Américo Gomes, do Instituto José Luís e Rosa Sundermann

Não há dúvidas de que está ocorrendo no Peru uma insurreição popular que tem à frente os setores mais explorados do proletariado e do campesinato, que vêm da região mais pobre do país: o Sul. Este processo está levando o governo e o regime a uma crise colossal, à qual estão respondendo com uma repressão brutal, lembrando as épocas da ditadura.

Isso já fez com que o Congresso Nacional, depois de já ter adiantado as eleições para 2024, esteja discutindo uma nova antecipação, para outubro de 2023. A atual presidente Dina Boluarte é uma marionete nas mãos da direita que controla o Congresso e, inclusive, pode ser descartada, como tentativa de barrar o processo de mobilização.

Foi decretado um Estado de Emergência, com invasões de casas e sedes de organizações políticas, com prisões seletivas e arbitrárias. E, agora, Puno, a cidade mais combativa do país, está militarizada.

Impasses

Apesar dos avanços das mobilizações há um certo impasse, pois, por um lado, apesar de quase 60 mortos, o governo nem de longe consegue sufocar os protestos. Por outro lado, o proletariado, a classe operária urbana e da mineração não entraram massivamente no processo, o que impede uma vitória categórica dos trabalhadores.

Isso ocorre por que a principal direção, a Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru (CGTP), formada por stalinistas e neostalinistas, tem traído o movimento vergonhosamente, se recusando a chamar uma greve geral e não se somando às mobilizações e marchas, com força, apesar da simpatia e solidariedade que há na base da entidade. Em suma, apesar de formalmente assumir as reivindicações do movimento, a CGTP tem uma política criminosa e procura negociar com o governo.

O grau de politização é impressionante, talvez o maior em todo o continente americano: querem derrubar o governo e, de fato, mudar o regime político que impera no país. Por isso, suas principais reivindicações são “Fora Dina Boluarte” e eleição de uma Assembleia Constituinte, que substitua o atual Congresso e faça uma nova Constituição, para que todo o entulho antidemocrático e privatista da “Era Fujimori” seja jogado no lixo.

Repressão

Violência brutal contra indígenas e camponeses

Os aspectos mais impressionantes desta insurreição são a repressão do governo e a combatividade dos trabalhadores e dos camponeses. Algo revelado, inclusive, pelos números: 58 pessoas mortas (sendo uma delas um policial) e cerca de 1.700 feridos, entre eles 1.100 civis (contra 580 policiais).

As mortes ocorreram principalmente no interior, onde o racismo, o preconceito e a discriminação dão um valor menor à vida dos descendentes dos povos originários. Principalmente Aimarás e Quéchuas.

Pobreza e miséria no Sul

A maioria dos manifestantes (que continuam chegando à capital Lima, todos os dias) vem do sul do país, de regiões que, durante séculos, foram marcadas por desigualdade, isolamento, opressão e discriminação.

Regiões como as de Cusco, Apurímac, Huancavelica, Puno e Cajamarca, onde os índices socioeconômicos são sempre mais desfavoráveis para os trabalhadores. Em 2021, o índice de pobreza no Peru era de 25,9%, mas, considerando-se somente o Sul, saltava para 39%.   Em escala nacional, 70% dos trabalhadores peruanos estão precarizados; mas, nas cidades do Sul, os índices são sempre maiores: 94,8% em Huancavelica; 90,6%, em Apurímac e 90,4%, em Puno.

‘Vamos até o fim para derrubar Dina’

É sobre esta base que fermenta a explosão social que eclodiu em violentos enfrentamentos, como os que se deram em Juliaca, onde os aparatos de repressão mataram onze pessoas; ou em Bairro Chino, onde os trabalhadores, centralmente precarizados do agronegócio, feriram 57 policiais.

Além dos enfrentamentos, a combatividade da população também se expressa na resistência, mesmo com a piora nas condições de vida, provocada pelos bloqueios, que têm resultado em falta de gasolina e medicamentos e no encarecimento e escasseamento da alimentação. Mas, mesmo assim, a maioria afirma que não vai parar de luta até derrubar Dina e o Congresso.

Transnacionais

Mobilização nacional golpeia mineradoras

O chamado “Paro Indefinido” (paralisação indefinida) bloqueou cerca de 100 vias, atingindo setores como a mineração, o turismo e o agronegócio. O Ministério da Economia fala em perdas em torno de US$ 554 bilhões. Machu Picchu foi fechada e cidade de Cusco, onde 80% da população vivem do turismo, também assistiu ao fechamento de hotéis, restaurantes e comércios, perdendo US$ 10 milhões em função dos protestos.

Os manifestantes têm realizado bloqueio de estradas; ataques a aeroportos, torres de telefonia e eletricidade; invasões de empresas de mineração e ataques a prédios do poder judiciário.

Os bloqueios estão atingindo o coração da economia nacional: as mineradoras, que ficam nos Andes e no sul do país. Apesar dos mineiros não terem entrado na luta, como classe organizada, a identificação étnica com os manifestantes é total.

A mineração é o pilar da economia peruana e compõe 60% das exportações. Foi privatizada pelo governo Fujimori e recebeu uma série de isenções fiscais de todos os governos posteriores, inclusive do de Castillo.

