Daniel Luz, de São Paulo (SP)

Quem se interessa pela história do povo negro não pode perder a exposição  “Memórias do Futuro: Cidadania Negra, Antirracismo e Resistência” que está no Memorial da Resistência em São Paulo. Realizada pela Coalizão Negra por Direitos, revista O Menelick 2° Ato, as Capulanas Cia de Arte Negra e o Ilú Obá de Min, em parceria com os arquivos e acervos de cultura negra em diversas instituições, ela traça um panorama da experiência histórica do povo negro em São Paulo. Dessa forma, questiona uma série de falsos lugares comuns os quais apagam o protagonismo negro na construção da capital paulista. Vejamos alguns dos principais mitos desconstruídos pela exposição.

São Paulo é o túmulo do samba?

Não, na verdade, os primeiros blocos e cordões carnavalescos a desfilar na cidade, ainda no início do século XX, eram compostos por negros e operários, sendo o primeiro deles o Cordão da Barra Funda, fundado por Dionísio Barbosa.

As primeiras escolas de samba apareceram sob a influência desses cordões e do samba rural paulista, como, por exemplo, a Nenê de Vila Matilde, a Vai-Vai, a Camisa Verde e Branca, e a Unidos do Peruche. Vale observar que o primeiro título da Nenê de Vila Matilde tinha o enredo Casa Grande e Senzala, em 1956.

Inclusive, a primeira escola de samba da cidade foi fundada por uma mulher negra, Deolinda Madre, a Madrinha Eunice, em 1937, a Sociedade Recreativa Beneficente Esportiva Escola de Samba Lavapés.

Negras e negros não participaram da construção de São Paulo

Quem circula pelo centro da cidade de São Paulo talvez não imagine a contribuição que negros, africanos e brasileiros, livres e escravos, deram para a construção dessa paisagem. A modernização capitalista da cidade não tentou soterrar apenas seus rios e córregos, mas também a viva contribuição das mãos negras. Porém, assim como os rios, a história negra segue resistindo e emerge à luz do dia.

Exemplos disso são as obras de Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas, mestre da cantaria. Arquiteto negro de obras importantes no século XVIII, são dele as faixadas da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco, o Chafariz da Misericórdia e a Antiga Igreja da Sé.

Particularmente, igrejas, terreiros, localidades e monumentos atestam a vida ancestral do povo negro, são locais que trazem a marca dos séculos de escravidão, alguns expressos em seus nomes – Largo da Forca, Beco dos Aflitos, Capela dos Aflitos, Igreja das Almas – mas também trazem a ressignificação desses espaços pela via dos rituais e festividades, como os que ocorrem ao redor do Monumento à Mãe Preta ou como a Festa do Rosário, na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França.

 A população negra é desunida?

Outro senso comum desconstruído pela exposição é aquele acerca da incapacidade do povo negro em se unir por um objetivo ou ideia. A exposição é farta em exemplos do chamado associativismo negro: grêmios recreativos, sociedades beneficentes, clubes de lazer, entidades de ajuda funerária ou hospitalar, dentre muitas outras.

Um exemplo é o Grêmio Recreativo Familiar Flor de Maio, fundado em 1928, em São Carlos, por um grupo de ferroviários da Companhia Paulista, discriminados em outros clubes da cidade, construíram um espaço para a sociabilidade negra.

Espaços como esse tinham como princípios a solidariedade, o direito ao lazer, o trabalho coletivo, enfim, a segurança para se viver com respeito seus afetos. Outro exemplo importante é o da Frente Negra Brasileira, fundada em 1931 e extinta em 1937, ela promovia atividades educacionais e culturais para inserir o negro no debate público nacional, foi uma tentativa de criação do primeiro partido político negro no país.

Não menos importante são os registros da cultura negra, entendida também como forma de resistência política: do samba-lenço em Rio Claro e dos Bailes Black cujos organizadores forma perseguidos pela ditadura militar brasileira, ao Ilú Obá De Min. Outro momento de grande importância são os cartazes do MNU, como aquele da histórica Marcha Zumbi 300 (1995) ou os que trazem o protesto negro contra a violência, num deles lemos: “porões, prisões: até quando? Reaja à violência racial”.

Luta antirracista e democracia

A exposição culmina em dois artigos nos quais somos apresentados à perspectiva política de seus organizadores. Em “Redemocratização e nova república: a democracia é uma luta negra” diz-se corretamente que não é possível contar a história da luta por redemocratização no Brasil sem tratar do “ativismo negro”, sob pena de incorrer em apagamento e invisibilização. Afirma que a luta pelo retorno à democracia e o direito ao voto estava combinada à denúncia da democracia racial, do racismo e das diferentes violências vivenciadas pela população negra. Por fim, o texto apresenta a Coalizão Negra por Direitos cujo lema sintetiza o que seria o “projeto e a demanda secular” do povo negro: “enquanto houver racismo, não haverá democracia”.

O segundo texto intitulado com o acima citado lema da Coalizão afirma: “viemos a público exigir a erradicação do racismo como prática genocida contra a população negra”. E mais adiante relaciona a luta antirracista à luta por democracia: “Não há democracia sem enfrentar o racismo, a violência policial e o sistema judiciário que encarcera desproporcionalmente a população negra. Não há cidadania sem garantir redistribuição de renda, trabalho, saúde, terra, moradia, educação, cultura, mobilidade, lazer e participação da população negra em espaços decisórios de poder. Não há democracia sem garantias constitucionais de titulação dos territórios quilombolas, sem respeito ao modo de vida das comunidades tradicionais. Não há democracia com contaminação e degradação dos recursos naturais necessários para a reprodução física e cultural. Não há democracia sem o respeito à liberdade religiosa.” Assim, lutando por uma “verdadeira democracia” convoca todos a se unirem na luta antirracista “Porque a prática é o critério da verdade”.

Porém, sobre qual democracia estamos falando?

De fato, qualquer transformação séria do país precisa ter como um de seus eixos fundamentais a luta pela erradicação do racismo em todas as suas formas. A questão é como e com quem conseguiremos alcançar esse objetivo. Ou seja, por que meios alcançaremos a libertação negra? Quem são nossos aliados e quem são nossos inimigos nessa luta? Precisamos ser concretos neste ponto.

O que hoje chamamos de democracia é o disfarce de uma ditadura da burguesia contra os trabalhadores. Uma ditadura cuja vítima fatal é o povo negro trabalhador, particularmente sua juventude periférica, basta olhar os dados da violência policial no país. Para pôr fim a essa democracia precisamos atacar a fonte da riqueza dos burgueses, isto é, a propriedade privada da terra, das indústrias, dos meios de comunicação e transporte, enfim, precisamos tirar a burguesia do comando dos meios de produção.

O objetivo da libertação negra só pode ser alcançado com a expropriação dos bilionários da casa grande – latifundiários, banqueiros, grandes empresários – essa é a condição de uma verdadeira erradicação do racismo e da exploração. Impossível cumprir tal objetivo aliado a banqueiros e demais exploradores e opressores.

Nossos aliados devem ser o conjunto dos trabalhadores explorados e oprimidos pelo sistema capitalista. Como mostra a história de luta do povo negro, a Casa Grande nunca se interessou em abrir mão de seus privilégios.

Assim, para fazer Palmares de novo, para construir uma democracia feita pela e para a classe trabalhadora devemos contar com nossas próprias forças apenas, devemos unir o objetivo da libertação negra à construção da revolução socialista no Brasil e no mundo.