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Camarada Eisenstein, muito obrigado
Pelos dilemas, e pela montagem
De Canal de Ferghama, irrealizado
E outras afirmações. Tu foste a imagem
Em movimento. Agora, unificado
À tua própria imagem, muito mais
De ti, sobre o futuro projetado
Nos hás de restituir. Boa viagem
Vinícius de Morais, trecho de Tríptico na morte de Sergei Mikhailovitch Eisenstein
Há 60 anos, no dia 11 de fevereiro de 1948, o mundo perdia o cineasta e revolucionário russo Sergei Mikhailovich Eisenstein. Nascido em 23 de janeiro de 1898, em Riga, Letônia. Sua família era judeu-protestante de classe média alta. Seu pai era engenheiro e a mãe, filha da burguesia. Teve uma infância rica e uma educação privilegiada. Quando jovem, estudou engenharia, seguindo os passos do pai.
Esse não parece ser exatamente o perfil de alguém que marcaria sua obra pelo caráter político-revolucionário. Aliás, o insólito marcou a trajetória desse artista que foi um dos maiores nomes do cinema de todos os tempos.
Eisenstein revolucionou a sétima arte com apenas 14 filmes produzidos. E não foi somente pelo seu conteúdo político. Sua estética foi guia para as futuras produções do mundo inteiro. Para citar apenas alguns nomes que influenciou, temos Eisenstein em Orson Welles, Jean Luc Godard, Brian de Palma, Glauber Rocha e Oliver Stone. A montagem foi colocada no seu devido lugar de importância a partir de Eisenstein.
Entre os críticos e estudiosos de cinema, Eisenstein gera opiniões diversas e muitas vezes opostas. A visão de que ele foi apenas um artista-militante, serviçal do Estado Soviético, se demonstra, em vários episódios de sua trajetória, equivocada. Ou, no mínimo, insuficiente. Como Eisenstein conseguiu ser Eisenstein apesar do stalinismo e do realismo socialista?
Uma trajetória conturbada
Foi em 1918, portanto após a Revolução Russa, que Eisenstein ligou-se de vez aos bolcheviques, alistando-se no Exército Vermelho. Ele, que vinha de uma família de posses, abandonava uma vida pequeno-burguesa, cheia de privilégios, para se dedicar à causa socialista. Chegou, inclusive, a lutar contra seu próprio pai, que havia ingressado no Exército Branco.
Apesar de soldado, Eisenstein dedicou-se a estudar teatro, psicologia, matemática, lingüística e filosofia. Foi no teatro que ele iniciou sua carreira artística. Chegou a atuar, mas, certamente, era bem melhor como desenhista de figurino e cenários. A atividade de desenho foi o que chamou a atenção das autoridades políticas. Ainda no exército, foi designado para desenhista de cartazes e pintor-decorador da seção de teatro e propaganda do exército.
Em 1920, Eisenstein sai do exército e ingressa no Proletkult, o órgão especial para a cultura do Estado Soviético. Ele desenvolve um amplo trabalho em teatro. Desenha os cenários, primeiramente, mas também encena e monta peças.
Com a estatização da indústria cinematográfica soviética, Eisenstein abraça definitivamente o cinema. Seu primeiro filme, A Greve, foi um verdadeiro laboratório.
Após essa obra, ele é convidado a fazer outro sobre a revolta de marinheiros que foi o estopim da Revolução de 1905. O Encouraçado Potenkin mostra já um amadurecimento do autor e de sua técnica. O filme tem uma das cenas mais lembradas da história do cinema, justamente por sua perfeição, subversão e efeito que causa em quem a assiste. É a cena da escadaria de Odessa. Uma mãe com o filho atingido pelos tiros dos soldados, enquanto a tropa avança, armas nas mãos, contra a população em polvorosa. O carrinho de bebê rolando escada abaixo é até hoje reproduzido e parodiado, como em Os Intocáveis de Brian de Palma. Esse, porém, seria o último filme que Eisenstein faria com relativa tranqüilidade política.
Para comemorar os dez anos da Revolução, Stalin encomenda um novo filme. Nesse período, Lênin já havia morrido (1924) e a burocracia se consolidava na Rússia. Uma implacável cassada à Oposição de Esquerda era promovida pela casta burocrática, sobretudo ao seu dirigente, Leon Trotsky.
