Redação
Há 45 anos ruía a ditadura mais antiga do continente europeu. Uma rebelião militar dirigida pela oficialidade média das Forças Armadas colocou abaixo o regime salarazista e abriu as ruas para que as massas populares pudessem saudar a queda da ditadura. Para relembrar a data, publicamos abaixo o prefácio elaborado por José Welmowicki à edição brasileira do livro Revolução e Contrarrevolução em Portugal, escrito por Nahuel Moreno. O livro que analisa o processo revolucionário foi lançado pela Editora Sundermann e pode ser adquirido aqui.
Publicamos, no Brasil, esta edição revisada de Revolução e contrarrevolução em Portugal, de Nahuel Moreno, escrita para explicar o processo que ficou conhecido como Revolução dos Cravos, que faz 45 anos no dia 25 de abril de 2019. A organização revolucionária Em Luta, seção da Liga Internacional dos Trabalhadores – Quarta Internacional (LIT-QI) em Portugal, fez esta edição pela importância das lições deste processo para a realidade portuguesa, sabendo de sua importância para todo o mundo também.
Começamos localizando a revolução. Em 1974, Portugal ainda vivia uma ditadura que já durava mais de 40 anos, o salazarismo[1] (1). Ainda era um país imperialista, com um império colonial na África. Era o elo mais fraco da cadeia imperialista, pois sua economia era atrasada em relação à Europa e aos demais imperialismos. A contradição estava no fato de que essas colônias eram uma reserva para que Portugal ainda pudesse manter uma posição relativamente privilegiada junto à Europa quando já estava em marcha a formação da futura União Europeia, que naquele momento era a Comunidade Econômica Europeia (CEE). O problema era o esforço enorme que essa economia tinha de fazer para defender suas possessões coloniais e, no final da década de 1960 e começo de 1970, começaram a esgotar-se as energias do país, colocando em crise, em especial, a juventude, obrigada servir por quatro anos em Angola, Moçambique, Guiné Bissau e Cabo Verde.
Assim, o estopim da revolução se originou da crise nas próprias fileiras das forças armadas, da oficialidade e das tropas portuguesas sacudidas pelo desgaste da ocupação colonial e pela resistência dos povos africanos numa guerra colonial que já se prolongava por mais de uma década. O exército português se dividiu, inclusive na sua cúpula, e foi incapaz de manter a exploração colonial tal como estava. Dessa divisão, surgiu uma ala da cúpula, representada pelo general Spínola, que queria buscar um caminho neocolonial. Surgiu também, na oficialidade média, o Movimento das Forças Armadas (MFA).
Dessa efervescência, explodiu o 25 de Abril: uma rebelião de tropas em Lisboa, refletindo o mal-estar e o ódio à ditadura, que tinha à cabeça Marcelo Caetano, após morte de Salazar. Esse levante militar rapidamente derrubou o governo e abriu as comportas para que as massas populares entrassem em cena, saudando a queda da ditadura. A população dirigiu-se aos soldados para oferecer-lhes cravos e ao mesmo tempo partiu para cima das velhas instituições e dos seus agentes, da PIDE[2], dos autocratas odiados e dos seus sustentáculos econômicos, a burguesia portuguesa.
A revolução portuguesa foi consequência direta da revolução colonial que repercutiu nos centros e massas urbanas metropolitanas e imediatamente se transformou em operária. A partir de 25 de abril, a classe operária e a população metropolitana entraram em cena num processo de ascenso e organização que varreu o país e obrigou grande parte da burguesia monopolista portuguesa a abandonar as fábricas e, inclusive, a sair do país. Multiplicaram-se os comitês de fábrica, e a base das forças armadas também se organizou em comitês. A revolução colonial na África, que foi parte do processo, continuou a desenvolver-se, e a maioria das colônias africanas deixou de sê-lo.
O 25 de Abril deflagrou em plena Europa um processo revolucionário que galvanizou a vanguarda e abriu discussões entre as organizações. Entre o stalinismo e o trotskismo, a polêmica era se aquela era uma revolução democrática, cuja tarefa era conquistar uma democracia e abrir uma longa etapa de desenvolvimento capitalista, como pensava o Partido Comunista Português, ou se, como pensavam os trotskistas, era uma revolução operária e socialista que se abrira com a derrota da ditadura e, a partir daí, estava colocada a questão do poder para a classe operária.
