Dói na alma assistir o vídeo de Bruno Pereira entoando cânticos indígenas no meio da floresta. Um dos mais talentosos indigenistas do país, dedicado na defesa dos povos originários, especialista em povos isolados, foi exonerado pela chefia da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2019 por fazer seu trabalho com excelência: ter coragem de conduzir uma operação que expulsou centenas de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, em Roraima.

Bruno e o jornalista inglês Dom Phillips, colaborador do jornal The Guardian, foram brutalmente assassinados no Vale do Javari, no Amazonas, quando registravam a ação de garimpeiros, traficantes, caçadores e pescadores ilegais em território indígena. O crime foi cometido por Amarildo da Costa de Oliveira, o “Pelado”, seu irmão Ozinei da Costa Oliveira e pelo menos mais cinco homens.

Bruno ajudava uma equipe de vigilância da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Ajudou a produzir documentos com relatos de invasão, apontando a presença de grupos armados, denunciando ameaças e até ataques a tiros contra indígenas. Um relatório foi entregue ao Ministério Público Federal de Tabatinga, à Força de Segurança Nacional, sediada na região, e à própria Funai. O documento chegou até mesmo a mencionar o nome de Pelado. Mas nada foi feito.

Há dois anos e meio, Maxciel Pereira dos Santos, colaborador da Funai em Tabatinga, foi assassinado por pistoleiros. O crime ainda ficou impune e todos sabiam que novas execuções seriam uma questão de tempo. E a razão foi explicada pelo próprio ofício assinado por Bruno: o desmonte da Funai, os sucessivos cortes orçamentários e o enfraquecimento da fiscalização que atiçaram os criminosos. “Antes, os invasores se evadiam ao avistar as equipes [de vigilância]. Nos últimos anos, porém, a realidade passou a mudar de forma gradativa, caracterizada pela presença cada vez maior de audácia e violência“, citava o documento entregue à Defensoria Pública da União (DPU).

As buscas ao desaparecimento de Bruno e Dom só ganharam agilidade após forte pressão internacional. Mas Bolsonaro e o presidente da Funai não deixaram de lançar uma sórdida tentativa de desmoralização das vítimas, como um perfume barato borrifado no ar para atiçar sua caterva. O primeiro disse que seriam “aventureiros” em terras perigosas e depois, que Dom Phillips era “malvisto na região” – na sua já tradicional linha de plantar fake news e culpar as vítimas. E o segundo falou que o indigenista e o jornalista inglês não tinham autorização para ingressar na Terra Indígena Vale do Javari. Em nota, a Univaja rebateu a Funai e disse que Bruno tinha licença para entrar em território indígena, explicando que ele havia saído da terra indígena para se encontrar com Dom Phillips, que nunca pisou na TI. Ambos, aliás, desapareceram fora dela. Em protesto contra as declarações do presidente da Funai, servidores da fundação realizaram uma greve de 24 horas (no último dia 15 de junho) exigindo sua retratação sobre as falsas informações.

Desmonte

Bolsonaro: “Vou dar uma foiçada na Funai”

“Se eleito, eu vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço. Não tem outro caminho. Não serve mais”, declarou Bolsonaro em agosto de 2018, em plena campanha presidencial.

A “foiçada” começou com a nomeação do delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier para a presidência da Funai, um lacaio do pecuarista Nabhan Garcia, ex-chefe da União Democrática Ruralista (UDR).  Hoje Nabhan é secretário especial de Assuntos Fundiários do governo federal, órgão do Ministério da Agricultura.

Com a foice na mão, o delegado Xavier reduziu em 40% a verba da Funai. Paralisou 620 processos de demarcação de terras indígenas que se encontravam na fase inicial. Encalhou mais 117 processos que estavam na fase final de homologação da Presidência da República e passou a perseguir inúmeros servidores, como Bruno.

Além disso, a Funai foi aparelhada por militares em busca de uma boquinha. Houve substituições de servidores concursados por militares das Forças Armadas e policiais. Das 39 coordenações regionais da Funai, apenas duas são dirigidas por funcionários concursados. No Vale do Javari, por exemplo, o responsável era um tenente da reserva do Exército que chegou a dizer que iria “meter fogo” em indígenas isolados.

Além de boquinhas e cargos no poder, os militares estão de olho em conquistar alguma sociedade na garimpagem na Amazônia. Há suspeitas de que o general Mourão e outros militares estejam se associando a projetos de mineração na região. Os militares aparelhados na Funai estão fazendo prospecção mineral em Terra Indígena da Amazônia.

