando fome do outro?

De um lado, os interesses escusos dos chefes da LIESA e da Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIERJ), fielmente atendidos pela Prefeitura; do outro, os trabalhadores que tornam “o maior espetáculo da Terra” possível, e a população pobre que, com muita justiça, quer se divertir um pouco e aliviar os sofrimentos dos últimos anos.

Toda essa riqueza esbanjada por esses bilionários é obra da classe trabalhadora, é fruto do seu trabalho. Nada mais justo que eles paguem pela crise, que reponham, até o último tostão, os serviços de saúde, de ensino; o transporte; e a comida no prato que falta à população trabalhadora do Rio.

Isso não pode ser feito em aliança com esses mesmos empresários bilionários cujo único interesse é aumentar os seus lucros bilionários que espalham a fome e a miséria como pragas. É preciso uma alternativa política que seja independente dos parasitas desta sociedade, uma alternativa da classe trabalhadora e que sirva aos interesses da classe trabalhadora. Uma alternativa que se apoie nas lutas dos trabalhadores e do povo pobre e que tenha como estratégia uma sociedade em que não haja miseráveis de um lado e bilionários do outro.

Aqueles que trabalham é que devem governar e distribuir a riqueza de forma justa e igualitária. É preciso uma revolução socialista, para que nunca mais se veja aquele olhar triste e vago na maca de uma emergência pediátrica, para que nunca mais “o maior espetáculo da Terra” seja manchado pelo sangue de uma criança.

¹ “O show tem que continuar”, em tradução livre.