A expropriação e a nacionalização dos bancos e dos grandes conglomerados empresariais, realizadas após março de 1975, a multiplicação dos organismos de duplo poder, as ocupações de terras, as greves – como as da Lisnave, da TAP, da CUF e de outras fábricas centrais da cintura industrial de Lisboa – são uma expressão taxativa do carácter operário e socialista da revolução que comprovam a tese transicional de Moreno e negam a etapa da revolução democrático- nacional defendida pelo PCP.
O Debate na IV Internacional
No interior do trotskismo, também houve discussões profundas. Dentro do então Secretariado Unificado (SU) da IV Internacional, havia duas grandes correntes: a maioria ou TMI, encabeçada por Ernest Mandel e da qual faziam parte Livio Maitan e outros dirigentes, e a minoria, organizada na FLT, encabeçada pelo SWP norte-americano, com dirigentes como Joe Hansen, que estava representado nessa discussão por um material de Gus Horowitz e que incluía Moreno, dirigente do PST argentino, e outras organizações latino-americanas. Durante esse debate sobre Portugal, surgiram diferenças dentro da própria FLT, que estão expressadas neste livro e levaram à sua divisão. Moreno, então, decidiu deixar a FLT e construir a Tendência Bolchevique (TB).
Esse texto de Moreno se refere ao debate no interior do SU com os demais dirigentes de ambas as correntes. Por isso, na maior parte de seu texto, Moreno se refere aos textos dos trotskistas citados.
Os temas em debate são bastante atuais. A comparação entre Portugal e o processo aberto pela Revolução Russa de fevereiro de 1917 é muito importante e leva Moreno a conclusões diferentes das de Maitan e Horowitz em relação a várias definições: o que era o MFA? que tipo de governo era o governo MFA-PC? A opção de Moreno foi compará-lo a Kerensky, da Rússia de 1917. Dessa comparação, vinha uma perspectiva distinta, um programa de transição adequado e uma opção semelhante à dos bolcheviques para enfrentar esse governo e de perspectiva de poder; sobre o caráter das direções reformistas, como PC e PSP, que Moreno comparava aos mencheviques e aos socialistas revolucionários russos; sobre o que era o MFA, que para Moreno representava a pequena burguesia, tratando de enquadrar os trabalhadores e desviar o processo, e como enfrentá-lo; sobre a combinação das bandeiras democráticas com as bandeiras socialistas; sobre a necessidade de buscar a formação de organismos de poder operário que cumpram o papel que tiveram os sovietes na Revolução Russa, centralizando os comitês existentes.
Moreno escreveu este texto em junho-julho de 1975. Ainda estava numa situação revolucionária, e ele colocava o que deveria ser a política trotskista para aquele momento e alertava sobre as contradições existentes, da qual a principal era a crise de direção.
Da revolução aos dias de hoje
Das possíveis perspectivas para a revolução portuguesa de 1975, acabou prevalecendo a ação traidora dos aparatos do PCP junto ao seu aliado MFA e do Partido Socialista de Mario Soares. O processo foi desviado, e os organismos de poder, desmontados. Impôs-se uma democracia burguesa e a submissão à CEE e, mais tarde, à União Europeia. As conquistas da revolução, como a nacionalização dos bancos e o controle operário sobre muitas empresas, foram aos poucos sendo desmontadas.
Hoje, Portugal está na União Europeia numa posição completamente subordinada. Perdeu peso e desceu um patamar na sua localização internacional. Deixou de ser um país imperialista para ir transformando-se em semicolônia do imperialismo alemão via União Europeia. Seu regime é uma democracia, mas os limites desse regime ficaram muito claros quando explodiu a crise de 2008 e foi obrigado engolir os ditames da Troika BCE-FMI-UE[3]. Teve de engolir a perda de soberania, e até hoje seus orçamentos anuais são submetidos a essas instituições imperialistas.
