Leman, Telles e Sicupira, sócios da 3G, controladora das Americanas
Geraldo Batata, de Contagem (MG)

O caso da gigantesca fraude promovida pelos principais acionistas e diretores executivos das Lojas Americanas é uma vitrine da decadência capitalista no Brasil. Envolve nada menos que os homens mais ricos do país: Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, da controladora 3G Capitais, cuja fortuna ultrapassa R$ 180 bilhões. Envolve também os principais acionistas da InBev (maior cervejaria do mundo) e que hoje possuem cerca de 30% das ações das Americanas.

Segundo informações na imprensa, a empresa deixou de “informar” e “lançar” em seus balanços cerca de R$ 40 bilhões em dívidas, uma fraude que vinha ocorrendo há pelo menos 10 anos. Pelos valores envolvidos e dimensões, já está sendo considerado o maior rombo do capitalismo nacional. Esse volume de dívidas é do mesmo patamar do patrimônio bruto, ou total de ativos, das Lojas Americanas e empresa de e-commerce B2W, que se fundiram em 2021 em uma só empresa.

O possível calote abre uma crise que afeta os principais bancos nacionais, sendo os mais afetados o Bradesco, o Santander e o BTG Pactual. Afeta também mais de 1.000 fundos de investimentos de diversas instituições financeiras, atingindo mais de 100 mil acionistas. Assim como dívidas com milhares de fornecedores e varejista.

Além disso, cerca de 44 mil trabalhadores diretos e terceirizados, além de toda uma cadeia de fornecedores que podem ficar sem ter como pagar salários de funcionários. Em caso de falência, esses trabalhadores ficarão sem empregos e podem ficar anos sem receber seus direitos.

“Semideuses” do capitalismo e suas relações decadentes

Considerados pelo “mercado” como “semideuses” do capitalismo mundial, e representantes brasileiros no seleto reino dos bilionários na elite burguesa mundial, o trio Lemman, Telles e Sicupira, vem de uma trajetória de escândalos. O que não é uma surpresa. Essa é exatamente sua essência: a corrupção deslavada, manobras fiscais e rapina das riquezas.

A fortuna do trio foi construída sob a exploração de milhões de trabalhadores em diversos setores, os mais conhecidos são a Ambev, Lojas Americanas, mas o império da 3G abarca centenas de empresas em setores como imobiliários, educação, financeiro…

Dessa relação de exploração de milhões de horas de trabalho que homens e mulheres são obrigados a ceder aos empresários em troca de um salário, uma fatia menor do que o montante produzido, é que surgem os bilionários que conhecemos hoje como “semideuses” do mercado. A ideia de que a fortuna se deve à genialidade de determinados capitalistas é metafísica e sem sentido. É uma forma de esconder a relação violenta de exploração, de baixos salários, da opressão através do assédio moral constante, da imposição de extensas jornadas de trabalho. Vem daí a extração de lucros extraordinários que formam sua fortuna pessoal. Basta ver que, em 2021, a Americanas S.A. teve R$ 25,6 bilhões de receita bruta e apenas 3,92% desse montante, R$ 1 bilhão, fora utilizado para remunerar a massa de seus trabalhadores.

Fica a dúvida: Se há tanta exploração envolvendo valores tão grandes, por que empresas gigantescas, como a Americanas, entram em colapso financeiro, sob ameaça de falência e desaparição? É o maior absurdo de todos. Em uma sociedade regida pelo mercado capitalista, não há planejamento social, não há razão que regule as relações de produção e consumo. Tudo está sujeito ao jogo da tentativa e erro no mercado. Quem paga as contas dessa loucura, no final, são os trabalhadores.

Por trás da crise das Americanas, encontra-se o processo de longo prazo de desindustrialização do Brasil, que reduz a renda destinada à compra de mercadorias pela massa de trabalhadores. À redução da cadeia produtiva brasileira, segue-se a redução do comércio que vende estas mercadorias produzidas pela indústria para esses mesmos trabalhadores que as produzem, e distribuem a riqueza por meio do comércio. Em um efeito cascata, as empresas em crise, ao não saldar suas dívidas, expandem o problema para os bancos e demais setores da sociedade. Como se vê, tudo está conectado.

Some-se a isso que tal crise é aprofundada pelo rebaixamento do Brasil na divisão internacional do trabalho. As empresas nacionais de comércio são, cada vez mais, engolidas pelas grandes empresas internacionais de e-commerce, como a Amazon. Certamente, foi em uma reação a esse processo a fusão das Lojas Americanas com a B2W DIGITAL, em operação recente. Quando forem divulgados os dados sem as fraudes que agora vieram à tona, veremos o impacto dessa fusão na crise anunciada. Agora, empresas como a Americanas podem muito bem ser engolidas por algumas dessas concorrentes multinacionais, centralizando ainda mais o capital e destinando o excedente apropriado, o lucro, para o exterior. Novamente, também em um efeito cascata, o Brasil desce um degrau a mais na divisão internacional do trabalho.