Mas a aparelhagem também obedece às demandas da velha e infame UDR. Com a publicação da Instrução Normativa nº 9/2020 da Funai, Nabhan Garcia conseguiu que o presidente da fundação apagasse do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) as terras não homologadas, em processo de demarcação, e áreas de indígenas isolados, além de terras devolutas da União. Isso impossibilitou constatar a sobreposição de terras de proprietários privados em terras indígenas. Isso possibilita que os 237 territórios que ainda passam por processo de demarcação possam ser vendidos e loteados.

A “foiçada na Funai” promovida por Bolsonaro enfraqueceu a proteção aos indígenas e atiçou criminosos e milicianos. Todos esfregaram as mãos e viram uma oportunidade para invadir terras indígenas, matar lideranças, funcionários da Funai e até jornalistas internacionais. “Esses homens [criminosos e bandidos] se sentem protegidos pela Presidência da República”, explicou Sydney Possuelo sobre invasores de terras indígenas em entrevista ao programa Roda Viva do dia 13 de junho.

Violência

Uma política de extermínio indígena

Desde sua campanha eleitoral, Bolsonaro dizia que não demarcaria sequer um milímetro de terras indígenas. Em várias oportunidades, ele se colocou contra os direitos dos povos originários, defende a tese do marco temporal e a garimpagem em terras indígenas. Junto com o Congresso, o governo prepara o “pacote da destruição”, um ataque de proporções históricas contra o meio ambiente, os povos da floresta e toda a população.

Sua política deve ser classificada como de extermínio dos povos originários, e ele deixou isso bem claro em entrevista ao Correio Braziliense, em 12 de abril de 1998: “Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios.”

Não por acaso que entre 2020 e 2021 o número de conflitos no campo explodiu, sendo o maior em 35 anos. Apenas o número de assassinatos cresceu 75%, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). A maior parte na Amazônia, envolvendo indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, indigenistas, ambientalistas e ativistas.

Há anos a Terra Indígena Vale do Javari vem sofrendo ataques de madeireiros, pescadores, caçadores garimpeiros e traficantes, que agem de forma consorciada. Em geral, um crime lava o dinheiro do outro e banca, financia, todo o esquema que tem profundas ramificações com agentes públicos de segurança, políticos locais, comerciantes e autoridades.

Há muitos outros casos de aumento de violência na Amazônia. Só o garimpo ilegal provocou nove mortes em 2020 e 109 em 2021, o que significa um aumento de 1.110%. Das 109 mortes em 2021, 101 eram de indígenas Yanomamis de Roraima. A explosão da garimpagem na Terra Indígena Yanomami também tem o dedo do crime organizado. Segundo indígenas e investigações da PF, os garimpeiros são dirigidos pelo PCC e estão fortemente armados. É o narcogarimpo expandindo seus tentáculos na Amazônia.

Na cidade em que foi assassinada em 2005 (época em que Lula era presidente) a missionária Dorothy Stang, cresce o ataque aos trabalhadores rurais e indígenas de Anapu (PA), com assassinatos, prisões e ameaças de morte, e Erasmo Teófilo, presidente da Cooperativa de Agricultores da Volta Grande do Xingu, está na mira da escopeta.

Diante dessa situação, é urgente a tarefa da autodefesa do movimento indígena e camponês para garantir suas vidas e territórios. Movimentos sociais urbanos e sindicatos devem prestar todo apoio a essa luta. Ao mesmo tempo, faz-se necessária uma grande campanha, no Brasil e no exterior, em defesa dos povos da floresta, denunciando Bolsonaro e o agronegócio, inclusive com boicotes de produtos fruto da destruição da Amazônia.

Civilização do capital

Violência e barbárie na Amazônia são provocadas pela expansão capitalista

Foto: Wikimedia Commons/Bruno Kelly/Amazônia Real

Se, conjunturalmente, toda essa violência está relacionada ao ambiente político proporcionado por Bolsonaro, do ponto de vista estrutural ela é explicada pelo avanço do capitalismo na Amazônia. Ao longo da história, as populações indígenas quase sofreram um completo extermínio. Suas terras foram roubadas, assim como enormes extensões de terras públicas ainda são usurpadas e transformadas em “propriedade privada” de grandes fazendeiros. A região foi palco de inúmeros projetos de exploração minerária (ouro, baixita, ferro etc.) que só engordaram os bolsos dos capitalistas; também de grandes projetos hidroelétricos que sequer servem para suprir a demanda de energia, tal como a usina de Belo Monte, idealizada pela ditadura, mas construída pelo PT. Isso explica a existência do trabalho escravo na região (inclusive entre garimpeiros); o desmatamento e os incêndios florestais que são formas da expansão da propriedade privada da terra; o colapso social das comunidades tradicionais, ou de parte delas; a desumanização e o racismo contra indígenas, quilombolas e camponeses da floresta. Enquanto o capital existir, a floresta, sua população e a humanidade continuarão sendo ameaçadas.