Por outro lado, os partidos reformistas que atuaram em 1974-75 para impedir que o processo revolucionário colocasse em risco o capitalismo português, o PCP e o PS, continuam a ser os sustentadores da ordem vigente. Mais recentemente o PS, desgastado por anos de gestão do capitalismo português em retrocesso, chegou a ser afastado do governo e a ter seu primeiro ministro, José Sócrates (2005-2011), processado e preso. Depois, porém, aproveitou a derrota e a queda do partido de centro-direita que o sucedeu, o PPD/PSD (o mesmo de 1974-75) para lançar uma cara nova, Antônio Costa, e voltar a ser governo.
As organizações de ultraesquerda de 1974-75, como os maoístas, também saíram golpeadas por seus erros políticos. A maioria desapareceu. As que sobreviveram, como a UDP e um setor dos antigos trotskistas (os que seguiam Mandel naquele processo) formaram uma organização de esquerda que, depois de alguns altos e baixos, ganhou certo peso eleitoral, o Bloco de Esquerda (BE). O BE foi passando por um processo de adaptação aos mecanismos da democracia burguesa e também da União Europeia que o afastaram de uma perspectiva revolucionária. Nos últimos três anos, passaram a sustentar o novo governo do PS de Antônio Costa, jocosamente chamado de “Geringonça”. Dessa vez, apoiam governos como esse do Partido Socialista Português, que se submete completamente aos ditames da União Europeia. Protestam contra determinadas medidas, mas mantêm o apoio em nome de um suposto mal menor.
A repercussão no Brasil
A Revolução dos Cravos teve um forte impacto no Brasil. Naquele momento, vivíamos a ditadura militar. Frente à repressão vigente aqui, a revolução portuguesa e as liberdades conquistadas eram seguidas com interesse, o que era facilitado pela língua em comum. Havia uma grande simpatia pela luta dos nossos irmãos trabalhadores portugueses e pela libertação de Angola, Moçambique, Guine Bissau e Cabo Verde.
Nesse momento, Chico Buarque escreveu letras de músicas como “Tanto Mar”, em que o “velho cravo” faz uma referência à revolução e anseia ter uma transposição do outro lado do mar para o Brasil:
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente.
E ainda guardo, renitente
Um velho cravo para mim.
Já murcharam em tua festa, pá
(…)
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar.
Canta a primavera pá
Cá estou carente
Manda novamente algum cheirinho
De alecrim!
Mesmo a música de “Fado tropical”, da peça Calabar (1973), de Chico Buarque e Ruy Guerra, de antes de a revolução explodir, foi considerada subversiva a partir de 1974, pois dizia a letra: “Ai, essa terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal.” Logo foi perseguida por isso.
A relação entre os revolucionários brasileiros e portugueses
Também houve uma relação pela educação internacionalista, pelo intercâmbio de quadros, envio de militantes brasileiros que foram ajudar na revolução portuguesa, e as discussões que aconteceram no Brasil naquele momento.
A primeira organização revolucionária vinculada à corrente morenista da IV Internacional, a Liga Operária, começou a atuar no Brasil em 1974. Ela fez parte, pouco mais de dois anos depois, do esforço da corrente para intervir na revolução portuguesa com seus quadros. Os debates sobre o processo revolucionário de Portugal foram importantes para consolidar a jovem Liga Operária, e preparar seu futuro desenvolvimento. Este texto de Moreno ajudou a formar as primeiras camadas de quadros da organização. Publicamos este livro 45 anos depois para retomar e socializar as lições dessa poderosa revolução operária.
São Paulo, 16 de abril de 2019
José Welmowicki[4]
[1] Referente ao Estado Novo, regime ditatorial inaugurado por António de Oliveira Salazar. Vigorou em Portugal de 1933 a 1974, quando foi derrubado pela Revolução dos Cravos. (Nota da edição brasileira)
[2] A PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) foi a polícia política portuguesa e principal força de repressão durante a ditadura salazarista.
[3] Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional, União Europeia
[4] Autor do livro Cidadania ou classe?- O Movimento Operário da década de 80 (2005) e organizador de Oriente Médio – uma perspectiva marxista (2007), ambos lançados pela Editora Sundermann.