Cerimônia de privatização da Eletrobras Foto MME

O escândalo da fraude bilionária nas Americanas levantou novamente o tema da privatização da Eletrobras, levada a cabo no ano passado pelo governo Bolsonaro. O motivo: o maior acionista preferencial que abocanhou a estatal é a 3G, dos mesmos bilionários que roubaram as Americanas: o trio Jorge Paulo Lemann, Marcel Hermann Telles e Carlos Alberto Sicupira.

Após a pulverização da Eletrobrás e a sua venda na Bolsa de Valores, a 3G ficou com 10,88% de suas ações. Coincidentemente, a mesma PwC, a gigante internacional de auditoria e consultoria que ajudou a esconder o rombo nas Americanas por mais de uma década, foi a mesma que avalizou a venda da estatal de energia, jogando seu valor lá pra baixo. Mas o que tem a ver o debacle das Americanas com a Eletrobras, além da presença do trio de bilionários e a auditoria picareta da PwC?

Lemann se tornou o maior bilionário do país com um estilo de gerenciamento predatório e parasitário, visando o lucro imediato acima de qualquer coisa. Entra num negócio, promove um enxugamento brutal do quadro de trabalhadores, superexplora os que restam instalando um verdadeiro clima de terror e pressão, e turbina os dividendos dos acionistas e bônus dos executivos atrelando-os aos resultados. Pilhagem pura e simples. Se é verdade o capitalismo é movido pela busca incessante de lucros e a superexploração, o modelo seguido por Lemann, importado do exemplo da General Eletric nos EUA, leva isso até as últimas consequências.

Voltando à Eletrobras, a Associação dos Empregados da Eletrobras (Aeel) mostra que, no pouco tempo em que exerceu sua influência sobre o Conselho de Administração da ex-estatal, o trio já conseguiu impor sua marca, alterando a política de dividendos. “Além disso, agraciou seus executivos com aumentos de 400% e adotou um novo método para premiar seus executivos com uma remuneração variável baseada em ações“, denuncia a associação. Ou seja, menos custos, mais lucros e mais bônus.

Se antes da privatização, o Conselho Nacional dos Eletricitários (CNE) já previa um aumento de 25% nas contas de luz nos próximos anos, essa lógica de gestão deve elevar ainda mais a carga sobre o consumidor. Como adverte a Aeel, “está cada vez mais claro que esse modelo de gestão produz apenas resultados de curtíssimo prazo, levando a grandes desastres em médio e longo prazo“.

Crime de lesa-pátria

É preciso dar a dimensão exata do que representa a Eletrobras e do tamanho do roubo que é a sua privatização. Estamos falando da maior companhia elétrica da América Latina, dona de quase metade de todas as linhas de transmissão de energia do país, responsável por 30% da energia gerada no Brasil. Ou seja, uma empresa fundamental e estratégica para a área de produção e distribuição de energia. Possui nada menos que 35 usinas hidrelétricas, 9 termelétricas e 20 usinas eólicas.

A privatização ocorreu através da oferta de ações da empresa no mercado, proibindo o Estado de adquiri-las. Desta forma, dilui-se o seu peso, que foi reduzido a 42% da empresa e, mesmo assim, com apenas 10% de seu capital votante. O valor arrecadado com o que, na prática, foi uma venda da empresa, foi de R$ 33,7 bilhões, um montante um pouco maior dos R$ 30 bilhões que a Eletrobras teve de receita apenas no ano de 2022.

Um valor de venda que se aproximou do estabelecido pela PwC, que avaliou a estatal em R$ 30 bilhões num momento em que a empresa tinha, só em caixa, R$15 bilhões, além de R$ 44 bilhões para receber nos quatro anos seguintes. A agência de auditoria ainda refez as planilhas da empresa, e transformou um lucro de R$ 1 bilhão no primeiro trimestre de 2022, num prejuízo de R$ 88 milhões nos dois trimestres seguintes. O contrário das Americanas, onde esconderam um rombo bilionário.

