A extrema-direita elegeu a Lei Rouanet (8.313/91) como o alvo de suas críticas à Cultura. De tal sorte que a lei virou sinônimo de “mamata” com dinheiro público.
Como veremos ao final deste texto, a “mamata” com a Lei Rouanet propalada pela extrema-direita raivosa nada mais é do que a velha conhecida apropriação de recursos por grandes empresas no capitalismo, mas, nesse caso, através da renúncia fiscal.
Mirou na Anitta e acertou no Gusttavo Lima
Para a extrema-direita, todo artista que não se alinha a Bolsonaro “mamou” ou “mama” nessa lei. Por isso, Zé Neto, da dupla Zé Neto & Cristiano, resolveu atacar Anitta num show no interior do Mato Grosso, falando da tatuagem íntima da cantora carioca e dizendo que não precisam da Lei Rouanet para bancar seus cachês. Isso porque eles seriam pagos pelo povo.
Pois bem, a partir dessa declaração autoconfiante e idiota, surgiu uma avalanche de investigações (informais e depois formais) sobre a verdadeira fonte dos cachês milionários desses sertanejos. E o que se descobriu foi o que muita gente já sabia: contratos milionários, feitos sem licitações, muitas vezes, com minúsculos e paupérrimos municípios no interior do país.
Zé Neto & Cristiano, por exemplo, diziam que não precisavam da Lei Rouanet. Mas nesse show no MT, faturaram R$ 400 mil sem licitação na pequena cidade de Sorriso[1]. E, do Zé Neto & Cristiano, para Gustavo Lima, foi um pulo. O “embaixador” bolsonarista – que nos shows fala em Deus, pátria e família e estampa o rosto de Bolsonaro em um dos seus helicópteros – fatura milhões de reais em cidadezinhas como São Luiz (RO) que, com apenas 8 mil habitantes, pagou sem licitação um show do cantor por R$ 800 mil![2]
Gustavo Lima firmou contrato de R$ 1 milhão com a prefeitura de Magé (RJ) para fazer um show no dia 8 de junho deste ano[3]. O valor chamou a atenção do Ministério Público, já que é 10 vezes superior ao orçamento que a Prefeitura deveria investir na Cultura no ano.
Há cláusulas, além disso, que fazem com que mesmo com o show cancelado, o cantor receba parte da bolada, levantando a suspeita de que isso pode ser um esquema, e algo corriqueiro. Foi o que aconteceu em Conceição do Mato Dentro (MG). O show foi cancelado após pedido de investigação feito pelo Ministério Público de MG, mas Gustavo Lima recebeu R$ 600 mil[4].
Tem até dinheiro do Orçamento Secreto do Centrão na jogada! O deputado federal André Janones (Avante) direcionou R$ 1,9 milhão para show de Gusttavo Lima, em Ituiutaba (MG), na feira agropeucária da cidade[5]. No total, Janones despejou R$ 7 milhões na feira que contará com a participação de Zezé di Camargo e Luciano e outros cantores sertanejos e acontecerá pouco antes das eleições…
Porém, ao serem descobertos, e ao notarem que as denúncias se avolumam, os valentões do sertanejo fazem lives chorando e tentam nos convencer dizendo que estão sendo perseguidos e que a culpa é exclusivamente das prefeituras que os contrataram… Ou seja: conversa pra boi dormir.
Mas, é preciso falar do aparente paradoxo que é a série de ataques à Lei Rouanet feito pela extrema-direita nos últimos anos e que acaba induzindo muita gente a defender acriticamente a Lei Rouanet.
Lei Rouanet, uma lei neoliberal
Paradoxal porque a Lei Rouanet é uma lei neoliberal, criada em 1991 por Fernando Collor de Mello! Leva esse nome pois foi de autoria de Sérgio Paulo Rouanet, então Secretário de Cultura de Collor.
A Lei criou o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), o Fundo Nacional de Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart); e criou os incentivos a projetos culturais.
E ela é neoliberal por vários aspectos, mas destaco apenas três. O primeiro é que ela reduz investimento público direto da União na Cultura. O segundo aspecto é que a lei “premia” empresários através da renúncia fiscal que pode chegar a 100% do dinheiro, isto é, dinheiro que o empresário deixa de pagar como imposto e que a União deixa de receber. É o caso, por exemplo, do bolsonarista Luciano Hang dono das Lojas Havan que pode ter deixado de pagar R$ 24 milhões em imposto, graças à Lei Rouanet[6].
E o terceiro aspecto é que a lei impele o artista a se empresariar, indo atrás de empresários que possam financiá-lo e adequando suas propostas às exigências do empresariado.
Nessa toada, o Fundo Nacional de Cultura, composto por recurso do Tesouro Nacional e por outras receitas – e que destina dinheiro a fundo perdido ou de empréstimos reembolsáveis – minguou e a renúncia fiscal bombou.
Além disso, o investimento direto do empresariado na Cultura se esfumaçou. Entre 1996 e 2014, a renúncia fiscal para a Cultura (dinheiro que o empresário deixa de pagar e a União deixa de receber) cresceu 1.100%, enquanto o dinheiro investido pelos empresários teve queda em cerca de 70%, como mostrou artigo dos economistas Sá-Earp e Estrella (2016).
Quando comparado com o Fundo Nacional de Cultura, vemos um crescimento absurdo da renúncia fiscal – pelo menos no período entre 1999-2009, como mostra o gráfico abaixo elaborado por Salgado, Pedra e Caldas (2010).
