Zé Maria

Metalúrgico e presidente nacional do PSTU.

“…
O homem, meu general, é muito útil
Sabe voar, sabe matar
Mas tem um defeito
– Sabe pensar!”

Bertold Brecht

O trecho acima é de um poema de Bertold Brecht, em que ele fala aos generais da força das armas de que dispõem para oprimir o povo. Mas chama a atenção para o fato de todas elas terem um “defeito”: precisam de um homem para operá-las. E que os homens, por sua vez, são muito úteis, pois sabem operar essas armas, sabem matar. Mas que também eles têm um “defeito”: sabem pensar.

Escolhi este poema para abrir este texto porque creio que ele é emblemático da discussão que pretendo fazer aqui. Trata de um assunto que tem estado bastante presente no cenário político do país nas últimas semanas: o engajamento de policiais, especialmente dos policiais militares, ao projeto bolsonarista de agredir as liberdades democráticas no país, para impor novamente uma ditadura militar por estas bandas.

Não tenho informações para corroborar, ou não, a veracidade das notícias que apontam crescimento desse engajamento neste último período. Mas seja como for, é evidente que Bolsonaro tem investido muito para angariar apoio para seu projeto junto aos setores armados da sociedade. Por si só isso já justifica o diálogo que quero fazer aqui, especialmente com os componentes das forças policiais do país, com os policiais militares em particular.

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Bolsonaro não defende as demandas dos policiais por melhores condições de vida

Foi publicada semanas atrás, no portal UOL, uma reportagem assinada pelo jornalista Chico Alves mostrando os esforços do Governo Federal, através da AGU (Advocacia Geral da União) para destruir, inviabilizar o funcionamento de várias associações de praças das Forças Armadas. O motivo: estas associações atuaram fortemente sobre o Congresso Nacional em 2019, na discussão que precedeu a aprovação da Reforma da Previdência, para defender os interesses dos praças e seus familiares.

O governo garantiu à época vários benefícios aos altos oficiais das Forças Armadas, chegando mesmo a dobrar o salário dos oficiais mais graduados. Mas o tratamento dado aos praças foi o mesmo dado aos demais trabalhadores do país: ficaram com o prejuízo. Por isso, legitimamente as associações denunciaram o governo e suas lideranças no Congresso. A resposta do governo voce pode ver na reportagem[1].

Bolsonaro tem tratado com demagogia a reivindicação dos policiais por melhores salários, no entanto, ele só o faz porque pode se escudar atrás da desculpa de essa não ser uma atribuição do Governo Federal. Para ver o que de fato pensa o governo basta observar o que ele faz naquilo que, sim, é sua atribuição. Qual foi o tratamento dado aos praças na Reforma da Previdência? Qual foi o tratamento dados aos policiais na PEC emergencial que congelou os salários dos servidores públicos, inclusive dos policiais (para logo em seguida baixar uma portaria aumentando os salários do próprio Presidente da República e seu vice).

Se houvesse, de fato, preocupação com assegurar melhores condições de vida aos policiais, o governo não estaria facilitando como está fazendo a venda de fuzis automáticos que, sabemos todos, boa parte vai parar nas mãos do crime organizado que vai utilizá-los para tirar a vida de pessoas, policiais inclusive. A defesa feita pelo governo do “excludente de ilicitude” serve apenas proteger maus policiais e estimular ainda mais a violência que já é absurdamente grande em nossa sociedade. Todos sabemos que as forças policiais em nosso país é uma das que mais mata (em geral pobres e negros); mas também onde mais morrem policiais (também em geral negros e oriundos de famílias pobres).

Ele quer impor uma ditadura militar ao país

Não é por simples preferência pessoal ou capricho que o presidente Bolsonaro insiste tanto em buscar apoio ao seu governo e ao projeto que defende para o país nas forças armadas e nas polícias, especialmente as militares. Assim como não é um mero deslize político ou exagero retórico toda a defesa que ele faz (e as medidas que ele toma) para facilitar o armamento (não da população) de setores radicalizados que o apoiam na sociedade.

A tentativa de Bolsonaro aprovar no Congresso Nacional um projeto de lei que institui o emprego sem carteira assinada, sem direito a férias, 13º ou aposentadoria, retrocedendo em mais de cem anos os direitos trabalhistas; a resistência do governo em usar os recursos do país para socorrer a população frente à pandemia, ou ao desemprego e a fome causada pela da crise na economia; a destruição da estrutura econômica do país e da própria natureza, promovida por este governo, etc; tudo isso mostra que seu único compromisso é com o lucro do grande capital e dos setores lúmpens do empresariado (e de verdadeiras gangues) que lhe dão sustentação.