Cabe perguntar, nesse processo: os empresários não pagam a conta da mesma forma que os trabalhadores? De modo algum.

Quando a disputa de mercado se dá entre empresas monopolistas, a concorrência se torna ainda mais violenta. E essa concorrência se expressa em disputas políticas pelo controle do Estado capitalista, através de financiamentos eleitorais de políticos de diversos partidos, da corrupção do Judiciário, de membros de controle público e auditores contábeis. Tudo para tirar vantagens sobre outros capitalistas e, principalmente, tirar vantagens do conjunto da sociedade. É assim que, de posse dos dados das empresas, os grandes empresários podem se desfazer com antecedência de parte das suas ações, fraudar os dados para possibilitar essas operações com um preço elevado por ação e, ao final, buscar no Estado financiamento com juros baixos e isenção de impostos para possibilitar a sobrevivência do negócio. A população trabalhadora que financia o Estado que paga a conta duplamente.

A esses semideuses é permitido manobrar o sistema a seu “bel-prazer”. No reino dos “semideuses” existe uma frase às suas portas: “Deixai toda a esperança, vós que entrais!”

Nada mais nada menos que fraudes e roubo!

Em uma sociedade decadente, onde as relações sociais de produção estão escondidas na mais pura mentira, na imposição pela força ou pela fome, de trabalhos precários e desgastantes, não esperem uma espécie de irmandade entre os capitalistas. Ao contrário, a concorrência dá lugar a uma verdadeira guerra civil em que o mais forte impõe sua vontade. E aí vale tudo.

No caso das Americanas, é evidente todo um esquema muito bem planejado. Como bem observa Luis Nassif: “O primeiro passo foi mudar a composição acionária, com os sócios da 3G se afastando do Conselho Deliberativo da empresa e reduzindo sua participação nas Americanas.”  Contando com as informações privilegiadas obtidas dos diretores efetivos, a 3G empenha esforços em obter lucros extraordinários no mercado de capitais: “No dia 1º de novembro de 2011, a AMER3 estava cotada a R $31,22. Americanas valia em bolsa R$ 28,2 bilhões e Lojas Americanas R$ 9,7 bilhões. No último fechamento, as ações estavam cotadas a R $1,98.”

Todo o balanço fraudado permitiu que a diretoria da empresa recebesse “R$ 700 milhões em remuneração (incluindo salários, bônus de desempenho e pagamento em ações ou opções), mostra um levantamento feito pelo Pipeline a partir dos dados disponíveis nos formulários de referências da companhia.[i]

Essa evidente negociata, uma malandragem em escala muito maior, opõe financiadores das operações e o financiado, ambos operando no mercado financeiro. Aqui não existe bons e maus. Os três bancos mais “expostos” são suspeitos de utilizarem os mesmos métodos no saque ao Estado e direitos da classe trabalhadora.

O Bradesco, como se sabe, foi o principal beneficiário da privatização da Vale, paga com “títulos podres”, somente válidos por conta da benevolência do governo FHC. Transformou-se no segundo maior banco privado do país saqueando o Estado e recebendo o roubo dos juros de milhões de trabalhadores, pequenos empresários e de títulos da dívida pública.

O BTG Pactual é investigado pela compra suspeita da carteira de crédito do Banco do Brasil de R$ 2,9 bilhões por cerca de 10% do seu valor, R$ 371 milhões. O banco cujo sócio-fundador é o ex-ministro da economia de Bolsonaro, Paulo Guedes.

O espanhol Santander foi o principal beneficiário da privatização do Banespa, na esteira das privatizações da era FHC. Demitiu 8.000 funcionários e foi responsável por promover grandes ataques à organização dos bancários.

PwC, 3G e Eletrobrás: Rapina capitalista!

É nesse contexto que a nova onda de privatização no Brasil se vincula ao processo de desindustrialização e ao rebaixamento do país na divisão internacional do trabalho. Com presença cada vez menor do capital brasileiro no sistema internacional de Estados, os empresários necessitam se apossar das empresas estatais existentes para dar vazão ao capital que retiram de empresas vendidas para grandes multinacionais ou com possibilidade de falência. Ou, então, para direcionar o capital que acumulam na indústria e no comércio, mas que não encontram nessas mesmas empresas possibilidades de expansão.

Voltando aos principais atores. A 3G também esteve envolvida em controversas fraudes fiscais bilionárias no Brasil e nos EUA. Podemos listar o caso da América Latina Logística e Kraft Heinz. Nesse último caso, em 2021, teve que dar baixa contábil de US$ 15 bi, e pagar multa de US$ 62 milhões com a autoridade fiscal dos EUA.