Mesmo assim, o setor aporta com 20% dos ingressos fiscais e 15% do Produto Interno Bruto (PIB), além de provocar imensos conflitos sociais e socioambientais. O setor emprega cerca de 250 mil trabalhadores, sem contar os precarizados e os que trabalham na mineração ilegal.

Os bloqueios estão atingindo empresas como Minera Las Bambas, paralisada por mais de 50 dias em 2022, e 15 dias, em 2023. “A mina não conseguiu levar sua produção até os portos, já que a via por onde é transportado o mineral está interrompida, por isso as exportações são afetadas de forma importante”, anunciou a empresa.

A Minera Antapaccay suspendeu todas suas operações depois que os manifestantes de Espinar invadiram suas instalações, em 19 de janeiro, e incendiaram máquinas, caminhões de transporte e instalações. Também foram atacadas as instalações das unidades Huisamarca (Cusco) e Utunsa (Apurímac).

As três maiores corporações mineiras do mundo estão presentes no Chile: BHP, Rio Tinto e Glencore. As grandes multinacionais imperialistas acreditam que o cobre vai cumprir um papel fundamental em um futuro próximo, como condutor mais econômico para armazenar e transportar as novas fontes de energia.


Na capital

A tomada de Lima pelos trabalhadores, camponeses e indígenas

São milhares os trabalhadores e camponeses, principalmente jovens, que estão se deslocando do Sul até a capital para a “Toma de Lima” (Tomada de Lima). Eles têm realizado marchas diárias, assim como protagonizado enfrentamentos com a polícia, a tal ponto que o aparato policial anunciou o abandono das bombas de gás lacrimogêneo e das balas de borracha.

Quem conheceu a “Primeira Linha” chilena (a “linha de frente” de ativistas que defendiam as mobilizações da repressão policial, em 2019) e, agora, vê a do Peru, nota importantes diferenças entre elas. No Chile, ela era formada, majoritariamente, por jovens urbanos. No Peru, são camponeses e os setores mais explorados da sociedade.

Por isso, uma das grandes manifestações de solidariedade dos habitantes da periferia de Lima é levar comida e água aos manifestantes, que não têm o que comer durante os longos períodos que passam na capital, dormindo em alojamentos, dentro de universidades, sindicatos, sedes de ONGs e em praças.

Todos os dias, centenas de refeições chegam aos manifestantes, produzidas pelos trabalhadores de Lima, muitas feitas com mantimentos recolhidos em doações em fabricas e universidades.

Saída

Um regime em crise e a proposta dos trabalhadores

A crise do governo é muito grande e ficou evidente na votação do Congresso sobre antecipação ou não de eleições. Dina Boluarte chegou a dizer: “Fracassamos. Temos que sair”. O partido fujimorista de ultradireita apoia a proposta e defende os interesses das grandes mineradoras.

Mas a maioria do Congresso rechaçou a proposta em primeira votação, tendo à frente o partido de Dina e de Castillo, o “Peru Libre”, que se reivindica castrista. Este partido votou pela destituição de Castillo, depois participou das marchas contra Dina e, agora, vota contra a antecipação das eleições.

A saída da classe trabalhadora

Frente a esta situação, o Partido Socialista dos Trabalhadores do Peru (PST) se soma às manifestações e reivindicações apresentadas pelo movimento, ressaltando que é necessária uma Assembleia Constituinte para retirar o entulho antidemocrático de Fujimori; mas, acima de tudo, que nacionalize a indústria mineradora, realizando expropriações, sem indenizações, e as colocando sob o controle dos trabalhadores e, com isso, possibilite a recuperação dos recursos naturais do país.

Isso somente será conseguido por um governo das organizações de luta da classe trabalhadora e o povo pobre.

Vera do PSTU em manifestação de solidariedade ao povo do Peru, em SP
Urgente

Trabalhadores do Peru precisam de toda solidariedade internacional

Os acontecimentos do Peru ganharam dimensão internacional. Lula, Gabriel Boric (Chile) e Gustavo Petro (Colômbia) se manifestaram a favor da destituição de Castillo, alegando que as instituições da democracia burguesa deveriam ser preservadas.

Com o crescimento da repressão, Petro mudou de posição e Boric foi obrigado a fazer declarações contra a repressão, o que irritou o governo peruano. O Peru já retirou seus embaixadores da Argentina, do México, da Colômbia e da Bolívia.

Lula é o único que mantêm sua declaração inicial, continuando dando apoio ao governo de Dina Boluarte, enquanto ele pratica uma violenta repressão contra a classe trabalhadora peruana. Além disso, é no Brasil que o governo peruano vem buscar as bombas que Boluarte usa contra os manifestantes.

Neste sentido, foram muito importante os protestos realizados nas embaixadas da Argentina, Colômbia e Equador, que exigiram que governos da América Latina, e principalmente Lula, escutem as reivindicações do povo peruano e se somem à exigência da renúncia de Dina.

A solidariedade internacional já está ajudando a luta do povo peruano e poderá ser decisiva para a sua vitória.