É nesse contexto que nasce Outubro. Aí já estão presentes diversos traços do que seria o controle de Stalin sobre a obra de Eisenstein. Uma cena marcante do filme é quando aparecem os traidores da revolução. Todos eles têm a fisionomia de Trotsky. Eisenstein teve de refazer diversas cenas de Outubro até agradar Stalin, que acompanhou pessoalmente a realização da obra.
A intervenção que segue, a partir daí, em seu trabalho, obriga-o a fazer verdadeiros malabarismos para não perder a sua essência. Os filmes eram interrompidos, rolos inteiros perdidos. A política stalinista ziquezagueava: ora para direita, ora para a esquerda. O que era a linha do partido num primeiro momento, em pouco tempo se transformava em razão de fuzilamento.
O filme seguinte de Eisenstein expressa bem essa situação. Em A Linha Geral ou O Velho e o Novo inclusive o nome teve de ser mudado , o Estado havia solicitado um filme que ilustrasse o programa do partido de forma rápida e didática. As filmagens, iniciadas em 1926, foram interrompidas e recomeçadas somente três anos depois, quando muita coisa havia mudado na política do stalinismo. O filme mostrava a realidade nos campos, a miséria da população por conta da coletivização forçada do Estado. A burocracia não gostou nem um pouco. Antes mesmo que o filme estreasse, Eisenstein e sua equipe tiveram de fugir da Rússia.
Na França, para onde se dirigiu, chegou a fazer um filme, Miséria das mulheres, felicidade das mulheres. Boa parte da crítica considera esse um filme de baixíssima qualidade e que teria feito por sobrevivência. Entretanto, o tema é bastante ousado: trata da questão do aborto e foi duramente censurado.
Logo seria expulso da Europa por suas idéias e obrigado a ir para os Estados Unidos. Nesse país, um candidato socialista ao governo da Califórnia, Upton Sinclair, o convida e o patrocina a filmar no México. Que viva México! jamais seria concluído. A pressão da burguesia que apoiava Sinclair, do governo e de Hollywood faz com ele suspenda a produção. Esse era um dos sonhos profissionais de Eisenstein que jamais se realizaria.
Para voltar à Rússia, ele faz uma autocrítica. Tão logo é aceito de volta, comete mais um desagravo ao Estado Soviético. O Prado de Bejin narrava os conflitos no campo. Eisenstein fica doente durante as gravações, tendo de interromper o trabalho. Ao recomeçar, a política stalinista havia mudado: a linha, agora, era a convivência pacífica com o campo. Esse fato força o cineasta a uma nova autocrítica.
A sua clemência só vem depois de Alexandre Nevski, um filme patriota, contando a história da unificação do império russo. Entretanto, para evitar os abusos do cineasta, a Mosfilm empresa de cinema estatal trocou toda a sua equipe por outra de confiança do Estado.
Logo depois, Ivan, o terrível deveria ser um tributo a Stalin. Esse foi o argumento utilizado por Eisenstein para conseguir autorização para produzir. Entretanto, a imagem de Ivan não seria bem o que o homenageado esperava e o filme foi cancelado. Deveria ser uma trilogia, mas apenas as duas primeiras partes saíram. Ivan se transforma, ao longo da obra, num tirano sanguinário e desconfiado, que a todos manda matar, inclusive a seus amigos e parentes.
Esse filme tem, também, uma importância estética: Eisenstein usa, pela primeira vez, em algumas cenas da segunda parte, a cor. Não a cor da realidade, simplesmente. Ele interpreta e dá significados às cenas, carregando em tons de vermelho e verde.
Isolado pelo estalinismo, nos últimos anos de vida, Eisenstein se dedicou mais a escrever do que a filmar. O sentido do filme é um livro indispensável a qualquer um que deseja se dedicar ao cinema, seja a fazê-lo, seja a estudá-lo. Após sua morte, foi editado A forma do filme e outros textos em coletâneas. A maior parte de sua obra, entretanto, é inédita no mundo. Na Rússia, já foram publicadas dezena de volumes de obras selecionadas e muitos textos ainda não são conhecidos do público.