Ele sabe que essa política vai gerar revolta da população, que vai resistir, defender suas condições de vida e um futuro melhor para seus filhos. E que a única maneira de sufocar essa resistência e impor a aplicação do projeto que defende para o país é pela força. Por isso, ele defende uma ditadura militar como regime político. Ele precisa usar abertamente os setores armados da sociedade contra os trabalhadores e a população, para esmagar qualquer resistência contra seu projeto. Por outro lado, num regime dessa natureza, poderia proteger sem maiores dificuldades seus familiares e crimes cometidos e a corrupção, cada vez mais evidente em seu governo, de qualquer forma de divulgação e, menos ainda, de investigação.

É esta a verdadeira razão do “interesse” de Bolsonaro pelos policiais. Ele precisa do apoio dos militares, das forças armadas e das forças policiais, ao seu governo e ao seu projeto. Para usá-los como bucha de canhão contra as lutas da classe trabalhadora e contra a população pobre do nosso país.

Isso é ruim para os trabalhadores, e também para os praças e suas famílias

O modelo econômico que esse governo quer impor ao país a todo custo é nefasto para os trabalhadores e as parcelas mais desprotegidas da população, pois degrada ainda mais suas condições de vida; assim como é ruim para o país, pois destrói sua estrutura econômica e devasta a própria natureza.

É, portanto, ruim também para os praças e suas famílias assim como para os policiais de maneira geral. Em primeiro lugar porque a ampla maioria dos praças e policiais em geral vem de família de trabalhadores. Seus pais, filhos, irmãos e irmãs, esposas e maridos vivem do salário que ganham quando conseguem um emprego, que são obrigados a viver em situação cada vez pior por essa situação que governos como esse impõem ao país.

Os próprios praças e policiais em geral são afetados diretamente por esse modelo econômico, voltado apenas para o lucro dos grandes capitalistas. A degradação do serviço público, que é cada vez mais sucateado (vide reforma administrativa em discussão no Congresso Nacional) obedece a lógica de privilegiar o lucro das grandes empresas e não as necessidades e direito da população a um atendimento de qualidade.

Isso vale também para a segurança pública. Por isso, os salários dos soldados e demais praças são baixos e as condições de trabalho são péssimas. Apenas aos oficiais são garantidos privilégios e salários altos (além de carreira própria), pois a eles cabe mandar, fazer com que os praças atuem conforme interesse dos donos do dinheiro e dos governantes.

E, veja, numa ditadura, como quer Bolsonaro, isso ficaria ainda pior. Se hoje os praças já são massacrados dentro dos quarteis e sofrem todo tipo de brutalidade e desrespeito por parte de oficiais, imagine como seria numa ditadura, onde nem mesmo o recurso de denunciar os abusos à imprensa seria possível. Ao invés de direito de lutar por seus direitos, numa ditadura os policiais e praças, assim como todo o restante da população, teriam ainda menos direitos democráticos. Por isso seria um erro enorme, do ponto de vista dos próprios praças, o apoio ao projeto do presidente Bolsonaro.

Os governadores são parte do problema, não da solução

Mas disso não se pode concluir que estão certos os que dizem que os policiais devem se ater ao código disciplinar da corporação e ao comando dos governadores dos estados. Os códigos disciplinares das corporações são arcaicos e antidemocráticos.

Seu objetivo é submeter os soldados e demais praças não apenas aos abusos e desrespeitos praticados por oficiais e comandantes, mas também fonte da brutalização dos praças para que aceitem a condição de bucha de canhão dos ricos e governantes contra os trabalhadores e o povo pobre, muitas vezes contra as próprias comunidades onde vivem e vivem seus familiares.

Todos sabemos da necessidade de uma boa segurança pública, especialmente para os pobres, que são a ampla maioria das vítimas dos crimes de roubo, assassinatos, etc. No entanto, é justamente essa função das polícias que vem sendo cada vez mais sucateadas, carentes de investimento, que funciona cada vez menos.