Na prática, a Lei Rouanet concede aos empresários o poder sobre a Cultura no país. Além disso, grandes escritórios localizados nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo representavam boa parte dos projetos aprovados. Entre 2005-2011, por exemplo, 80% do dinheiro captado ficou na região Sudeste.
E, sim, tem farra, também. Em texto que escrevi em 2014, dizia: “De acordo com o relatório da Lei Rouanet de 2013, o Disney Live! 2013 captou R$ 3.195.823,31, o Disney Live! 2014, por sua vez, captou R$ 500.000,00. O Disney no gelo captou R$ 1.855.122,96. O espetáculo teatral, também da Disney, O Rei Leão, captou junto à Lei Rouanet o valor de R$ 10.506.000,00, um espetáculo cujo os valores dos ingressos variam entre R$ 50,00 e R$270,00. O Santander Cultural captou R$ 5.545.000,00 e o Instituto Itaú Cultural captou nada menos do que R$ 21 milhões de reais!“[7].
E essa lei desigual e neoliberal, como já devem ter notado, seguiu praticamente inalterada nos governos de Lula e Dilma (PT).
Na realidade, o PT ampliou o raio neoliberal da Lei Rouanet. Mas como era o PT pilotando isso, boa parte da esquerda deixou de criticá-la e deixou de denunciar com força os míseros 0,04% do PIB executados para Cultura (em 2015) – e que hoje perfazem 0,01% com o governo Bolsonaro (PL).
O resultado?! A crítica à Lei Rouanet foi tomada pelas mãos da cínica e vil extrema-direita. E, hipócrita que é, quando a extrema-direita ataca a Lei Rouanet, faz isso para atacar a [já pequena e combalida] liberdade de expressão na arte e nos movimentos artísticos criando, também, uma “cortina de fumaça” na predação que artistas como Gustavo Lima fazem aos cofres públicos no interior do Brasil. Por isso, é um ataque aparentemente paradoxal.
Por isso, cabe aos trabalhadores da cultura e aos demais trabalhadores rechaçar qualquer tentativa de cerceamento às liberdades artísticas no Brasil e as ameaças de retrocesso às liberdades democráticas. E isso não implica na defesa irrefletida da Lei Rouanet como um modelo de lei para Cultura que deva perdurar em nosso país.
É preciso um programa socialista para a Cultura. Um programa que exija a suspensão do pagamento da dívida pública e auditoria. Isso é fundamental para destinação de mais dinheiro da Lei Orçamentária para ser aplicado diretamente na Cultura em suas mais variadas modalidades, na esfera federal, estadual e municipal, e que ponha fim a essa política de renúncia fiscal.
Junto a isso, deve-se elaborar e aplicar um Plano de Obras Públicas para a construção de equipamentos culturais como Museus, salas de Cinema, Teatros, Bibliotecas, Arquivos Públicos e Centros Culturais, com mais ênfase nos bairros operários e populares.
Referências
SÁ-EARP, Fábio; KORNIS, George; ESTRELLA, Luiz Manoel; JOFFE, Perla Sobrino. Dois estudos sobre a Lei Rouanet. Disponível em: https://www.ie.ufrj.br/images/IE/TDS/2016/TD_IE_025_2016_SA-EARP%20et%20al.pdf. Acesso em: 03 jun. 2022.
SÁ-EARP, Fábio; ESTRELLA, L. M.. Evolução de mecenato no Brasil: os valores movimentados através da Lei Rouanet despidos do véu da inflação. Políticas Culturais em Revista, v. 9, p. 314-332, 2016.
SALGADO, Gabriel; PEDRA, Layno; CALDAS, Rebeca. As políticas de financiamento à cultura: a urgência de uma reforma. In: RUBIM, Antonio (Org). Políticas culturais no governo Lula. Salvador: Edufba, 2010.
[1]Ver: https://extra.globo.com/tv-e-lazer/ze-neto-cristiano-receberam-400-mil-de-prefeitura-por-show-em-que-criticaram-rouanet-anitta-rv1-1-25510769.html. Acesso em: 03 jun. 2022.
[2]Ver: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/05/gusttavo-lima-cobra-de-prefeitura-266-vezes-o-teto-do-cache-da-rouanet.shtml. Acesso em: 03 jun. 2022.
[3]Ver: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/06/01/show-de-r-1-mi-de-gusttavo-lima-em-mage-vira-alvo-da-promotoria-no-rio.htm. Acesso em: 03 jun. 2022.
[4]Ver: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2022/05/29/gusttavo-lima-fica-com-r-600-mil-ja-pagos-de-show-cancelado-diz-contrato.htm. Acesso em: 03 jun. 2022.
[5]Ver: https://noticias.uol.com.br/colunas/balaio-do-kotscho/2022/05/30/andre-janones-gusttavo-lima-e-a-farra-dos-sertanejos-com-orcamento-secreto.htm. Acesso em: 03 jun. 2022.
[6]Ver: http://versalic.cultura.gov.br/#/incentivadores/8d2a5fd8e68b6453a9890f1d87a7f579ab7a06713a0a9179b61bc3575c64. Acesso em: 03 jun. 2022.
[7]Ver: https://executivanacionalmuseologia.wordpress.com/2014/05/21/trabalhadores-da-cultura-e-os-museus-de-grandes-novidades-apontamentos-sobre-a-atual-conjuntura/. Acesso em: 03 jun. 2022.