Brasília (DF), 23/05/2023 - O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente da Câmara, Arthur Lira, durante entrevista após reunião na residência oficial da presidência do Senado. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Apresentado oficialmente pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no final de março, o projeto impõe um novo teto de gastos, com uma dura política de austeridade que inclui a restrição nos gastos públicos e nos investimentos para privilegiar o pagamento da dívida aos banqueiros.

Entregue a Arthur Lira, o líder do centrão nomeou como relator do projeto um deputado de sua confiança, Cláudio Cajado (PP-BA). Missão dada, missão cumprida, e Cajado piorou ainda mais o que já era ruim, colocando mais ataques no texto sob demanda direta do mercado. Tudo acordado com o próprio Haddad e o governo.

O que isso vai significar, na prática, na vida da classe trabalhadora e da maioria da população? Será a continuidade, e a piora, dos serviços públicos, como saúde e educação; a perpetuação de um salário mínimo de fome, e tudo o que o acompanha, como as aposentadorias, o seguro-desemprego e demais direitos;  a ausência de investimentos em obras públicas, sociais e em geração de emprego que enfrente as mazelas do nosso país, como a vergonha de 50% do nosso povo não ter acesso sequer a saneamento básico no 10º país mais rico do mundo. A ausência de políticas de verdade às populações originárias, às LGBTIs, negras e negros e demais setores oprimidos, além dos mecanismos de preservação do meio ambiente. Até mesmo o recém-conquistado piso da enfermagem, fruto de décadas de luta, está em risco com esse novo arcabouço.

Defesa do teto vai de Bolsonaro a Lula

Esse novo teto amarra os investimentos públicos a um nível muito abaixo dos últimos governos. Segundo levantamento de assessores parlamentares, caso as regras defendidas pelo governo estivessem em vigor desde 2003, R$ 8,8 trilhões teriam deixado de ser gastos nos serviços públicos. Questionado numa audiência pública, o próprio Haddad afirmou: “Não estamos partindo da mesma base de 2003, então olhar para trás e dizer ‘ah, o governo Lula aumentou as despesas em 6% ao ano’, isso não vai mais acontecer.”

Isso significa que, se os primeiros governos do PT contaram com uma conjuntura internacional de maior crescimento econômico capitalista, com um boom das commodities que permitiram algumas pequenas concessões aos de baixo, enquanto, por outro lado, os problemas estruturais como o desemprego, os baixos salários e a precarização dos direitos permaneciam, e o país regredia a uma condição de semicolônia exportadora de produtos primários (processo acelerado nos últimos anos), agora nem com isso podemos contar.

O próprio Haddad, inclusive, reconheceu que o projeto não tem paralelo em lugar nenhum do mundo. “A nossa [regra fiscal] é até mais dura do que em qualquer lugar que eu tenha conhecido. A nossa é mais dura. Eu dizia que o teto de gastos era uma jabuticaba, mas a nossa regra não deixa de ser”, afirmou. Não é por menos que o presidente do Banco Central, Campos Neto, tenha elogiado a medida, e que Bolsonaro tenha disponibilizado o seu PL para ajudar a aprová-la.

ENTENDA

Regras do novo teto

– Crescimento das despesas só pode subir até 70% do aumento das receitas. Mas independentemente da arrecadação, o crescimento das despesas deve variar entre 0,6% a 2,5% do ano anterior.

– Caso a meta de superávit primário (receita menos amortização e juros da dívida) não seja cumprida, no ano seguinte o teto para os gastos fica em 50% do aumento das receitas. Caso se repita, no ano seguinte essa variação desce para 30%.

Com o substitutivo da Câmara/Lira/Haddad

– Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) e fundo para o piso da enfermagem, além das estatais, são incluídos no teto.

– Contingenciamento (bloqueio) de despesas obrigatórias no decorrer do ano, caso a previsão de superávit primário não esteja sendo cumprida.

– Caso a meta de superávit não seja cumprida no ano, além de restringir os gastos em 50% (como previa o projeto original), o governo não poderá criar cargos ou novas despesas obrigatórias. Isso inclui reestruturação de carreira, criação de cargos ou reajustes acima da inflação.

– Se a meta não for atingida no ano seguinte, fica proibido reajuste ao funcionalismo (inclusive reposição da inflação) e contratação de servidores.

– Essas medidas também serão adotadas caso as despesas obrigatórias superem 95% das despesas primárias.

– O salário mínimo não foi incluído no teto, mas aposentadorias e todos os benefícios da seguridade estão. Ou seja, indiretamente, ele afeta sim o reajuste do mínimo e ataca violentamente os aposentados.

TETO REPAGINADO

Novo teto não é “menos pior” que o de Temer, mas uma atualização

Foto Agência Brasil

Logo que foi apresentado, amplos setores da esquerda argumentaram que o novo arcabouço tinha lá os seus problemas, mas era um avanço em relação ao teto de gastos de Temer, aprovado em 2016. Será mesmo assim?