Investe-se em políticas que aumentam ainda mais a violência contra a população pobre e negra (como a comprovadamente ineficaz “guerra às drogas”) e na repressão às lutas e organizações dos trabalhadores e do povo pobre. Ao invés de forças para garantir a segurança da população, forças voltadas para conter pela violência as lutas da classe trabalhadora e do povo pobre do país. Enquanto perdurar essa sociedade, vai ser sempre esse o papel destinado às forças policiais ou às Forças Armadas.

Os governadores, alguns deles oposição ao Governo Federal, falam contra Bolsonaro mas fazem a mesma coisa que ele. O que Bolsonaro e os governadores (inclusive alguns ditos “de esquerda”, como os do PT) tem em comum é que defendem os mesmos interesses, dos bancos e grandes empresas. Então, a política econômica que aplicam pode até variar de intensidade, mas vai no mesmo sentido. Todos eles governam contra os interesses dos trabalhadores e do povo pobre, o que inclui o funcionalismo público, inclusive os da área da segurança.

Por isso os governadores arrocham os salários dos praças (os comandantes e altos oficiais são sempre bem tratados), assim como dos trabalhadores na educação, na saúde e de todo o funcionalismo público. Por isso os governadores se negam a mudar os códigos disciplinares para manter os praças submetidos à ditadura dos comandantes e altos oficiais. É a única forma de obrigar os soldados e demais praças a se submeterem às condições de trabalho indignas que lhe são impostas, e a servir como força de proteção aos interesses dos ricos contra os pobres.

Os soldados e demais praças precisam se aliar aos trabalhadores

Nessa sociedade capitalista em que vivemos, os mesmos fatores que impõem à classe trabalhadora e à ampla maioria da população cada vez mais desigualdade, injustiça e violência, condenando-a a condições de vida cada vez piores, são os fatores que estão na raiz das mazelas, violência e humilhações que afligem a vida dos praças e seus familiares.

Todos os recursos que têm o país, assim como toda a riqueza produzida pelo trabalho do povo, acabam sempre canalizados para aumentar as fortunas já astronômicas de um punhado de banqueiros e grandes empresários multimilionários. É isso que condena os trabalhadores e a ampla maioria da população (aqui estão os praças e seus familiares) a uma vida de privações cada vez mais cruéis, e nossa juventude a um futuro cada vez mais sombrio.

Por isso defendemos o fim desse sistema desumano para construirmos uma sociedade socialista, onde a riqueza produzida pelos que trabalham, assim como os recursos que o país tem, estejam a serviço de atender as necessidades das pessoas, não do lucro e da ganância de uns poucos podres de rico. Uma sociedade onde possamos viver como seres humanos que somos, não como escravos de banqueiros, por um lado, ou de comandantes militares por outro.

Há ainda um caminho importante pela frente, para podermos realizar essa transformação em nosso país. Nessa caminhada, é com os trabalhadores e trabalhadoras que os soldados e demais praças precisam se unir. Não com Bolsonaro ou com os governadores.

Como toda caminhada, por longa que seja, começa com os primeiros passos. A classe trabalhadora e suas organizações precisam apoiar a luta dos policiais em defesa de melhores salários e condições de vida para si e suas famílias; precisa abraçar a luta pela desmilitarização da PM e para que os policiais tenham os mesmos direitos democráticos dos demais trabalhadores, de se organizar e se manifestar, direito de greve, direito de lutar por seus direitos, inclusive o de se recusar a cumprir ordens absurdas ou ilegais.

Da mesma forma, os soldados e demais praças precisam refletir sobre o seu lugar nesse cenário. Precisam resistir a ordens absurdas, devem se negar a reprimir as lutas dos trabalhadores e da população mais desprotegida. Precisam apoiar a população quando esta exige respeito, ajudando-a a denunciar os maus policiais que praticam crimes contra o povo negro e pobre da periferia dos grandes centros urbanos.

Volto, então, ao poema que abre esse artigo. O convite que faço é que pensem. Frente à propaganda enganosa e demagógica de Bolsonaro, e também frente à hipocrisia e falsidade dos governadores de estado e comandantes das corporações, é preciso pensar. Não com a cabeça do genocida Bolsonaro, dos governadores ou dos oficiais comandantes. Mas com sua própria cabeça, olhando para seus familiares e a vida que vivem, para a vida a que este sistema condena os trabalhadores e trabalhadoras e o povo pobre desse país. Pensem, e verão que esse é o seu lado nessa luta.

 

[1] https://noticias.uol.com.br/colunas/chico-alves/2021/07/26/governo-quer-fechar-associacoes-de-militares-que-fazem-reivindicacoes.htm