Com a venda da Eletrobras, os investidores ganham duas vezes. Primeiro, comprando a empresa a preço de banana através de avaliações fraudadas, e depois, impondo um regime à lá Lemann, que significa mais lucros para eles, e o aumento na conta de energia para a população. Exemplo disso é a cláusula do contrato de privatização que estabelece a “descotização”. Hoje, parte da energia produzida é concedida a preços mais baixos a todo o sistema. Com a privatização, essa parte passa a ser negociada no mercado privado, com os preços lá em cima.

Isso não é tudo. Outro ponto do contrato, esse ainda mais inexplicável, obriga a contratação de energia de termelétricas a gás, muito mais cara e poluente. Essa obrigação demandaria a construção de usinas e gasodutos, num custo que poderia alcançar até R$ 98 bilhões segundo estimativas, tudo bancado pela população. Só isso representaria um aumento de 6,8% até 10,9% na tarifa da energia entre 2026 e 2030, prazo estabelecido pela lei para a contratação dessas termelétricas.

E para dificultar uma eventual reestatização da empresa, seu contrato de venda ainda impôs que, para um acionista ser majoritário, deve comprar as ações por um valor no mínimo 200% acima de seu preço. Ou seja, para o Estado recomprar as ações vendidas na privatização, deveria pagar no mínimo o triplo de seu valor de mercado. Se para vender o governo arrecadou R$ 33 bilhões, para recomprar teria que desembolsar mais de R$ 167 bilhões, em valores de hoje. Essa cláusula, sem precedentes ou paralelo em qualquer outro país, foi colocada justamente para evitar um processo de reestatização que vem ocorrendo em vários lugares do mundo que privatizaram serviços públicos essenciais, como energia, e estão tendo agora que voltar atrás.

Amapá mostrou o futuro do país

Os efeitos da privatização e da desnacionalização do setor elétrico, porém, não devem vir apenas na conta de luz. Em novembro de 2020, a população do Amapá sentiu isso na pele num dos maiores apagões da história do país. Foram 22 dias sem energia elétrica num estado que conta com quatro hidrelétricas, mas cuja gestão é encabeçada pela empresa privada LMTE (Linhas de Macapá Transmissora de Energia), controlada pelo grupo Gemini Energy, que por sua vez é tocado pelo fundo de investimento internacional Starboard Asset.

Crise de energia no Amapá, apagão em Macapá. protestos no bairro de Santa Rita em 07 de novembro de 2020(Foto: Rudja Santos/Amazônia Real)

O apagão foi causado por um transformador queimado, que sobrecarregou um segundo. Um terceiro gerador, que deveria estar funcionando justamente para ocasiões desse tipo, estava quebrado e esperando manutenção há mais de um ano. A omissão da empresa causou a pane e gerou o caos à população de todo um estado.

O Amapá foi um exemplo do que é ter um serviço essencial como a energia elétrica entregue aos grandes grupos privados e internacionais. Agora, imagine uma gestão privada atuando com a lógica de Jorge Lemann, que leva a predação e pilhagem até a última consequência, e não se satisfaz até conseguir sugar tudo o que o setor tem a oferecer de lucro, nem que para isso tenha que destruí-lo através de demissões, superexploração ou do roubo puro e simples. Com a diferença de que, aqui, não estamos falando de uma empresa do varejo, mas de uma megaempresa à frente de um setor essencial e estratégico.

Pela reestatização da Eletrobras, sob controle dos trabalhadores

Lula vem dando declarações contra a privatização da Eletrobras, mas até agora não tomou qualquer medida concreta para isso. Tanto que o mercado sequer considera essa possibilidade, pois sabe que, nem o governo, ou o Congresso Nacional, farão isso.

É preciso que a classe trabalhadora tome para si essa campanha, exigindo a reestatização da Eletrobras e de todo o setor elétrico, sem qualquer indenização, muito menos pelos critérios absurdos estabelecidos no contrato de privatização. Mais do que isso, é preciso tirar a empresa do controle dos grandes fundos de investimento e bilionários e colocá-la sob controle dos trabalhadores, para que atue em benefício da população e da soberania do país.