Voltando ao Brasil, a 3G participou ativamente na grande negociata da privatização da Eletrobrás, cujo impacto comprometerá todo o processo de desenvolvimento do país. Após abertura do capital da estatal em 2015, a empresa 3G contava com participação acionária de 5% na Eletrobrás e com grande influência na estrutura da empresa e do Estado. Dentro do processo de privatização, foram contratadas duas empresas de consultoria, a PwC (Price Waterhouse Coopers) e a Ceres, com responsabilidade de preparar o terreno para a entrega do patrimônio público ao mercado. Na verdade, as consultorias foram contratadas para pavimentar a privatização com uma campanha de desprestígio da estatal. Para se ter ideia, a maior empresa de energia da América Latina foi privatizada por uma “bagatela” de R$ 33,7 bilhões, enquanto que, somente de repasses ao governo federal, entre 2000 e 2020, foram R$ 19,3 bilhões.

A PwC é a mesma que assinou o fraudulento balanço contábil da Americanas, cujo impacto estamos assistindo. Um dos maiores beneficiários da privatização da Eletrobrás é justamente a 3G. Com toda certeza, a privatização da Eletrobrás está mergulhada num conjunto de fraudes justamente para beneficiar esses “semideuses do capital.” O mais escandaloso é que o patrimônio da Eletrobrás é avaliado em torno de R$ 400 bilhões, contando com investimentos em infraestrutura do Estado desde sua fundação, e responsável por boa parte do desenvolvimento da indústria instalada no país. Ou seja, a Eletrobrás foi entregue por menos de 10% do seu patrimônio.

Paz entre nós, guerra aos senhores!

O caso das Americanas mostra o evidente estágio de crise e degradação do capitalismo nacional. Não à toa que sua divulgação acontece na esteira do golpismo bolsonarista de 8 de janeiro. A burguesia, em meio à crise, comporta-se como verdadeiros bandos para saquear o botim.

Por um lado, digladiam-se para ver quem ganha mais nesse ringue de bandidos.[ii]Por outro lado, se unificam contra os trabalhadores no saque direto do aumento da exploração, reduzindo salários, benefícios e direitos, como as reformas trabalhista e da Previdência, a lei das terceirizações, e em seguida, beneficiando-se do saque direto do Estado. Na ausência de um projeto nacional que tenha como pano de fundo o desenvolvimento de indústria de ponta, o que necessita de investimentos pesados em pesquisa e tecnologias próprias, resta a pirataria e o saque direto. Nada é incólume. Desde estatais, como Eletrobrás, até Unidades de Saúde e escolas públicas estão sujeitas ao saque. A Amazônia, o Pantanal, e o cerrado são vistos como bens privados, novas fronteiras ao agronegócio exportador.

Vejamos os próximos passos também do novo governo. Lula será capaz de rever a privatização da Eletrobrás? Assim como das demais empresas entregues às “gangues” capitalistas? Ou pesará mais uma vez a conciliação onde os interesses são irreconciliáveis? É justamente dessa degradação que nasce o fascista, os grupos armados contra os povos indígenas e quilombolas, as comunidades rurais dispostas a tudo diante do descenso social ou da possibilidade de desaparição de suas empresas. É justamente onde reina a barbárie que nascem os ataques às liberdades democráticas. É para garantir esses interesses que existe o bolsonarismo e a ultradireita. É preciso atacar o mal pela raiz. Para romper com a lógica bolsonarista é preciso romper com as cadeias que promovem os golpes, a superexploração e a marcha da decadência. Conciliação e anistia significam perpetuar a dominação desses senhores.

Essa degradação e sujeira mostram a necessidade urgente de construir a unidade da classe trabalhadora em torno de suas bandeiras. A primeira coisa é a solidariedade com os 44 mil trabalhadores das Americanas sob risco de perder seus empregos e direitos. Nenhuma demissão é aceitável. Que o patrimônio dos grandes farsantes da 3G (Leman, Telles e Sicupira) seja usado para manter os empregos e direitos. Que esse patrimônio também seja usado para garantia dos empregos nas fornecedoras. Para isso é preciso o bloqueio dos bens e patrimônio dos sócios da 3G e da diretoria da Americanas. Revogação imediata da privatização da Eletrobrás e das estatais entregues aos abutres do capital financeiro.

[i] Este trecho é parte de conteúdo que pode ser compartilhado utilizando o link https://pipelinevalor.globo.com/negocios/noticia/r-700-milhoes-a-remuneracao-dos-executivos-da-americanas-em-10-anos.ghtml ou as ferramentas oferecidas na página.

[ii] Vídeo com a fala do Scicupira: https://jornalggn.com.br/wp-content/uploads/2023/01/WhatsApp-Video-2023-01-16-at-09.33.31.mp4