A Emenda Constitucional 95, apelidada com toda a razão de “PEC do Fim do Mundo”, congelava todos os gastos públicos, reajustando apenas a inflação. Tão logo foi aprovada, não eram poucos os analistas, mesmo os do mercado, que consideravam a medida pouco sustentável. Isso porque era evidente que ela causaria, cedo ou tarde, um colapso da máquina do Estado. A ânsia em garantir os bilhões de juros da dívida aos banqueiros inviabilizaria o próprio Estado que atua para isso.

Tanto não era factível que mesmo o texto da PEC previa uma revisão em 2016. Nem chegou a tanto, já que esse teto foi furado sucessivas vezes até ser completamente desmoralizado e o mercado exigir outro. E foi o que o governo Lula fez. Uma espécie de “teto móvel” que possa se ajustar aos vários momentos da conjuntura internacional, sempre mantendo os investimentos públicos lá embaixo. E, principalmente, que seja permanente.

Isso significa que mesmo num contexto de crescimento econômico, hoje improvável, os gastos públicos continuariam represados dentro da estreita faixa estabelecida pelo arcabouço. Já ouviu aquela história de que é preciso “fazer o bolo crescer para depois repartir”, dita por Delfim Neto e até hoje repetida por setores “desenvolvimentistas”? Pois esqueça, o bolo, crescendo ou não, nem as migalhas irão para o povo, como em períodos anteriores. Só os banqueiros abocanharão o maior pedaço. E ainda tem o outro lado: no caso de uma nova pandemia ou qualquer outra catástrofe social, os gastos também continuariam limitados. Menos o pagamento da dívida, claro.

NOVO ATAQUE

Governo prepara desvinculação da saúde e educação

Juntamente com o novo arcabouço, uma velha obsessão de Paulo Guedes se aproxima mais da realidade: a desvinculação das verbas da saúde e educação. Haddad já afirmou que, aprovado o projeto, botará na mesa a discussão sobre o mínimo constitucional das duas áreas. “Está na hora de a gente ter uma regra mais sustentável”, declarou.

Por que “regra sustentável”? Com o fim do teto de Temer, a saúde volta a ter piso de 15% do orçamento e a educação, 18%. O problema é que o crescimento de todo o orçamento só vai poder ir até 70% do aumento da arrecadação, e os mínimos constitucionais estão atrelados a 100% do orçamento. Ou seja, se os gastos com saúde e educação crescerem mais que o teto de todo o Orçamento, o governo vai ter que cortar de outras áreas.

O plano do governo Lula, então, é aprovar o arcabouço e, em 2024, propor uma nova PEC especificamente para desvincular saúde e educação do Orçamento, para entrar em vigor já em 2025. Desvincular quer dizer rebaixar esses gastos e enquadrá-los também sob o novo teto.

INDEPENDÊNCIA DE CLASSE

Derrotar o novo arcabouço por inteiro

O substitutivo de Cláudio Cajado tem o mérito de, ao menos, expor de forma sincera o objetivo do novo arcabouço. Segundo o texto: “A política fiscal da União deve ser conduzida de modo a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, prevenindo riscos e promovendo medidas de ajuste fiscal em caso de desvios.” Poderia ser ainda mais sincero e dizer “vamos impor uma política de austeridade sem igual em qualquer lugar do mundo, cortando dinheiro de salário, aposentadoria, saúde, educação e demais serviços públicos, para continuar garantindo bilhões aos banqueiros”.

Não é possível “remendar” o novo teto, tentando torná-lo menos pior. É preciso derrotá-lo por completo. Em dezembro de 2016, houve uma manifestação em Brasília contra a “PEC da morte” de Temer, que enfrentou uma dura repressão policial. Foi uma mobilização bastante insuficiente, já que as direções do movimento, como a CUT, não jogaram o peso que deveriam. Porém, agora, não só não está havendo mobilização como a própria direção está no governo, e aprovando o teto. O PSOL não está chamando a luta contra o projeto, mas tentando aprovar emendas (leia mais na página 10).

Esse ataque mostra a necessidade urgente de se batalhar pela independência política do movimento diante do governo e dos patrões. É necessário exigir que as entidades e organizações não sejam correias de transmissão de um governo que atende os interesses dos banqueiros e super-ricos, mas que, como propõe a CSP-Conlutas, fortaleçam um polo de independência de classe e combativo para lutar contra os ataques e pelas reivindicações da classe trabalhadora.

Precisamos pôr abaixo esse teto, mas não só. É preciso acabar com a Lei de Responsabilidade Fiscal e todos os mecanismos de “austeridade”. É necessário suspender o pagamento da dívida aos banqueiros, redirecionando os recursos para obras públicas, salário, emprego, ciência e tecnologia, reforma agrária, saúde, educação e demais serviços públicos.